Crónica do Sudoeste Peninsular: Sobre o Brexit

A sociedade inglesa está profundamente dividida sobre a bondade do Brexit e as suas reais consequências

No dia em que escrevo, 19 de novembro, Theresa May ainda é primeira-ministra do Reino Unido. O “acordo técnico” obtido com a União Europeia suscitou um verdadeiro tumulto, no governo (seis demissões), no Partido Conservador (está em curso de preparação uma moção de desconfiança) e na Câmara dos Comuns, onde ninguém sabe quem vota o quê e como.

Mas a sociedade inglesa está, também, profundamente dividida sobre a bondade do Brexit e as suas reais consequências. Vejamos alguns tópicos do “acordo técnico”, sendo certo que esta próxima semana será decisiva para chegar a um acordo político.

Paradoxalmente, a fragilidade política de Theresa May poderá ser a sua principal vantagem e na medida em que Bruxelas também precisa de um acordo alguns ajustamentos finais poderão ser obtidos até ao dia 25 de novembro, dia do Conselho Europeu.

 

I) O calendário do Brexit

Se tudo decorrer conforme está previsto o calendário do Brexit seguirá a seguinte tramitação:

– Cimeira europeia extraordinária de 24 e 25 de novembro, os estados membros ratificam o acordo de saída com o Reino Unido

– Em dezembro, e havendo acordo entre Bruxelas e Londres, o parlamento britânico deverá pronunciar-se. Pode haver rejeição da câmara baixa do parlamento e se for o caso três situações são possíveis de acontecer: queda do governo e eleições antecipadas, disputa da liderança no partido conservador, convocação de um segundo referendo sobre a saída do reino Unido.

– Conselho Europeu de 13 e 14 de dezembro. Tendo havido acordo em novembro na cimeira extraordinária, o Conselho servirá para afinar os últimos pormenores.

– Parlamento Europeu em janeiro/fevereiro de 2019. Tendo havido acordo nas reuniões anteriores, o Parlamento Europeu será chamado a pronunciar-se em janeiro ou fevereiro.

– Saída formal do Reino Unido da União Europeia, 29 de março de 2019. Início das negociações entre as duas partes para um acordo sobre o futuro das suas relações. Começa um período de transição.

– Em julho de 2020. Avaliação do estado das negociações sobre o futuro das relações.

– Fim do período de transição, 31 de dezembro 2020. Se não for obtido qualquer acordo, as partes podem estender ainda o período de transição.

 

II) Os termos do acordo de saída

O acordo técnico conseguido pela equipa de negociadores ainda não é um acordo político final, mas já suscita muita controvérsia e demissões em cadeia no governo britânico. Vejamos os tópicos principais do acordo de forma muito simplificada.

– Compromisso financeiro
Londres fica obrigado a manter as suas obrigações financeiras relativas ao quadro financeiro plurianual 2014-2020. Isto significa que até ao final do período de transição, durante 2019 e 2020, Londres deverá transferir cerca de 15 mil milhões de euros anuais para o orçamento europeu.

– Direitos dos cidadãos
Vigora o princípio do statu quo, isto é, não são alterados os direitos de residência e proteção social de todos os cidadãos, europeus e britânicos.

– A fronteira entre as duas Irlandas
Impedir o retorno da fronteira física e preservar o acordo de paz entre as duas Irlandas é uma linha vermelha. Para tal, está prevista uma cláusula de salvaguarda que pode ser acionada em último recurso (designada de backstop) para impedir o regresso da fronteira física. Assim, tudo leva a crer que haverá um tratamento diferenciado para a Irlanda do Norte que terá de manter um alinhamento total com as normas da EU para não comprometer o princípio da circulação entre as duas Irlandas. Isto significa que, ao contrário da Grã-Bretanha, a Irlanda do Norte continuará a observar todas as regras do mercado único até à entrada em vigor de um novo tratado de livre comércio entre o Reino Unido e a União Europeia.

– A união aduaneira
Manter uma “união aduaneira temporária” foi a forma encontrada para conciliar a integridade do território do Reino Unido e a liberdade de circulação entre as duas Irlandas, pelo menos até julho de 2020, altura em que será feita uma avaliação sobre o progresso das negociações. Nessa altura, e caso não haja qualquer acordo comercial entre Londres e Bruxelas, poderá haver duas possibilidades: uma continuação do período de transição para lá de dezembro de 2020 ou a entrada em vigor de um acordo aduaneiro mínimo para todo o país, mas em que a Irlanda do Norte está mais alinhada com as regras europeias e o Reino Unido se compromete a seguir as regras do mercado único no que diz respeito à “igualdade de condições” de todos os agentes económicos.

