Turistificação low cost e uberização dos serviços

É real o risco de captura do Algarve pelo capitalismo low cost

A longa convergência entre capitalismo low cost, uberização dos serviços, desigualdade e democracia populista pode conduzir as sociedades europeias a um ponto de equilíbrio instável e perigoso onde o emprego mal pago e o trabalho on demand no âmbito de um terceiro e quarto setores muito informais coabitam com uma liberdade e segurança sob vigilância, no âmbito de uma democracia liberal batida, cada vez mais, pelas correntes populistas e iliberais.

 

O problema em questão no plano europeu

A utopia europeia, a aventura europeia, estão numa encruzilhada, pelo menos na sua atual configuração. No estado atual da política europeia, com baixo crescimento económico e crescente desigualdade social, a megalomania e omnipresença unionistas e a superioridade política e institucional da ordem burocrática da União Europeia é tudo o que as redes sociais distribuídas não gostam.

Com efeito, as gerações mais jovens, filhas da revolução digital, nunca suportarão a sobranceria das instituições europeias, pela simples razão de que elas apostam na “desintermediação institucional, política e burocrática” da ordem estabelecida. Ora, esta desintermediação é o princípio, mesmo, da chamada uberização da sociedade, operada por via de plataformas ditas colaborativas de que a UBER é um bom exemplo.

Capitalismo low cost, uberização dos serviços, empobrecimento e democracia iliberal, eis uma tendência e mistura perigosas, prontas a explodir em qualquer momento e que, por isso mesmo, precisam de ser devidamente acauteladas por todas as instituições do estado de direito democrático e social, nos planos nacional e europeu, sob pena de uma séria deriva populista e autocrática.

Na atual conjuntura (fevereiro de 2020), receio bem que estejamos ainda longe de reunir as condições políticas necessárias a uma abordagem integrada deste problema e que, até lá, a convergência entre capitalismo low cost, uberização dos serviços, desigualdade e democracia iliberal irá prosseguir, criando, à sua passagem, muitos efeitos externos negativos, em especial, a pauperização e a proletarização de muitas franjas da população.

Nesta matéria, já sabemos que a revolução digital e a governação europeia se cruzam em três planos principais: em primeiro lugar, a regulação do capitalismo digital, sobretudo o combate à sua extra-territorialidade fiscal no quadro do mercado único, em segundo lugar, a regulação dos direitos de cidadania em sentido amplo, não apenas na proteção de dados pessoais, mas, também, na garantia de direitos sociais e laborais onde se inclui o debate sobre um rendimento mínimo europeu garantido, por fim, a regulação da chamada “governação algorítmica” no quadro da governação multiníveis das políticas públicas europeias, que poderá transformar-se numa fonte adicional de exclusão e segregação em matéria de coesão territorial e social

Se a União Europeia e os Estados nacionais não agirem de forma prudente e coordenada nestes três planos de modo a suscitar e regular a sua convergência positiva e, por essa via, impedir o empobrecimento progressivo das classes médias, existe um risco muito elevado de que a política, como instância superior de representação, passe por uma crise de confiança generalizada e mergulhe no radicalismo identitário de má memória, acabando, no final, por desembocar em soluções políticas duras e musculadas de democracia iliberal. E estes sinais crescem todos os dias.

 

Turistificação low cost, uberização dos serviços e economia do 4º setor

A revolução digital e o advento da sociedade automática determinarão, progressivamente, o fim da “indústria do emprego” tal como a conhecemos ainda hoje. Desde a simples digitalização até à “internet das coisas” e a inteligência artificial (IA) serão inúmeras as modalidades de automatização de processos e procedimentos industriais e dos serviços.

Duas consequências parecem inelutáveis a curto e médio prazo: a transformação profunda do regime salarial tal como nós o conhecemos até aqui e o crescimento de uma informalidade significativa no grande setor de transição, o chamado 4º setor.

O capitalismo low cost está, de resto, preparado para esta transição e há dois setores onde a uberização irá preferencialmente incidir: os serviços de apoio ao turismo e os serviços de apoio à sociedade sénior, ambos servidos por plataformas e aplicativos de extração muito variada.

O capitalismo low cost ao arrastar consigo uma desintermediação pública importante acabará por provocar uma “destruição criativa” significativa e, do mesmo passo, julgo eu, induzir uma reforma das instituições políticas tal como as conhecemos hoje.

Em primeiro lugar, a economia pública irá contratualizar uma parte da despesa pública em regime de coprodução de serviços ao público com plataformas privadas. Ao mesmo tempo reduzirá o emprego público, substituindo funcionários públicos por prestadores de serviços em regime de outsourcing.

