O betão ainda é quem mais ordena, dentro de ti, ó Algarve

Análise detalhada ao que foram os últimos quatro anos, para as questões do ambiente, no Algarve

Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

O discurso até pode ter mudado, mas as práticas (ainda) não. Como é que o Governo tratou o Algarve, nas questões ambientais, nos últimos quatro anos? Houve mudanças significativas? O modelo «à la betoneira» foi alterado? E para o futuro? O que importa mudar? Estas perguntas são o mote para uma análise ao que foi a última legislatura, por parte de duas personalidades algarvias ligadas ao mundo do ambiente. Isto à boleia dos indicadores da Pordata e quando as Eleições Legislativas de 6 de Outubro se aproximam a passos largos. 

O Sul Informação falou com Anabela Santos, bióloga e dirigente da associação Almargem, e com Gonçalo Duarte Gomes, arquiteto paisagista e presidente da direção da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas.

Ambos foram unânimes em considerar que não houve «mudanças significativas» nos últimos anos.

«Ainda vemos muitos atentados a acontecer, a nível ambiental, no Algarve. O chip ainda parece estar pouco direcionado para essas questões do ambiente. As diferenças foram poucas», diz Anabela Santos.

Gonçalo Gomes complementa: «o Algarve é indiferente à alteração de ciclos políticos, porque os Governos, sucessivamente, negligenciam sempre a região. Se, em matérias de ambiente, as políticas têm de ser gerais, nunca houve um esforço para as adaptar à realidade regional. Diferenças fraturantes, nesta legislatura, não houve».

Na opinião do arquiteto paisagista, a «grande questão é o ordenamento territorial e o modelo que se desenha».

«Esse está definido desde há décadas, com a massificação do litoral, maioritariamente afeto à atividade turística, ao mesmo tempo em que assistimos ao abandono do interior», diz.

Mas isso mudou nos últimos anos?

«O modelo não foi minimamente alterado. Havia a expectativa, após aquilo que foram as tragédias dos incêndios em 2017, de que algo mudasse, mas nada aconteceu. Houve o relatório da Comissão Técnica Independente, que focou as questões do modelo territorial e de um projeto que seja inclusivo do interior. Mas nada foi alterado», atira, sem rodeios.

 

Gonçalo Duarte Gomes – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

Gonçalo Duarte Gomes aponta o grande incêndio de Monchique, de Agosto de 2018, como um exemplo «gritante». Só naqueles oito dias de chamas foram consumidos cerca de 27 mil hectares.

«Há problemas estruturais que não podiam ser resolvidos num ano. A culpa não é exclusiva deste Governo, mas, se olharmos para aquilo que foram as medidas tomadas e para as políticas que têm sido desenhadas, nada aconteceu. Não se pode dizer que tenha havido uma inversão de paradigma», salienta.

«Logo na ressaca do incêndio de Monchique, tivemos cá o primeiro-ministro a anunciar o plano de requalificação económica da Serra de Monchique, algo que nunca aconteceu. Largaram o município às feras nesse processo», considera ainda.

Todas estas questões também estão relacionadas com o abandono do interior e do próprio mundo rural, numa região cada vez mais circunscrita ao litoral – e ao turismo.

«A aposta no interior tem de existir e com medidas efetivas. Acho que houve muita coisa criada no papel, mas sem medidas concretas de apoio. E eu pergunto: valerá a pena apostar em mais camas turísticas? A região tem capacidade para acolher mais turistas? A verdade é que ainda temos o nosso interior todo desfavorecido», considera, por seu lado, Anabela Santos.

Gonçalo Duarte Gomes afina pelo mesmo diapasão. «O espaço rural continua entregue à sua sorte. Não assistimos a qualquer política de revitalização económica e social do interior. Há sempre aquele discurso de que temos de conseguir cativar as pessoas para ir para o interior, mas não vemos nada a acontecer», diz.

É que as pessoas só ficam nos territórios mais interiores se houver condições efetivas para tal. «É impensável estarmos a falar de revitalizar o interior quando continuamos a fechar escolas ou quando não há respostas e sistemas de saúde. Se não existirem condições, estamos a falar do quê? É uma fantasia. Fazemos planos bonitos, mas sem fundamento», considera ainda.

E, sem pessoas, é a própria paisagem que se altera. Este é outro tema bastante atual, na realidade regional, com a proliferação das agriculturas intensivas. Os últimos anos foram «mais penosos» do que os anteriores, assistindo-se a uma alteração «profunda» da natureza paisagística do Algarve.