 

III) O processo político interno

O processo político interno será igualmente muito complexo e no momento em que escrevo não há quaisquer certezas sobre os próximos episódios.

A controvérsia política gira à volta de “um excesso de união europeia” nos termos do acordo, das normas do mercado único à presença do tribunal de justiça europeu, e isto no preciso momento em que os britânicos já não fazem parte das instituições europeias.

No conjunto, creio, o acordo visa apenas ganhar tempo para encontrar as melhores soluções.Várias hipóteses estão em cima da mesa:

– Theresa May cai por uma moção de desconfiança do seu próprio partido; o partido conservador nomeia outro primeiro-ministro que continuará as negociações,

– Theresa May vê o acordo técnico recusado na câmara dos comuns e demite-se; o partido conservador nomeia outro primeiro-ministro que continuará as negociações,

– Theresa May vê o acordo técnico recusado na câmara dos comuns e demite-se; são anunciadas novas eleições gerais antecipadas,

– Theresa May resiste a todos os obstáculos e recebe um mandato político da câmara dos comuns para continuar a negociar em termos mais duros,

– Theresa May vê o acordo técnico recusado pela câmara dos comuns e, no final, é anunciado um novo referendo.

 

IV) A declaração sobre o futuro das relações após a transição da saída

No final do acordo técnico obtido entre Londres e Bruxelas foi, também, publicada uma declaração sobre as linhas gerais do futuro relacionamento entre as duas partes, isto é, em princípio a partir de 2021.

A declaração política de sete páginas, muito generalista, fica aquém do documento detalhado inicialmente pretendido pelo Governo britânico, mas abrange temas como a troca de bens e serviços, defesa ou segurança.

Na área do comércio de bens, a declaração indica o desejo de estabelecer “acordos abrangentes que criem uma zona de comércio livre” que ofereçam “tarifas zero, sem taxas, encargos ou restrições quantitativas” em todos os setores de bens. Projeta, também, medidas “ambiciosas, abrangentes e equilibradas sobre o comércio de serviços e investimentos, proporcionando um nível de liberalização do comércio de serviços muito superior” ao oferecido pelos termos da Organização Mundial do Comércio.

Para o setor de serviços financeiros, um dos pilares da economia britânica, há o compromisso de “preservar a estabilidade financeira, a integridade do mercado e a proteção ao investidor e concorrência”, prometendo levar a cabo avaliações de equivalência até ao final de junho de 2020.

A declaração, feita em linhas gerais, promete também a isenção de vistos para as visitas curtas dos cidadãos britânicos e europeus, acordos para todo o tipo de transportes e cooperação na energia.

Há igualmente referência a uma parceria ampla e profunda em política externa, segurança e defesa, propondo uma “cooperação policial e judiciária abrangente, estreita, equilibrada e recíproca em matéria penal, com vista a fornecer capacidades operacionais sólidas para efeitos de prevenção, investigação, deteção e repressão de infrações penais”.

Esta declaração não é vinculativa, pois as negociações formais só podem começar em 2019, após a saída oficial do Reino Unido da UE, em 29 de março, mas pretende servir de orientação para os trabalhos que se seguem. As duas partes assumem o compromisso de tentar fechar este processo até ao final de 2020, quando acaba o período de transição.

 

V) Nota Final

Era sabido desde o início da negociação que a União Europeia jogava aqui a sua própria sobrevivência, no sentido em era necessário impedir um precedente que abrisse a porta a novas saídas.

Era absolutamente essencial manter uma frente unida entre todos os estados membros durante o período de negociação e era fundamental definir os termos do acordo de tal modo que esta primeira saída não incentivasse outras saídas posteriores, sem que, ao mesmo tempo, tal estratégia não fosse entendida como um bloqueio da negociação.

É importante notar, a propósito, que a união aduaneira de mercadorias, seja transitória ou com um acordo mínimo, não se confunde com o mercado único, com as outras três liberdades (pessoas, serviços e capitais) e com um arsenal imenso de medidas legislativas e regulamentares que, em si mesmo, representa um poderoso elemento de discriminação entre os dois mercados.

É este arsenal legislativo, administrativo e judicial que dá consistência ao mercado único europeu e é extraordinariamente difícil separar algum dos seus elementos sem provocar imediatamente um efeito de carambola sobre os restantes.

Esta é razão pela qual haverá, inevitavelmente, uma larga zona de contencioso entre as duas partes e, logo, a necessidade de criar, tão cedo quanto possível, mecanismos de diálogo e consulta permanentes e mesmo de arbitragem que impeçam a acumulação dos problemas durante a transição e após a transição.

Voltarei ao assunto numa das próximas crónicas.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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