Em segundo lugar, a economia social e solidária das IPSS passará por uma forte racionalização e contração na medida em que depende bastante dos apoios públicos. Ao mesmo tempo reduzirá o emprego social e muitas das suas funções serão externalizadas para as comunidades locais da emergente “sociedade colaborativa”.

Em terceiro lugar, a economia privada capitalista, devido à concorrência dos mercados globais, onde se inclui o turismo, reduzirá ainda mais o emprego convencional e externalizará muitas tarefas que passarão a ser oferecidas pela economia on-demand para onde se transferirão muitos trabalhadores em regime de freelance reunidos em plataformas colaborativas.

Quer dizer, a nova economia das plataformas ditas colaborativas, que aqui denominamos de uberização de serviços irá ramificar-se por toda a economia e será uma espécie de lugar geométrico de todas as externalidades, positivas e negativas, das várias economias setoriais, muitas delas parcialmente informais.

Duas delas já estão em pleno funcionamento, o cluster low cost do turismo, desde o transporte ao alojamento, da alimentação aos serviços de limpeza e manutenção e o cluster low cost dos serviços pessoais e domiciliários que se ramifica cada vez mais.

Esta enorme placa giratória – a economia do 4º setor – será muito provavelmente a grande casa comum para uma boa parte dos cidadãos que passarão a trabalhar em plataformas de capitalismo low cost em regime de pluriatividade e plurirrendimento e numa relação laboral de proteção muito duvidosa.

Nesta enorme placa giratória é muito provável que o capitalismo low cost providencie ao trabalhador pluriativo várias rendimentos: um emprego a tempo parcial num serviço público e/ou numa empresa privada, uma prestação de serviço em regime de freelance numa empresa on-demand, algumas horas de voluntariado num “banco do tempo local” em troca de um voucher e, finalmente, uma “inscrição” numa startup colaborativa de uma parte dos seus recursos ociosos (idle resources) em troca de uma receita eventual num mercado de ocasião.

 

Notas Finais

Como facilmente se comprova, estaremos, num futuro não muito longínquo, devido à quebra estrutural do emprego de qualidade, condenados a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime contributivo e colaborativo, sob muitos formatos, condições e reputações, se quisermos, uma sociedade onde o individuo se produz a si próprio.

Por outro lado, a ideologia da uberização transporta-nos até à modernidade líquida, nas palavras do filósofo Zygmunt Bauman, onde tudo é fluido, precário, transitório, passageiro, como tudo o que a UBER transporta. Quem nos avisa para os efeitos externos negativos desta uberização em particular?

É preciso advertir, em especial, os nativos digitais mais distraídos para esta sedução virtual e para a ilusão do auto empreendedorismo acessível que é passada através de uma presumida relação pós-salarial.

O capitalismo low cost, a revolução digital e o processo de uberização não podem conduzir ao aumento da desigualdade social e a uma clivagem grave na sociedade democrática que ponham em causa os princípios mesmo da sua convivência pacífica.

Na atual conjuntura europeia e nacional, à beira do mercado único digital, é um imperativo ético-político que a criação e estruturação do 4º setor sejam um impulso vigoroso na direção da sociedade colaborativa e dos bens comuns europeus e não a formação de uma grande área-problema onde crescem a marginalidade e informalidade do emprego e do trabalho e onde cidadãos embarcados são passageiros em trânsito permanente em busca de melhores condições de vida.

E se, no final, o capitalismo low cost, apoiado pela uberização dos serviços e um regime de governo mais securitário, vier sugerir a criação de um rendimento mínimo garantido “RMG” para todos aqueles que vivem abaixo de um determinado limiar de existência, sob o pretexto de que esse mecanismo de reparação social reduz bastante os custos de operação e manutenção do regime de prestações sociais do Estado social (ele próprio objeto de uberização por via de uma plataforma social), essa proposta não irá acrescer a legitimidade política do capitalismo low cost e do regime de governo que o suporta?

Cuidado, pois, com a linha vermelha para onde convergem o capitalismo low cost e a uberização dos serviços, a sua bifurcação democrática é sempre possível.

E o alerta, também, para a região do Algarve, pois é real o risco de captura pelo capitalismo low cost, sobretudo se a inércia do sistema de política regional conduzir à convergência entre turistificação, ludificação, gentrificação, uberização dos serviços e pauperização das classes trabalhadoras. Não seria bonito!

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

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