Uma Magna Carta para a WEB

Meio século depois, o mito libertário da internet já se esfumou

Terminou mais uma edição da Web Summit, Lisboa 2018. Os temas deste ano foram muito variados, mas os riscos e as limitações do uso da tecnologia digital foram especialmente visados, por exemplo: as notícias falsas que circulam nas redes sociais e os perigos para a democracia, a privacidade, os dados pessoais e a colonização da sociedade da informação, a infoexclusão e a discriminação digital, a inteligência artificial e a robotização da sociedade, os veículos autónomos, os carros voadores e a mobilidade nas cidades de amanhã, os objetivos do desenvolvimento sustentável e a contribuição das tecnologias verdes.

Foram muitos os oradores, mas algumas afirmações, pela sua assertividade, foram especialmente reveladoras, eis alguns exemplos:

Presidente da Microsoft: “Nós tornámo-nos um campo de batalha

Denunciador do caso Cambridge Analytica: “O Facebook está a fazer um clone digital da nossa sociedade

Vice-presidente da Google: “Temos a responsabilidade de manter os dados pessoais seguros

Comissária Europeia da Justiça: “Cambridge Analytica foi uma brutal interferência na nossa privacidade

Presidente da Samsung: “Os dados são o novo petróleo e a inteligência artificial é o seu motor

Presidente da WWW Foundation: “Temos que aplicar os direitos humanos ao universo digital

De facto, meio século depois, o mito libertário da internet já se esfumou. Neste momento, a nação-internet passa por uma grande bifurcação.

De um lado, a multidão, os cidadãos utilizadores, cidadãos anónimos e inocentes que aceitaram uma “servidão voluntária” e foram capturados por um número crescente de dispositivos tecnológicos, de outro, os gigantes tecnológicos das grandes plataformas administrando uma imensa economia das multidões e gerando lucros monumentais que canalizam para paraísos fiscais e sociedades offshores.

O problema hoje – que na sua essência é um problema de extra-territorialidade fiscal e financeira e repartição do poder – reside em saber, em primeiro lugar, como regular estes mercados emergentes em benefício das sociedades e das pessoas individuais e, em segundo lugar, como regressar a uma “internet dos cidadãos”, mais bem distribuída, que nos possa conduzir até à sociedade colaborativa, aos ambientes inteligentes e aos bens comuns da humanidade enquanto instrumentos de realização dos direitos fundamentais, na linha, justamente, do que diz o presidente da WWW Foundation.

No futuro próximo, a evolução mais interessante dirá respeito, estou em crer, às múltiplas formas de bifurcação da era digital: entre redes distribuídas e descentralizadas herdeiras de uma internet primordial, colaborativa e cidadã, por um lado, e redes centralizadas ao serviço de um hipercapitalismo das grandes plataformas tecnológicas e empresariais, por outro.

Ao mesmo tempo, no plano empírico das redes sociais da era digital estamos a fazer o caminho que nos levará, gradualmente, da democracia representativa à democracia participativa e desta à democracia interativa. No próximo futuro, estou convencido, a eficácia, a eficiência e a equidade de uma organização social e de uma nação-estado dependerão, em cada momento, do equilíbrio dinâmico entre estas três geografias e geometrias democráticas.

É aqui que nos encontramos hoje, em plena virtualização da sociedade pelas tecnologias digitais: a uberização e a plataformização das atividades, a inteligência artificial e a robotização das operações, a smartificação dos ambientes e dos territórios, a pluriatividade e o plurirrendimento dos mercados de trabalho por causa da sua precarização, a emergência de um imenso quarto setor colaborativo e solidário para acomodar, justamente, esse imenso “precariado” em trânsito constante.

Todos estes fatores de inovação acrescentam realidade à realidade já existente (realidade aumentada), inteligência à inteligência já existente (inteligência artificial) e homem ao homem já existente (homem aumentado).

A bifurcação da era digital significa, ainda, que temos pela frente uma batalha gigantesca, qual seja, a de estreitar o abismo que se abre entre sociedades e territórios com e sem acesso às tecnologias digitais, mas, também, entre sociedades e territórios com e sem humanidade. Em pano de fundo, a mesma matéria-prima e os mesmos transformadores.

