Os Deuses do Cerro de S. Miguel devem estar loucos

No Algarve, green só mesmo o washing

O Cerro de S. Miguel é o elemento mais visível da paisagem do Sotavento algarvio.

É o ponto mais alto da Serra de Monte Figo, e que funciona como principal linha de cumeada na rede hidrográfica local, distribuindo nas suas encostas as águas para as bacias hidrográficas de cinco importantes ribeiras.

A sua presença na paisagem é de tal ordem que serve, desde a Antiguidade, de referência à navegação por cabotagem. Serve também de local sagrado, chegando mesmo, em mitos mais arrojados, a ser comparado com o Monte Olimpo, a mítica morada dos deuses gregos.

Pois bem, os deuses devem estar loucos, para permitir o que se está a passar mesmo aos pés da sua casa…

Tem vindo a abrir-se (e continuará), no sopé da encosta Sul do Cerro de S. Miguel, uma brutal cicatriz, interrompendo bruscamente o mosaico paisagístico dominante.

A matriz de verde acinzentado é agora rasgada pela crueza da terra nua, recentemente espedregada e mecanicamente mobilizada para instalação desta extensa – e talvez intensa – área de culturas de regadio, com linhas de plantio desprezando as curvas de nível e potenciando a erosão.

Mas, se o impacto visual desta nova chaga na paisagem é chocante – nem a Via do Infante, que ali também passa, atinge tal magnitude neste troço –, importa olhar para lá desse aspecto, ainda que seja também importante.

 



 

Enquadremos as coisas: este cerro é alvo de intervenção humana desde sempre. As suas encostas são pontuadas por inúmeras estruturas de suporte de terras e pequenos socalcos (hoje quase todos abandonados), armados graças à pedra esforçadamente retirada da terra, assim conquistando e criando o espaço possível, onde antes havia nenhum.

E a finalidade sempre foi, precisamente, a agricultura, actividade essencial na formação do carácter mediterrânico da paisagem algarvia.

Uma agricultura apurada ao longo de séculos, plenamente enquadrada no contexto climático, de solo e de disponibilidades hídricas – condicionadas mais pela sua incerteza e irregularidade do que propriamente pela escassez.

O pomar de sequeiro, mais do que opção, é uma inevitabilidade mediterrânica de sobrevivência. De entre os seus frutos, o figo é glória passada, que brilhou a grande altura.

Em poucos sítios como aqui, neste cerro também comummente conhecido por Monte Figo, por lhe estar intimamente associado o cultivo da figueira, que cobria boa parte das suas encostas.

Há mesmo teses que defendem que é da figueira que deriva a toponímia de S. Miguel, já que é no seu dia, comemorado a 29 de Setembro, que se dá por terminada a colheita do figo, sendo também a partir desse dia que se inicia o denominado “rabisco”, período em que qualquer pessoa pode colher, sem incorrer em ofensa dos direitos dos proprietários, os frutos restantes nas árvores. Como atesta a sabedoria popular: “em passando o dia de S. Miguel, é a figueira de quem quer”.

Se o cerro tem história de gente e terra, o caminho até ele, por qualquer vector de aproximação, obriga-nos a percorrer um mosaico denso, que intercala o garrigue mediterrânico com edificação dispersa, hortas com pomares tradicionais de sequeiro, sebes com muros de compartimentação. Há aqui, portanto, uma história antiga de paisagem.

Se havia agricultura, e agricultura é pedida no clamor por diversificação económica que inclua mais sector primário, que sentido fazem reservas quanto a iniciativas agrícolas?

Só um espírito kamikaze transforma o apelo à diversificação económica – que traduz uma muito real necessidade, como os dois últimos meses demonstraram e todos os próximos demonstrarão – numa aposta sistemática em empreendimentos de regadio extensivo (e eventualmente intensivo), numa região historicamente carenciada em termos de disponibilidade dos recursos hídricos.

Um desafio que se agrava no quadro de alterações climáticas que atravessamos, e que extrema ainda mais o que já de si era agudo, no caso aumentando a dificuldade de repor as disponibilidades para abastecimento, tanto superficial como subterraneamente – ficar sempre à espera da generosidade do mês de Abril para resolver o défice hídrico é algo que, embora emocionante, não é recomendável.

 

 

 

Note-se que não se centra a discussão na dramática alteração do mosaico paisagístico. A transformação da paisagem é uma constante das dinâmicas naturais e humanas.

Embora violento, este uso até se pode integrar no carácter rural (embora isto seja discutível no quadro de culturas praticamente industriais) e agrícola existente, ainda que pulverize métrica e escala – tal como outras intervenções nesta planície de aluvião, bem visíveis a partir do Cerro.

Foca-se o debate na aptidão paisagística para mais regadio, tendo em conta as condicionantes conhecidas. Demonstre-se, no balanço regional entre os lucros privados do negócio, os impostos, empregos e outras mais-valias geradas (directas e indirectas) e os custos sociais, ambientais e económicos resultantes da depauperação dos recursos hídricos, qual o saldo. Fugindo-se ao imobilismo e ao voluntarismo (ambos fatais), explique-se em que ponto estamos.

Assistimos a incessantes e justificados alertas para a necessidade de redução dos consumos de água no sector urbano. No entanto, o sector agrícola, que representa 67% dos consumos hídricos regionais (contra os 21% do urbano e os 7% do golfe), parece não ter limites, mesmo quando, em certos circuitos, se discute já o racionamento e os seus custos políticos – porque, no fim de contas, é o que interessa no círculo decisório, ainda para mais com eleições autárquicas num horizonte próximo. A coisa é tal, que até o Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas, em toda a sua dimensão, baixou os braços neste capítulo.

Mas como pedir então aos pequenos consumidores que alterem os seus comportamentos, quando os grandes consumidores não param de aumentar e crescer? É a versão hídrica do Novo Banco?

A Europa desafia-nos a abraçar um Green Deal, através do Pacto Verde Europeu. Uma nova economia, de base ecológica, respeitadora dos recursos endógenos e dos seus limites. Pois bem, no Algarve, green só mesmo o washing ou, eventualmente, os viçosos abacates, entretanto incluídos numa novel Dieta Mediterrânica (guacamole a la moncarapachense).

Quem aprova e autoriza tudo isto? Com que base? Em que medida são consideradas e ponderadas as condicionantes hídricas regionais nos processos de tomada de decisão?

Já ia sendo tempo de nos serem dadas explicações, em vez de lágrimas de crocodilo. A menos que sirvam para regar…

 

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 



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