«Se não mudarmos a nossa vida, podemos já não ter vida para mudar»

O professor António Covas parte de uma declaração de António Guterres para refletir sobre o clima

Está a decorrer em Madrid a 25ª Conferência das Partes das Nações Unidas, a COP25, sobre alterações climáticas e emergência climática.

Oiçamos as advertências do Secretário Geral das Nações Unidas António Guterres: «Se não mudarmos a nossa vida, podemos já não ter vida para mudar. (…) Entre Paris (2015) e Glasgow (2020) é urgente rever as metas fixadas, porque se estas metas não forem ajustadas e cumpridas, a temperatura do planeta pode subir 3,2% neste século, deixando para trás o objetivo de 1,5%. (…) É necessário mudar a economia, o trabalho e os atos individuais. Se queremos a mudança, temos de ser a mudança. Não há tempo nem razão para adiar a mudança. Temos a tecnologia e a ciência necessárias, só temos de mostrar vontade».

Recordo, também, a entrevista ao jornal Público no passado dia 8 de Dezembro dada pela comissária portuguesa Elisa Ferreira, responsável pela pasta da Coesão e Reformas da Comissão Europeia: «O Green Deal é um grande pacote de reformas e iniciativas com que a Comissão Europeia quer acelerar a descarbonização da economia. Não se esgota no Fundo de Transição, que apoia a reconversão das fontes energéticas, mas atravessa horizontalmente todas as rúbricas da coesão territorial e dos fundos estruturais europeus e marcará a agenda europeia durante as próximas décadas, porque é uma mudança radical no modo como se faz indústria e no modo como se faz agricultura».

Quero aproveitar esta oportunidade para fazer umas breves reflexões acerca da relação entre ação climática, emergência e transição e capitalismo verde.

 

Um momento deveras paradoxal

O momento que vivemos é deveras paradoxal. Por um lado, nunca tivemos tanta ciência e tecnologia para resolver os problemas, por outro, nunca estivemos tão próximos de grandes riscos naturais que, já o sabíamos, têm a nossa assinatura há muito tempo. Já estamos, mesmo, a viver a grande dramaturgia do século XXI, qual seja, o conflito declarado entre o nível de emissões de gases de efeito estufa e os níveis de subida da temperatura. A nossa vida no século XXI está, assim, tragicamente contida entre os 1,5% e os 3,2% de subida da temperatura.

O grande drama é que o ciclo climático, apesar dos seus sucessivos encurtamentos, não cabe no nosso tempo de vida, isto é, os seus impactos e consequências já estão a correr há muito, não têm retorno e apenas podemos prevenir, mitigar e reparar os seus efeitos mais nefastos.

Do mesmo modo, a transição dos modelos de desenvolvimento também não ocorrerá muito provavelmente no nosso tempo de vida, embora possamos fazer alguns ajustamentos, financiar uma “transição justa” e esverdear um pouco mais os nossos atos individuais e quotidianos. Quer dizer, no nosso minguado tempo de vida só podemos fazer prevenção, mitigação, remediação, um ou outro ajustamento e algumas adaptações na linha da frente da ação climática. Ou seja,sofrer as consequências, suportar os custos, remediar algumas situações e traficar alguns benefícios, eis o que nos é proposto.

 

Ação climática e hipocrisia política, transição e emergência

Dadas as circunstâncias e o impasse intertemporal a que chegámos, não nos devemos surpreender com a irrupção de muita hipocrisia política, de resto, já nossa conhecida. Não se trata agora de lavar mais branco, mas de esverdear tanto quanto possível a retórica política. De resto, a ação e a transição climática e energética já constam do frontispício de alguns ministérios.

Entretanto, irrompe a emergência climática que serve bem os interesses dos meios de comunicação social e a indignação dos movimentos sociais nascidos nas redes e recentemente constituídos. Está, assim, criado o caldo de cultura necessário para que se instale a “hipocrisia verde”, mais uma oportunidade para o capitalismo verde e a investigação darem as mãos, em nome da modernização e do pragmatismo ecológicos, isto é, do greening da produção e do consumo.

No século XXI anunciam-se dois novos princípios: o princípio agroecológico e o princípio da mobilidade. O primeiro, reforçado pelo combate às alterações e emergência climáticas, recoloca a prevalência do território por via dos seus atributos biofísicos e ecológicos. O segundo, estimulado pela transformação digital e os avanços da biotecnologia, altera radicalmente as nossas perceções convencionais sobre o espaço, o tempo e o acesso aos diferentes territórios, em especial os de baixa densidade. Falamos da mobilidade de pessoas, mas, também, de espécies da fauna e flora que se movimentam no espaço à medida que as alterações climáticas e o uso de novas tecnologias fragmentam os seus respetivos ecossistemas.

A relação entre ação climática, agroecologia e mobilidade pode ser muito problemática se a emergência e os eventos climáticos impedirem, na prática, que se faça a transição e conversão para outros modelos de desenvolvimento mais sustentáveis.

Estamos a falar de recursos volumosos que poderão ser gastos em episódios, incidentes e desastres climatéricos em medidas de mitigação, reparação e remediação e que, por causa disso, não poderão ser aplicados em adaptação e conversão biofísica e agroecológica. Esta é a dramaturgia que se adivinha e avizinha na relação entre a ação climática, o programa agroecológico e a mobilidade. Seja como for, estamos, hoje, face a um novo pensamento e a uma nova ordem de prioridades que no plano agroecológico consagrará uma nova agenda para o século XXI.

