O cão de Pavlov está de volta!

Para lá do nosso algoritmo bioquímico haverá uma nova espécie humana e novas variedades em construção?

A crónica desta semana foi-me sugerida pelo artigo da revista do Expresso, intitulado “Somos todos dados”, da autoria de David Samuels, publicado na última edição do semanário.

Ao ler o artigo, lembrei-me do “cão de Pavlov” e da sua teoria do reflexo condicionado (Ivan Pavlov, fisiologista russo Prémio Nobel da Medicina em 1904), acerca do papel do condicionamento na psicologia do comportamento.

Em termos simples, algumas respostas comportamentais são reflexos incondicionados, por serem inatas e não aprendidas, mas outras são reflexos condicionados aprendidos por indução ou sugestão, tal como foi revelado pelas experiências com o “cão de Pavlov”.

Resta dizer que o papel do condicionamento na psicologia do comportamento está no centro das ciências cognitivas e da revolução digital e algorítmica que aí vem.

Mais grave ainda, como é dito no artigo do Expresso, quando os grandes conglomerados tecnológicos se tornam cúmplices de Estados securitários é a democracia e as liberdades individuais que ficam postas em causa.

Num tempo em que a radicalização social alimentada por movimentos populistas cresce um pouco por todo o lado e suporta um número crescente de Estados autoritários esta faceta menos benevolente da revolução digital não deixa de ser inquietante.

 

A nossa pegada digital e a economia do Big Data

A nossa pegada digital é uma espécie de cadastro pessoal. Nos atos de consumo, na luta política e eleitoral, nas nossas escolhas socioprofissionais, nas relações de amizade e amorosas, em todas as causas em que estamos envolvidos, a nossa trajetória pessoal e respetivos comportamentos ficam registados em algum tipo de dispositivo tecno-digital.

Estamos em plena digitalização da sociedade, das pessoas e das coisas. Doravante, tudo é inteligente “à maneira digital”: a casa, o carro, a empresa, o escritório, a escola, a estrada, o hospital, etc. Tudo adquire vida própria, o real é virtual e o virtual é real, e tudo debita informação a todo o tempo. Este é o futuro radioso prometido pela economia da informação, da análise de dados, do Big Data ou religião do dataísmo.

Depois da mão divina e da mão invisível do mercado, eis-nos chegados à mão sedutora e benevolente do Big Data. A economia do Big Data é, se quisermos, a mão invisível da liberdade de circulação da informação. Mais dados, sempre mais dados, e estaremos cada mais próximos da verdade, nesse grande bazar dos processadores de dados, o universo dos algoritmos e dos meta-algoritmos.

O racional do dataísmo é encontrar uma norma-padrão de comportamento e, a partir daí, prevenir contra a incerteza e o desvio que a nossa imperfeita racionalidade biológica sempre transposta. A grande ambição da inteligência racional do dataísmo é substituir a “nossa imperfeição”, afinal, a nossa consciência emocional e individual e a nossa intersubjetividade.

Neste sentido, com muita benevolência, podemos dizer que os algoritmos são uma espécie de irmãos mais velhos, se quisermos, narradores autorizados da nossa existência. É melhor segui-los!!

Num oceano de informação só esses calculadores universais, os algoritmos, têm a capacidade analítica para processar e tratar tantos “dados irrelevantes” de natureza infra pessoal. A economia do Big Data constrói assim uma “linguagem comum” e abre a porta a uma nova teoria do equilíbrio geral, uma teoria dos meta-dados que instituem uma personalização sem sujeito ou, então, várias personalizações ou trajetórias possíveis onde nós (ou alguns de nós) “podemos escolher as nossas narrativas pessoais”. Enfim, uma governação sustentada em algoritmos, uma trajetória sem sobressaltos, a história do futuro à nossa frente com uma “impressionante claridade”.

Eis a nova teoria do reflexo condicionado na era digital, o “novo cão de Pavlov”, que obedecerá, muito provavelmente, às ordens de um assistente inteligente (AI) produzido pela inteligência artificial (IA).

Neste contexto geral, nós somos, seres humanos, uma espécie de algoritmo biológico. A partir de agora, no universo virtual do Big Data, nós passámos a ter, também, uma espécie de personal coach, um assistente inteligente, um algoritmo, concebidos a pensar no meu aperfeiçoamento pessoal. Tenho, pois, um irmão gémeo algorítmico que me segreda ao ouvido as últimas novidades tecno-humanistas do Big Data e do Dataísmo. Será isto o futuro?

