Mobilidade neste Algarve não é para velhos (nem para muito jovens)

Depois do Ambiente, são os transportes que são focados em novo artigo de diagnóstico à situação do Algarve

A mobilidade, no Algarve, é assente na viatura particular e «só está ajustada às pessoas entre os 18 e os 64 anos». Quem o defende é Manuel Tão, especialista em transportes, que avisa que o futuro da região terá de passar por um sistema de transportes públicos baseado na ferrovia, que já deveria ter sido modernizada e ligada à vizinha Andaluzia «ontem».

A menos de uma semana das Eleições Legislativas, o Sul Informação pediu ao professor da Universidade do Algarve que fizesse um balanço do que foram os últimos anos, ao nível dos transportes, mobilidade e acessibilidade, no Algarve, mas também que projetasse o futuro.

Este é mais um artigo da série que o nosso jornal está a lançar antes das eleições, falando com especialistas em diferentes áreas para fazer um diagnóstico ao Algarve. O primeiro, foi sobre o Ambiente.

Neste, como nos demais casos, à visão do entrevistado, junta-se uma infografia com os mais recentes dados sobre mobilidade e transportes disponibilizada pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (ver abaixo).

Uma das conclusões a que Manuel Tão já chegou há muito é que o sistema de mobilidade que existe no Algarve «não está adaptado àqueles que são muito jovens para ter carta de condução nem àqueles que têm problemas de saúde, devido à idade, e já não podem andar de carro. Tudo isto está mal feito».

Ou seja, é um sistema ao qual falta acessibilidade, por, de um modo geral, não ter transportes públicos eficientes e que levem as pessoas para os locais onde precisam ou querem ir, em tempo útil.

Desta forma, o Algarve está, não só, dependente do petróleo, mas também «de um mercado imperfeito – as concessões das autoestradas, por não terem concorrência, são mercados imperfeitos».

«Estamos muito longe daquilo que é o paradigma de mobilidade sustentável, que é a Suíça. Nesse país, é possível fazer uma vida sem passar na estrada em transporte próprio. Devemos olhar para eles, não para fazer igual, mas para evoluir e chegar a um modelo mais avançado», defendeu.

 

Foto: Fabiana Saboya | Sul Informação

 

Evoluir passa, neste caso, por investir na ferrovia. Manuel Tão não tem dúvidas de que o caminho para melhorar a acessibilidade e, ao mesmo tempo, a competitividade económica do Algarve, passa pelo avanço célere dos investimentos já previstos na Linha do Algarve, nomeadamente a eletrificação dos troços entre Lagos/Tunes e Faro/Vila Real de Santo António (VRSA) e uma ligação ao Aeroporto de Faro que sirva o Campus de Gambelas da UAlg.

Apesar destes serem investimentos «para ontem», não tem havido vontade política de mudar o paradigma da mobilidade, na região.

«Os últimos quatro anos dos transportes, no Algarve, não são muito diferentes dos últimos oito, nem dos últimos 12 anos. As carências continuam a ser as mesmas. Há um conjunto de investimentos que não se fizeram nestes anos todos, designadamente na ferrovia, que devia ser o elemento central do sistema de transportes», realçou o professor da UAlg.

Ainda assim, a estratégia que está a ser adotada não é a mais correta, defendeu.

«O Ferrovia 2020 encerra alguns defeitos estruturais muito grandes. E um deles é que foi algo concebido como um conjunto de investimentos centrados em partes muito limitadas daquilo que é o sistema ferroviário, sobretudo voltado para mercadoria», enquadrou.

«Mas nós não somos um país industrial, somos um país de serviços e de turismo. Quer queiramos, quer não, é esse o nosso modelo. Quem concebeu os investimentos da Ferrovia 2020 foram, essencialmente, stakeholders ligados à logística. Não digo que não tenham a sua importância, seguramente que têm. Mas não é aquilo que é predominante na dinâmica própria do Algarve e do Alentejo, que são territórios que têm o potencial de gerar viagens, quer a nível local, quer de pessoas de fora de Portugal», disse Manuel Tão.