O tradicional pomar de sequeiro, que até é uma das bases da Dieta Mediterrânica, tem sido «devastado» para dar lugar a «culturas intensivas de regadio».

«Em concelhos como Tavira, tem-se assistido a uma conversão intensa. Já tivemos uma altura dos frutos vermelhos, agora parece que é o abacate que está na moda. Assistimos, nesta equação, a uma omissão completa da Direção Regional de Agricultura e, por inerência, do próprio Governo», acusa Gonçalo Gomes.

 

Anabela Santos – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

Na opinião de Anabela Santos, nos próximos anos, esta questão das agriculturas intensivas necessita mesmo de «muita atenção» por parte das entidades competentes. «O pomar de sequeiro está ao abandono, mas, se houvesse realmente incentivos e vontade política, se calhar as pessoas apostavam nessa cultura», considera.

Ora, esta mudança de paradigma para as produções intensivas acarreta outro problema: o da água e dos usos que fazemos deste recurso cada vez mais escasso.

Por exemplo, as culturas do abacate são «altamente exigentes em termos de rega». Isto numa região em que as barragens estão com níveis baixos e onde grande parte do território está na situação de seca extrema ou severa.

Segundo dados de 6 de Setembro, da empresa Águas do Algarve, na albufeira de Odelouca, a percentagem de água disponível atingia apenas 24,25% do volume útil total. Em Odeleite, era de 32,22%, e, no Beliche, cifrava-se nos 28,47%.

Para Gonçalo Gomes, a região tem «mantido uma atitude displicente face à utilização da água. Quer nos usos que lhe dá, quer na maneira como a gere».

«Nas escolhas que fazemos para os jardins, continuamos a apostar muito em relvados e em tipologias que utilizam muito água, sem que tal o justifique», explica.

De acordo com os dados da Pordata, no Algarve, a água distribuída pela rede pública aumentou de 42.352 metros cúbicos, em 1995, para 48.811 , em 2017. Quanto à questão das perdas de água, «continua a ser preocupante em alguns concelhos».

Segundo os números da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos, no Algarve a média regional de perdas de água é 183 litros diários.

Tal acontece numa região que caminha para «o agravamento das situações de seca», na opinião de Gonçalo Gomes.

«Não necessariamente devido à falta de precipitação, mas também por causa da distribuição dessa chuva ao longo do ano. Imaginemos que até tínhamos um ano bom de precipitação no Algarve. Se ele for todo concentrado num pequeno período de tempo, só nos vai dizer uma coisa: o solo vai absorver uma parte, as barragens outra, mas haverá muita que se perde», explica.

Na opinião do arquiteto paisagista, estamos na presença de «um problema clássico de Portugal». «Só nos preocupamos em gerir quando já não temos o recurso. Agora que se diz que as reservas de água só durarão até ao final do ano é que pensamos em gerir? Isso devia ter acontecido quando os armazenamentos eram maiores», critica.

Nesta análise detalhada ao panorama das questões ambientais, tanto Gonçalo Gomes como Anabela Santos notam que, apesar das poucas mudanças práticas, o discurso das entidades competentes é hoje outro.

«As Câmaras Municipais, por exemplo, estão mais recetivas e mais sensíveis em falar das questões do ambiente», diz a bióloga e dirigente da Almargem. Só que agora é tempo «de passar das palavras às ações», acrescenta, prontamente.

«Os municípios passaram a ter um pouco mais de atenção, pelo menos nos discursos. Aí temos uma evolução positiva, por exemplo na atenção aos fogos. Começou-se a falar nas questões da paisagem e o discurso das alterações climáticas entrou em força na agenda política, mas, na prática, acho que tarda em haver impacto», reforça Gonçalo Gomes.

Atendendo aos dados da Pordata, os gastos dos Municípios nos domínios da gestão e proteção do ambiente aumentaram. Eram de 25,329 milhões de euros em 1993 e passaram a ser de 41,565 milhões no ano de 2017.

O concelho de Loulé é apontado por ambos os entrevistados como um exemplo, mas também realçam que é preciso ser-se coerente. Nesta equação, o modelo de financiamento das autarquias também não ajuda: «continuam a depender muito da edificação».

«Nos concelhos litorais, por exemplo, não vemos que os modelos territoriais que estão a ser pensados contemplem a adaptação às alterações climáticas. Continuamos a assistir às intenções de massificação do litoral. Tudo o que são zonas sensíveis do ponto geofísico continuam a ser apetecíveis para a construção maciça», refere Gonçalo Gomes.

