Portugal, Sociedade Appstore!

Os automatismos a que vamos ser sujeitos e/ou obrigados vão tornar-nos uma presa fácil e a oportunidade de sermos estúpidos crescerá na mesma proporção

A obra de Hieronymus Bosch, “Os sete pecados capitais”, Museu do Prado, Madrid

Estamos, de novo, no limiar de uma era misteriosa, aquela que relaciona humanidade e tecnologia, plena de mistério, esperança e muitos perigos.

A pandemia da Covid-19 teve e terá um impacto fortíssimo na transformação digital da sociedade, acelerando a digitalização de processos e procedimentos, por exemplo, na telemedicina, no teletrabalho, no ensino à distância, no comércio online, nos serviços públicos online, na monitorização (sensores) do ambiente, nas câmaras de vigilância e segurança, no combate ao cibercrime, para referir apenas os casos mais citados.

A pandemia da Covid-19 apertou a malha digital e digitalizou ainda mais os cidadãos. Digamos que, involuntariamente, a pandemia causou uma maior adição digital nos cidadãos. Quanto mais isolados e distanciados socialmente mais ligados e conectados digitalmente.

Não é impunemente que tudo isto acontece. A invocação da ideia de “Portugal Sociedade Appstore” serve de aviso à navegação. É imprescindível que os cidadãos sejam alertados para o efeito sistémico perverso deste caldeirão digital e para o risco de servidão voluntária, se não for adotado com conta, peso e medida.

A Sociedade Appstore é uma porta de entrada para um self service que nos promete mais certeza e segurança em troca de uma liberdade sob condição. Ela é a imagem de marca e o ícone do momento, um hiper-lugar à nossa inteira disposição.

Basta descarregar. Todavia, uma aceleração digital feita num ambiente sem literacia e cultura digitais suficientes envolve um risco muito elevado e pode abrir a porta a graves episódios de violação da privacidade e da liberdade. Vejamos alguns aspetos mais críticos desta Sociedade Appstore.

 

Os aspetos mais críticos da sociedade appstore

A sociedade appstore é uma sociedade pronta a vestir. Na sociedade appstore a servidão é voluntária e esse gesto produz cidadãos bem-comportados. Para tanto, basta apenas que cumpram as normas e as regras em vigor, que descarreguem as apps apropriadas e correspondentes a um padrão prescritivo ditado pelo poder dominante.

Na sociedade appstore os cidadãos bem-comportados são cidadãos certificados, se quisermos, uma espécie com indicação geográfica de proveniência (IGP) e denominação de origem controlada (DOC). No tempo que corre podemos dizer, também, que não têm um efeito de contaminação significativo. São, digamos, cidadãos confirmados e validados, cidadãos praticamente sem imperfeições humanas.

Na sociedade appstore tudo é inteligente à maneira digital: a casa, o carro, a empresa, o escritório, a escola, a estrada, o hospital, etc. Tudo adquire vida própria e tudo debita informação a todo o tempo. Mais dados, sempre mais dados, e estaremos cada mais próximos da verdade, nesse grande bazar que é o universo dos algoritmos e no grande terminal que é o nosso smartphone de última geração.

 




 

Na sociedade appstore a grande ambição do big data é substituir a “nossa imperfeição”, afinal, a nossa subjetividade e consciência emocional. Neste sentido, com alguma benevolência, podemos dizer que os algoritmos serão uma espécie de irmãos mais velhos, se quisermos, os narradores autorizados da nossa existência.

Na sociedade appstore, nós, os seres humanos, somos uma espécie de algoritmo biológico imperfeito. Tudo o que vem de trás, do “velho humanismo” perdeu importância e foi sendo dissipado: os sentimentos, as distrações, os sonhos, os desejos, isto é, o nosso passado bioquímico e tudo o que fazia a inteligência emocional do ser humano individual. O comportamento desviante de outrora, torna-se, doravante, um simples desvio-padrão.

Na sociedade appstore basta que prestemos toda a informação necessária, debitada constantemente e a tempo inteiro em todos os suportes digitais de que somos fiéis depositários e utilizadores. A política será, igualmente, evacuada para a appstore e, a partir daí, com o nosso consentimento mole, terá sido abolido o princípio do contraditório, esse vírus da política. Nós, na sociedade appstore, seremos os vossos cuidadores.

Na sociedade appstore a híper vigilância pode ser deveras incómoda, mas a servidão voluntária é cada vez mais preferível à violência gratuita dos humanos. No resto, é o papel da polícia de vigilância e segurança e tudo dependerá da violência do cibercrime e do ciberterrorismo. Afinal, quem não deve não teme.

 

Notas Finais

Esta tendência crescente de converter cada gesto da nossa vida num aplicativo digital e, logo de seguida, atribuir ao nosso assistente inteligente, o smartphone, a função reguladora principal da nossa existência, é uma tendência deveras perturbadora.

Por outro lado, na sociedade appstore as relações humanas e sociais não são categorias com valor analítico suficiente, só atrapalham o trabalho de depuração e limpeza. A inteligência humana é limitada por natureza e a inteligência emocional carrega uma espécie de obesidade desnecessária e inconveniente.

E o que nos diz a sociedade appstore a propósito da democracia política? Que as instituições em geral são caras e preguiçosas e a democracia é cada vez mais desajeitada para lidar com a governação de plataformas, algoritmos e aplicativos.

Aqui chegados, a convergência possível entre democracia iliberal e governação algorítmica não nos deixa augurar nada de bom e este risco potencial é a maior ameaça que paira sobre as democracias pluralistas.

Não me surpreenderia que surgisse mais um aplicativo sobre democracia eletrónica com todos os procedimentos necessários para votar diretamente, ou seja, para reduzir a intermediação e representação políticas do parlamento e aumentar a presença da democracia direta eletrónica na vida política.

Recordo aqui, a propósito, uma famosa pintura de Hieronymus Bosch (1485)* intitulada “os sete pecados capitais”. No centro do quadro, vigilante, está o “Olho de Deus” e por cima uma inscrição onde se pode ler: “Porque são um povo desprovido de propósito e não possuem nenhuma compreensão. Oxalá fossem sábios e entendessem isto e se preparassem para o seu final”.

 





Em nenhum caso, poderemos consentir que a nossa servidão voluntária se transforme em guarda pretoriana de um qualquer populista candidato a autocrata. Temos de encontrar rapidamente um novo modo de pensar, estar e agir políticamente, sob pena de sermos reduzidos a uns idiotas úteis da governação algorítmica, clientes da Grande Loja Appstore e súbditos de um qualquer Grão-Mestre Algoritmo.

Na sociedade appstore todas as “imperfeições e impurezas humanas” serão remetidas para as artes e a cultura, não obstante o “Olho de Deus” de Bosch e a presença do assistente inteligente estarem muito atentos aos nossos pecados capitais.

Para nosso bem, a sociedade appstore revela imensas dificuldades em lidar com esses inúmeros bocados de humanidade e intimidade que marcam a nossa vida ao quotidiano e dão substância às atividades artísticas e culturais.

Esta areia na engrenagem ainda pode salvar-nos. Cuidado, portanto. Os automatismos a que vamos ser sujeitos e/ou obrigados vão tornar-nos uma presa fácil e a oportunidade de sermos estúpidos crescerá na mesma proporção. Um autêntico filão para populistas e demagogos. Fica o alerta.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 




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