O Algarve e o Alentejo estão, de resto, intimamente ligados, nas questões relacionadas com mobilidade e transportes, acredita. «Ao falar do Algarve, temos de falar também do Alentejo, embora não estejamos habituados, porque somos uma quase região, mas carecemos de escala e profundidade territorial. Assim, muitas das coisas em que temos de pensar em termos de transporte e em termos de modelo territorial que subjaz a esses serviços de transporte, têm de ser pensadas para além da escala da região algarvia».

O Algarve, de Sagres ao Guadiana, terá, grosso modo, 150 quilómetros. «Agora, no eixo Sul/Norte, não temos nem 50 quilómetros. A verdade é que temos problemas de interioridade mal nos afastamos da costa 15 quilómetros para Norte. É aí que começa o nosso interior».

 

 

Manuel Tão

 

«Temos de pensar a região como estando integrada num espaço muito mais vasto e conceber um conjunto de acessibilidades e de transportes que possam atender a esse modelo territorial. Isso não existiu nesta legislatura, nem no Governo anterior, nem no anterior a esse», afirmou o especialista em transportes.

Por outro lado, importa avançar com a ligação ferroviária entre o Algarve e a Andaluzia. «Isto é fundamental porque nós não temos escala. Temos de evoluir para um modelo territorial que vá para além de uma região que tem 450 mil habitantes e vive apenas para três ou quatro meses de Verão em que acolhe uma população que é o triplo ou o quádruplo».

«Temos de pensar num Algarve sem turismo, no que a região vale sem este setor. O que é que nós podemos ser, enquanto elo entre a Andaluzia e o eixo mediterrânico, que vem de França e atravessa Barcelona, Valência, Alicante e Sevilha, e o eixo atlântico, que vem da Galiza. Temos de pensar num Algarve com acessibilidades que atendam a esse modelo territorial, em que o Algarve não é apenas uma região turística, mas também de serviços e de ligação entre outras regiões, designadamente o centro de Portugal, através do Alentejo, e a Andaluzia», disse Manuel Tão ao Sul Informação.

Ou seja, a região continuará a ter turismo e Sol e Praia, «mas também terá outros serviços e indústria ligada às novas tecnologias e às atividades criativas. O turismo e todos os ativos a ele ligados são bem vindos, mas há que saber projetar o futuro deste território muito para além desta atividade».

«A pergunta que temos de fazer é: qual o Algarve que queremos até 2030? Queremos mais do mesmo ou somos suficientemente audazes para partir para um Algarve totalmente diferente, que além do turismo tem serviços que criam mais valia e que tem coisas inovadoras e novas indústrias?», reforçou.

O especialista em transportes defende mesmo que, «neste momento, já devíamos ter uma ponte de tirantes ao lado da de Monte Francisco [Ponte Internacional do Guadiana], com duas vias de caminho de ferro, a ligar o Algarve à Andaluzia».

«Haveria aqui muitas vantagens: a fusão dos mercados turísticos, mas também toda uma zona de serviços própria do Sudoeste Peninsular. Isto é, uma nova centralidade não dependente nem de Madrid, nem de Lisboa, própria desta região. Isso seria fantástico! Um Aeroporto aqui, outro em Sevilha e outro em Beja, e todo o território pelo meio, pode ser algo apetecível para o investimento internacional», acredita Manuel Tão.

 

 

 

É necessário ganhar escala a nível supra regional, mas também ao nível supra municipal. «Uma das coisas que o antigo Plano Nacional de Políticas de Ordenamento do Território (PNPOT) tinha e que era particularmente inteligente, era a questão dos agrupamentos de cidades. O novo, aparentemente, deixou cair isso».

«Aqui, existia o Algarve Central, que era constituído por Faro, Olhão, Loulé, São Brás de Alportel e Tavira. É muito inteligente pegar em cidades médias para formar uma grande cidade, onde há partilha de equipamentos de ordem superior. E isso é particularmente importante no sentido de captar investimento e emprego», considerou Manuel Tão.

