De uma civilização cada vez mais incivilizada

Triste sentimento, este, que em vez da xenofilia descamba na xenofobia que rapidamente transforma o medo em ódio

Li uma crónica do Nelson Dias intitulada «O Naufrágio da Humanidade», recentemente publicada na revista Algarve Informativo. Tocou-me tanto, mas tanto, que senti vontade de conversar com ele. Aqui fica o resultado dessa conversa.

Na base, está um exercício de imaginação que me obriguei a fazer: quando as coisas não acontecem ao nosso lado, a imaginação é um forte instrumento para despertar a empatia. Da empatia nasce a indignação em nome do outro para dentro do qual a imaginação nos projetou. Por breves momentos, somos o outro e, por isso, quando regressamos a nós, já não somos os mesmos.

Convido-vos agora ao mesmo exercício. Nas margens do rio incerto, cada companheiro que se possa ganhar é um tesouro que não deve ser desperdiçado.

Já são mais de 70 milhões, dos quais se estima que metade sejam crianças e jovens. Fogem da pobreza extrema, da violência, da perseguição política, da guerra e de outras sevícias semelhantes, movidos pela esperança de alcançar abrigo onde possam viver dignamente e em paz. Muitos arriscam e perdem a própria vida, tal a situação desesperada em que se encontram. Têm nomes, afetos, profissões, sonhos, medos, famílias, vícios e virtudes – mas disso, que faz deles humanos, nada sabemos.

No entanto, nada os distingue de cada um de nós, a não ser a extrema vulnerabilidade em que ficam no dia em que decidem partir em busca da dignidade perdida – ou nunca experimentada. Para trás deixam tudo – mesmo quando, do ponto de vista material, esse tudo é nada.

Trazem no corpo a dor e a exaustão. Muitos carregam, ainda, a memória do horror. Ou nunca conheceram ou perderam a felicidade tal como a definimos do lado de cá, mas conhecem como ninguém o esterco de uma infelicidade muito diferente daquela que somos capazes de descrever e nomear. Aqueles de entre eles que enfrentaram a Morte ou a sentiram rondar por perto, trazem nos olhos a visão da destruição a que escaparam, mas em que muitos outros soçobraram.

São testemunhas em carne viva da ausência de um pacto universal que verdadeiramente nos irmane, são a prova sobrevivente do pior de que, enquanto espécie, somos capazes. A sua simples existência é incómoda, pondo em causa o devir dos melhores ideais que a Humanidade alguma vez foi capaz de conceber, porque foi em nome da negação desumana desses ideais que a desgraça os derrubou.

Conhecerão o significado profundo da condição a que chamamos «bem-estar»? Aqueles que o perderam ainda possuem a memória, agora insuportável, do conforto, da segurança e da alegria que ele proporciona. Para eles, onde antes havia um edifício solidamente alicerçado, abriu-se uma larga e profunda cova. Na mente, no coração, no estômago. Os outros, esses exilados à nascença da espécie humana, só o conhecem de ouvir contar. Não sabem que também lá está a cova, porque nunca lá tiveram um edifício.

Para os primeiros, ele é objetivo de reconquista. Para os outros, sonho apenas entrevisto. Mas, antes de tudo, move-os a todos a esperança de obter – e a isso têm direito absoluto – alimentos nutritivos; água potável; tratamento para as doenças de que padecem; habitação segura; educação; em suma, condições básicas consagradas na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Conhecerão eles o significado profundo daquilo a que chamamos «direitos humanos» e o seu direito absoluto a vê-los realizados? Uma parte, aquela que é movida pela urgência de ultrapassar a perda incalculável que lhe aconteceu, sim. Mas o desabamento da estrutura social, económica e afetiva em que viviam e a sua sujeição à indignidade seguramente arredou todas as certezas antes existentes. Outra parte, aquela que foi criada na normalização da miséria indigna, não.

E o adjetivo «indigno» só pode ser de quem ainda usufrui daqueles direitos, já que a miséria de que aqui se fala só se torna inaceitável à luz da consciência da universalidade desses direitos em função da própria condição de quem observa.

Para aqueles que de longe os veem tentar galgar muros quase intransponíveis, atravessar oceanos e rios tumultuosos, são xenoi, plural da antiga palavra grega xenos, que tanto podia significar «estrangeiro», como «inimigo», como, ainda, «convidado amigo». A palavra «xenofobia» não só não contempla este último como o nega liminarmente: ninguém tem medo («fobia») de um convidado amigo. Ficaram apenas os outros dois, «estrangeiro» e «inimigo», sendo que a xenofobia impregna o primeiro dos atributos do segundo: se é «estrangeiro», é «inimigo».

Triste sentimento, este, que em vez da xenofilia descamba na xenofobia que rapidamente transforma o medo em ódio. Trata-se de outra forma de miséria, disfarçada debaixo das vestes e dos ornamentos desta civilização que tanto apregoa os «bons valores», mas é incapaz de os praticar consistentemente. É como, da canção inspiradora, saber de cor a letra sem lhe conhecer a música.

«Terroristas», «traficantes de droga», «criminosos», «violadores». Não tenho ouvido «pedófilos», mas também serviria os propósitos de atiçar as alcateias selvagens contra eles. Sempre descritos como massa informe e anónima, com vista à sua despersonalização e à desresponsabilização de quem atiça e se deixa atiçar, sobre eles são lançados os epítetos que generalizam o que deste lado de cá não aceitaríamos que fosse generalizado.

E assim se tornam os alvos fáceis da extrema-direita nacionalista, com grande sucesso eleitoral na Hungria, em Itália, nos Estados Unidos da América, em França, ou seja, no coração desta civilização cada vez mais incivilizada.

Por cá, o ensaio geral já começou, através da voz grosseira do Chega e das crónicas que pretendem dar-lhe suporte pseudo-histórico. E porque não os quero tratar como eles tratam os meus irmãos refugiados, individualizo os mais notórios: André Ventura e a sua tribo; Fátima Bonifácio e a sua trupe.

Confesso-vos um sentimento de que não me quero libertar: sou orgulhosamente «xenófobo» relativamente aos lobos que atiçam as alcateias. Eles, sim, merecem o epíteto de «estrangeiros inimigos», porque se comportam como guerreiros transportados nas entranhas de um Cavalo de Troia que já entrou pelos portões do castelo que julgávamos amuralhado.

Ah, Europa, que falta nos faz o teu filho Radamante!!!

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