Os sinais concretos já aí estão:

– A restauração biofísica e ecológica e a agricultura biológica;
– O hibridismo energético e a microgeração em rede;
– A linha de produtos eco e bio e as redes de produção local e circuitos curtos;
– A arquitetura paisagística, a gestão do mosaico paisagístico e as amenidades rurais;
– A economia da recreação e do lazer e as redes de turismo em espaço rural;
– O conservacionismo, a biodiversidade e a gestão de serviços de ecossistemas;
– A agricultura multifuncional e as estratégias familiares compreensivas;
– A metodologia de intervenção sóciocomunitária nas áreas rurais de baixa densidade;
– A evolução dos direitos de propriedade e a promoção do interesse público patrimonial;
– Os bens comuns e os modos organizacionais de ação coletiva e colaborativa.

 

Ação climática, capitalismo verde e conflitos de interesse

Nesta transação permanente entre “medidas de transição e medidas de emergência” o capitalismo verde estará presente e, como sempre, muito atento. No que diz respeito ao princípio agroecológico, assistiremos, muito provavelmente, ao esverdeamento da produção e do consumo, numa mistura, por vezes pastosa, de propaganda, publicidade enganosa e evidência científica. O capitalismo verde procurará “vender-nos” a modernização ecológica, utilitarista, tecnológica e incremental, como uma solução para todos os problemas. Para o capitalismo verde a abordagem certa é de problem-solving e não de problem-saving.

Por outro lado, a ocorrência e a frequência de grandes eventos climatéricos,conduzirão, muito provavelmente, à escassez de solo e água e, portanto, à mercantilização do espaço e à introdução de cargas desproporcionadas de ocupação e utilização de recursos escassos, sobretudo, se a regulação e a auditoria públicas primarem pela ausência. Acresce que a conjugação destas ocorrências com o oportunismo comercial e a irresponsabilidade socioambiental de promotores recém-chegados ao mercado não deixa prever nada de bom.Basta pensar na região do Algarve e nos conflitos de interesse entre os diferentes usos da água.

Como facilmente se imagina, em redor de medidas de emergência climática, de medidas de conversão agroecológica e de medidas de economia circular, para citar apenas estas áreas, criam-se novos interesses e movimentos sociais, inorgânicos numa primeira fase, mas muito sensíveis aos valores relativos ao ordenamento do território, à conservação do património natural e cultural, à redução das várias pegadas ecológicas, à acessibilidade e ao uso múltiplo do espaço rural.

Mais tarde ou mais cedo estes novos movimentos sociais irão entrar em rota de colisão com o bullying imobiliário e a turistificação que ocupam manchas importantes do nosso espaço fundiário. Em pano de fundo, a recomposição do mundo rural português e a constituição de grupos e modelos de negócio que são, cada vez mais, estranhos à tradicional envolvente local. É a 2ª ruralidade que chega.

 

Notas Finais

Seja qual for a evolução do capitalismo verde e do universo rural e periurbano continuarão a aflorar as pequenas economias de proximidade herdeiras do velho modelo tradicional e oscilando entre a subsistência, a informalidade e a capilaridade das pequenas redes locais, mercados e circuitos curtos.

Agora que se fala tanto em emergência climática e redução das pegadas ecológica, energética, hídrica e carbónica, a questão mais pertinente nesta altura é, mesmo, a de saber se é ainda possível conceber e implementar “redes locais de abastecimento agroalimentar” como parte de um programa de agroecologia e economia circular, uma espécie de “contrato social climático” para redes de vilas e cidades de todas as dimensões.

De facto, o que quero sublinhar é que a ação climática, o programa agroecológico e a economia circular podem ser uma excelente janela de oportunidade para os territórios de baixa densidade e, nessa exata medida, um campo experimental muito interessante para as redes e plataformas colaborativas da economia local. A mudança que se avizinha e anuncia é conhecimento-intensiva e não está ao alcance dos modos tradicionais de administração da clássica propriedade agrorural.

No princípio, a natureza impunha os seus próprios ritmos. Hoje, faz-se agricultura sem solo, sem sol e sem gente. Porém, e paradoxalmente, é minha convicção de que com o conhecimento científico e técnico acumulado, caminharemos, cada vez mais, para formas descentralizadas de autogestão e autoregulação em matéria de aprovisionamento agroalimentar e gestão de ecossistemas. Como, aliás, as plataformas digitais deixam perceber não apenas no domínio da agricultura de precisão, mas, também, muito em breve, na gestão integrada das florestas, dos ecossistemas e da paisagem em regimes colaborativos muito inovadores.

Afinal, e ao contrário do que nos ensinaram durante muitas décadas nas escolas do pensamento dominante, a ruralidade não está definitivamente ultrapassada. Ela está à nossa frente e não atrás de nós. Deixou de estar reportada a um sistema produtivo, converteu-se num modo cultural por excelência. Estamos paulatinamente, mas seguramente, a passar da agricultura para a agrocultura.

A ruralidade da 2ª modernidade será uma nova inspiração e um novo recomeço. E a Terra agradece.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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