Mas, ao longo do tempo, «falhou algo que era muito importante: a garantia de uma deslocação fácil no interior de uma grande cidade constituída por outras cidades mais pequenas. Isto é, haver uma matriz de deslocações entre qualquer uma delas, em que as pessoas, recorrendo aos transportes públicos, tivessem uma facilidade muito grande de deslocação entre uma e as outras».

«Hoje, quando olhamos para essa rede de cidades do Algarve Central, só há um par de localidades em que as deslocações são relativamente fáceis, que são Faro e Olhão – e, eventualmente, Tavira. Quando saímos desse eixo, não funciona bem», defendeu.

Os transportes urbanos são, de resto, a única faceta positiva do balanço que Manuel Tão fez, a pedido do Sul Informação.

«Daquilo que eu me apercebo, aqui no Algarve há um conjunto isolado de melhorias pontuais em termos de oferta de transportes à escala local, nomeadamente em Faro, em Loulé, em Portimão e em VRSA».

Estas melhorias «passam, sobretudo, por alguma renovação das frotas de autocarros, em termos de material circulante de transporte rodoviário, e alguma reorganização dos serviços em carreiras urbanas e periurbanas».

«Por exemplo, em Loulé, foi feito um esforço muito grande. Em Faro, há cerca de quatro ou cinco anos, a frota era decrépita e hoje é uma frota moderna. Portimão creio que já tinha feito um esforço nesse sentido há mais tempo e continuou a modernizar as frotas. A modernização das frotas à escala local incentiva as pessoas a utilizar os transportes públicos», afirmou.

Mas a evolução, no que toca ao transporte público rodoviário, não foi muito mais além. «Em termos do transporte regular, houve uma diminuição daquilo que são as tarifas, no que toca aos passes. Não houve, seguramente, um acompanhamento em termos de aspetos qualificativos, nomeadamente da frequência».

«Quem vive no interior de Faro ou de Portimão e se serve do transporte público, em vez da viatura particular, para se deslocar dentro da zona urbana, não experimenta as dificuldades que sentem as pessoas que vivem na periferia imediata da cidade, que não é servida pelos transportes urbanos», explicou Manuel Tão.

Ou seja, «deslocamo-nos facilmente da Baixa para a Penha e de Faro para Gambelas. Mas se quisermos ir para um local como o Patacão, Bela Curral, Bordeira ou mesmo São Brás de Alportel já sentimos muita dificuldade».

 

 

E porque é que os problemas de acessibilidade subsistem?

«Penso que aqui no Algarve há uma grande dificuldade, da parte dos autarcas e do próprio mundo empresarial, de partir para além do que é o atual modelo territorial», afirmou Manuel Tão.

Por outro lado, os transportes públicos assumem, muitas vezes, uma importância menor para os decisores políticos.

«Em muitos casos, não digo especificamente aqui no Algarve, mas pelo país todo, há políticos que associam transportes públicos aos segmentos mais pobres, quando na verdade deve ser o contrário».

«Quando nós pensamos quais são, a nível mundial, os países com mais viagens per capita em transporte público, o primeiro lugar é ocupado pelo Japão, o segundo pela Suíça e o terceiro pela Alemanha. O nível de vida nestes países mete a um canto aquilo que nós temos aqui em Portugal e ganham muito mais do que nós, tem condições de vida que nós nem imaginamos e dois deles – o Japão e a Alemanha -, são sedes das maiores fábricas de automóveis do planeta. E isso não impede que sejam dos países onde as pessoas andam mais de comboio por ano, per capita», ilustrou.

«Os transportes públicos não se destinam só a atender as necessidades da população local. É falso! Servem para atender os mercados turísticos e servem para levar gente para locais onde não habitam e que querem ficar a conhecer, sem ter de usar um carro», assegurou.

Para começar a inverter esta tendência negativa, Manuel Tão defende que há duas «coisas muitíssimo importantes» a fazer e já na próxima legislatura.