Doravante, dados infra-pessoais e os seus processadores universais, os algoritmos, irão derivar a nossa pegada digital. É a sociedade e a governação algorítmicas que chegam.

Por estas razões, um longo caminho espera a nação-internet antes de se tornar cidadã, independente e verdadeiramente colaborativa. Até lá a nação-internet continuará a ser colonizada pelos grandes conglomerados tecnológicos que usarão e abusarão da sua posição dominante para afirmar o princípio da extra-territorialidade fiscal e financeira.

Nessa trajetória, mais ou menos longa, continuaremos a ser, muito provavelmente, os idiotas úteis dos mercados emergentes que somos hoje e enquanto os níveis de “adição digital” não baixarem vamos continuar a acreditar que temos acesso direto à realidade e à verdade, sem necessidade de qualquer tipo de intermediação ou representação política, pois tudo o que é necessário já estará nos nossos “menus de aplicações”.

Muito provavelmente, a próxima colisão desta revolução tecnológica será a propósito das políticas de regulação para os mercados digitais, de que também se falou na Web Summit deste ano.

Neste sentido, os conglomerados tecnológicos não devem abusar da sua vertente extra-territorial nem subestimar os poderes do estado-administração em lidar com a revolução digital.

Se, do lado das grandes plataformas, se pode falar em “colonização digital”, do lado dos estados nacionais pode haver a tentação de “balcanização da internet”, isto é, de circunscrever uma internet nacional de acordo com a lei, a idiossincrasia e a cultura nacionais.

Veja-se, por exemplo, as pesadas multas aplicadas pela Comissão Europeia sobre as grandes plataformas tecnológicas por distorção das regras de concorrência e violação da privacidade dos cidadãos.

A proposta de Tim Berners-Lee, o fundador da WWW em 1989, para criar uma magna carta a fim de salvar a internet, marcou a edição deste ano da Web Summit.

No mesmo sentido, foi salientado o acesso à internet como um super direito que precisa de ser garantido, pois quem não tem acesso fica também excluído da educação, da saúde e da cultura.

Neste contexto, a declaração universal dos direitos humanos precisa de ser interpretada e aplicada aos direitos digitais em toda a sua extensão. Além disso, não nos podemos esquecer de que metade do mundo ainda não está conectado à internet.

Depois da carta aberta de janeiro de 2015 subscrita por vários cientistas, com Stephen Hawking à cabeça, sobre os perigos de algumas aplicações da inteligência artificial, surge agora a proposta de uma Magna Carta do fundador da WWW Tim Berners Lee acerca de um conjunto de princípios que governos, empresas e cidadãos devem cumprir para garantir uma internet livre, aberta e um direito básico para todos.

Até à data já subscreveram o acordo organizações da sociedade civil, empresas como a Google e o Facebook e o governo francês.

 

Para memória futura, aqui ficam os princípios dessa magna carta:

 

Uma Magna Carta para a WEB (tradução livre do inglês)

Princípios base
A WEB foi concebida para juntar as pessoas e tornar o conhecimento acessível a todos.
Cada um de nós tem um papel a desempenhar em benefício da humanidade.
Ao cumprir estes nove princípios, governos, empresas e cidadãos de todo o mundo asseguram uma WEB livre e aberta como um bem público fundamental e um direito básico para todos.

Os Governos
Asseguram que todos e cada um, estejam onde estiverem, possam estar conectados à internet de modo a participar ativamente nas atividades online.
Garantem uma internet acessível, a todo o tempo, de tal modo que ninguém fique impedido de um acesso pleno à rede.
Asseguram o respeito pelo direito fundamental à privacidade, de tal modo que todos utilizem a internet livremente, sem medos e em segurança

As Empresas
Fornecem uma internet barata e acessível a todos, de tal modo que ninguém seja excluído.
Respeitam os dados pessoais e a privacidade dos utilizadores, a fim de que os cidadãos controlem a sua vida online.
Desenvolvem tecnologias que servem e beneficiam a humanidade, como um bem comum ao serviço dos cidadãos.

Os Cidadãos
São criadores e colaboradores na internet, em nome de uma rede mais rica de conteúdos úteis para todos.
Constroem comunidades humanas fortes, em nome do respeito e da dignidade de todos, também no universo online.
Protegem a internet como um bem público global fundamental, livre a aberta, agora e no futuro.

 

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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