 

A expropriação da linguagem

Uma outra faceta do problema tem a ver com o que aqui designo como “a expropriação da linguagem”. De facto, a linguagem também já não é o que costumava ser, uma semântica a tempo inteiro. Ela foi expropriada. Hoje em dia já não falamos uns com os outros, hoje em dia comunicamos uns com os outros por via de um qualquer dispositivo tecnológico ou digital. Ao simplificarmos a linguagem simplificamos, também, a leitura da realidade e, portanto, o seu sentido e significado.

Como diz David Samuels, a “revolução das tecnologias digitais poderá revelar-se ainda mais poderosa do que a revolução da imprensa de Gutenberg e provavelmente mais sangrenta”. Com efeito, neste momento, a imprensa livre que fundou o 4º poder no século XX já está a sangrar e muita dessa imprensa está mesmo à beira do colapso. E onde está a imprensa livre para nos proteger e avisar do condicionamento algorítmico que irá comandar e recomendar o nosso comportamento por via dos nossos reflexos condicionados?

Tudo leva a crer que a semântica da web já está em rota de colisão com os nossos reflexos incondicionados, desajeitados e desalinhados, livres afinal. E se, em desespero de causa, trocarmos a irreverência da liberdade pela reverência da segurança.

É preciso lembrar, a este propósito, que os algoritmos tanto podem ser uma guarda pretoriana de um candidato a ditador, como a guarda avançada de um capitalismo global e predador como, ainda, uma rede distribuída de proximidade ao serviço de uma sociedade mais igual e democrática.

Ao ser tudo isto, o algoritmo revela aquilo que nós já sabíamos, isto é, a sua funcionalidade instrumental ao serviço de “homens sem rosto”, que, geralmente, desprezam os limites da política e as responsabilidades públicas que lhe são inerentes.

No resto, a semântica própria dos vários veículos tecno-digitais, imprensa online e redes sociais oferece-nos muito por onde escolher: linguagem publicitária e buzzwords para todos os gostos, as funcionalidades sms, tweets, blogs e emails, as linguagens próprias dos líderes do comentário e da escrita de opinião e até, imagine-se, o discurso politicamente correto.

Ou, como diz António Bagão Félix, “em curto-circuitos axiologicamente indigentes, tuita-se, instagrama-se, facebooka-se, numa mistura de pobreza linguística, sintaxe primária, aversão ao raciocínio profundo e desprezo pela memória” (Público, 30 de novembro). No final, não há como impedir que a mensagem converta o mensageiro. O cão de Pavlov voltou a salivar.

 

Notas Finais

Na revolução digital em curso, a troca eventual de liberdade por segurança é muito inquietante. De facto, estão em marcha alterações culturais e civilizacionais de grande amplitude que apenas aguardam uma oportunidade para explodir à superfície.

Da China, chega-nos o “sistema de crédito social”: a obediência é premiada com um crédito social, a desobediência é sancionada com um débito social. O algoritmo-mestre do Estado e do Partido Único zela e vela pelos reflexos condicionados e pela servidão voluntária dos cidadãos.

Uma última reflexão sobre o humanismo que vamos reabrir para lá dos algoritmos, do Big Data e do dataísmo: Para lá do nosso algoritmo bioquímico haverá uma nova espécie humana e novas variedades em construção?

Para lá dos modelos matemáticos da sociedade algorítmica, quem são os homens sem rosto que nos governam e qual é o grau de responsabilidade pública e democrática que eles nos devem?

E sobre a governança da sociedade algorítmica, como é que o pensamento e a ação políticos lidam com estas novas “corporações do algoritmo, do Big Data e do dataísmo”?

O que fazer com a nossa minúscula ilha de consciência, ou seja, será a inteligência artificial e o pós-humanismo uma transição para outros universos de sentido e de estados mentais?

Em síntese final, depois de tanto acaso e necessidade, de tanto determinismo e aleatoriedade, de tanta arte, política e filosofia, estaremos nós reféns da governação algorítmica, seremos nós os novos crentes do dataísmo?

E nesta encruzilhada do tempo, onde fica o nosso livre-arbítrio e a incerteza sobre o futuro, afinal, a nossa pequena margem de liberdade?

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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