«A primeira é a mais fácil, a retoma da ligação do Algarve ao Alentejo através de Beja, capaz de potenciar o Aeroporto de Beja. Estamos a falar de um investimento muito pequeno, tendo em conta que é uma infraestrutura que já existe – a linha de Funcheira para Beja, passando por Ourique – e apenas tem de ser reabilitada», disse.

É que, apesar do Algarve ter um Aeroporto Internacional, que é «uma vantagem muito grande», esta é uma infraestrutura cuja capacidade «já foi ultrapassada».

«O Aeroporto de Faro foi concebido para 5 milhões de pessoas, já chegou aos 8 milhões e não demorará muito tempo a ultrapassar os 10 milhões de passageiros por ano. E, tendo em conta o local onde está inserido, uma zona de paisagem protegida, é difícil, se não impossível, ampliá-lo», referiu.

«Desta forma temos de pensar no Aeroporto de Beja como complementar ao Algarve, nomeadamente no segmento de lazer», acrescentou.

 

Foto: Fabiana Saboya

 

Em termos de construção de nova infraestrutura, «seria muito importante avançar com a ligação ferroviária até ao Aeroporto e à Universidade, passando muito perto do Campus das Gambelas».

Isto, «partindo do princípio que nos próximos quatro anos a eletrificação dos troços de Lagos a Tunes e de Faro a Vila Real de Santo António, que já está adjudicada, se vai materializar».

A construção desta ligação «iria causar uma grande alteração, em termos qualitativos, daquilo que são os padrões de mobilidade».

«Com um Aeroporto que movimenta qualquer coisa como 8 milhões de pessoas por ano e que tem 8 mil postos de trabalho e com quem vem todos os dias para o Campus das Gambelas, estamos a falar de qualquer coisa como 10 mil pessoas/dia».

«Ora, se nós com o comboio conseguíssemos meter metade dessas 10 mil pessoas a utilizar o comboio, estaríamos a falar de uma supressão de cinco mil viagens para cada lado, o que é muitíssimo importante. Mas estamos a falar ainda de outra coisa . Este Aeroporto de Faro, que tem uma área de influência que se projeta até Ayamonte, Cartaia e Huelva, consegue com o comboio projetar a sua área de influência para destinos muito afastados do Algarve, pelo menos dentro de Portugal», acredita Manuel Tão.

Para que isso possa acontecer, há que haver vontade política, liderança e, claro, dinheiro.

«É importante que haja um executivo regional de transportes, mas, mais do que isso, que haja um modelo de financiamento. E não é preciso inventar a roda, alguém já o fez por nós há muito tempo».

Manuel Tão dá o exemplo francês, em que o financiamento dos transportes à escala metropolitana e regional é garantido pelas empresas ali sediadas, através do IRC. E não se trata de cobrar mais impostos, trata-se de reter uma parte do imposto que já é cobrado nas diferentes regiões.

«Por exemplo, as empresas de Lyon ou de Lille pagam IRC e o imposto não vai todo para o Governo central, há uma parte que fica lá retida», disse.

Isso permitiria atenuar assimetrias que existem entre Lisboa e o resto do país. «Quais são os critérios que justificam a construção a médio prazo de uma extensão do Metro de Lisboa de dois quilómetros entre o Largo do Rato e o Cais do Sodré, que custa 230 milhões de euros?», questionou

«Se o Algarve quiser qualquer coisa como 60 ou 70 milhões para construir um ramal do caminho de ferro para as Gambelas e para o Aeroporto tem de esperar 20, 30 ou 40 anos. Se continuarmos assim não vamos a lado nenhum como país. Há-de haver uma super Lisboa e um mini país. Isto mina a competitividade do nosso território, não apenas do Algarve, mas de tudo o resto para além de Lisboa», concluiu Manuel Tão.

 

Infografia: Nuno Costa | Sul Informação

Este conteúdo integra o projeto “Eleições em Rede 2019”, do qual o Sul Informação faz parte.

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