O arquiteto paisagista também aponta a «dendrofobia» (medo de árvores ou aversão às árvores) que parece ser comum a tantas autarquias.

«As árvores parece que passaram a ser um elemento proscrito. As Câmaras gerem os espaços verdes de uma forma perfeitamente desastrosa e vão depauperando o capital vegetal das cidades», considera.

 

 

Mas, nestes últimos quatro anos, houve um grande tema que dominou o panorama ambiental – e até social e político – do Algarve: a exploração de hidrocarbonetos.

«Foi a questão dos últimos anos. Havendo metas, devido às alterações climáticas, assumidas pelo Governo, como é que ainda pensámos sequer na exploração de petróleo?», questiona Anabela Santos.

Gonçalo Gomes vai mais longe e acusa mesmo o Governo de se ter portado «muito mal com o Algarve». «Este foi um processo marcante, nesta legislatura, para a região. Fala-se em descarbonizar a economia e apostar em fontes alternativas de energia, há a questão do Acordo de Paris, e depois surgiu esta ideia da extração de petróleo, totalmente oposta», diz.

Só que tudo isto contribuiu, no entender de Anabela Santos e Gonçalo Gomes, para um movimento de contestação «como há muito não se via».

«Gerou-se uma consciência regional muito intensa e esse foi um sinal positivo da parte da sociedade civil», considera o arquiteto paisagista.

Para Anabela Santos, a PALP (Plataforma Algarve Livre de Petróleo) foi a grande responsável por «unir tanta gente em torno desta luta».

«No início, dificilmente se acharia que seria possível fazer alguma coisa, mas a verdade é que conseguimos. E, sim, notámos, nestes últimos anos, um maior envolvimento das pessoas nestas questões do ambiente e do ordenamento do território», acrescenta.

A 6 de Outubro, os portugueses voltam a ser chamados a eleger os deputados à Assembleia da República e, por conseguinte, um Governo. Seja ele de esquerda, de direita ou do centro, o que é preciso mudar nestas questões do ambiente para o Algarve?

Na opinião de Gonçalo Gomes, a chave é aprender, de uma vez por todas, «a respeitar os limites biofísicos».

«Os sistemas naturais, tal como o organismo de uma pessoa, têm alguns sistemas fundamentais e nós, se queremos ter uma região saudável, temos de respeitar esses limites», diz.

«Não se trata de não fazer nada, em termos de construção, por exemplo. Trata-se de saber o que podemos efetivamente fazer de forma equilibrada. Temos a massificação da ocupação litoral, mesmo com o cenário da subida do nível médio do mar. O Algarve não tem indústria e não se pode dizer que seja um grande polo de geração de emissões, mas temos de fazer tudo ao nível da adaptação às alterações climáticas. A nossa exposição é tremenda», acrescenta.

Neste sentido, a aposta nas energias renováveis é também estratégica, nomeadamente na das marés, uma área «ainda pouco explorada».

 

Moinho de maré na Quinta de Marim

 

«O Algarve tinha uma realidade que eram os moinhos de maré. Não consigo compreender como ainda não estamos a estudar as potencialidades desses moinhos para a obtenção de energia. A Universidade do Algarve já faz algum trabalho de investigação, mas acho que esta hipótese tarda em ser abraçada pelas instituições», exemplifica.

Anabela Santos também é categórica: as mudanças que possam existir dependem «dos deputados que vamos eleger».

«É pena que às vezes se veja alguma inatividade dos parlamentares algarvios nestas questões. Gostaria que o Governo e os deputados algarvios tivessem sensibilidade, na próxima legislatura, para as questões do ambiente», considera.

Mas será que ainda vamos a tempo de mudar o paradigma e de corrigir os erros?

«A capacidade humana é tremenda. Veremos. A mim, parece-me que tudo o que seja evitar a massificação do litoral é dinheiro em caixa porque, tudo o que lá metermos, vamos ter de tirar», diz Gonçalo Gomes.

«Acho que estamos todos um pouco fartos do betão. É preciso virar essa página, apesar dos problemas que agora temos com a habitação. Eu acho que, cada vez mais, as pessoas gostam de usufruir dos espaços, da natureza, e, também por isso, se informam mais e tomam mais consciência destas questões do ambiente», conclui Anabela Santos.

 

Infografia: Nuno Costa | Sul Informação

 

 

Este conteúdo integra o projeto “Eleições em Rede 2019”, do qual o Sul Informação faz parte.

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