Algarve, uma região-cidade ou um arquipélago municipal?

Mais uma Crónica do Sudoeste Peninsular da autoria do professor António Covas

As próximas décadas reservam-nos grandes incógnitas e grandes transformações. A transição ecológica e a incógnita das alterações climáticas (o advento de uma nova era geoclimática, o Antropoceno). A transição digital e a incógnita da inteligência artificial (o advento do pós-humanismo e do transumanismo). A transição produtiva e a incógnita das migrações (de pessoas, bens, serviços e capitais, o advento de uma nova geoeconomia e geopolítica).

A intuição diz-me que a governação regional do futuro não caberá dentro de um qualquer modelo de desenvolvimento conceptualmente conhecido ou idealizado. Em vez disso, é muito provável que a região-cidade do Algarve (450 mil habitantes) seja tomada pela vertigem dos acontecimentos e/ou pelas decisões de circunstância.

Por outras palavras, a região-cidade do Algarve oscilará entre um “princípio de ordem”, sob a forma de um modelo institucionalizado de governação regional (o “modelo coordenativo” das CCDR e/ou o “modelo intermunicipal” das CIM), e um “princípio de espontaneidade”, sob a forma de uma inteligência coletiva territorial que emergirá progressivamente na sociedade política local e regional.

A governação regional e a emergência da multiterritorialidade

Do ponto de vista da governação regional, a grande alteração relativamente a períodos anteriores chama-se multiterritorialidade (Covas, 2015). Já não se governa apenas de “dentro para dentro” na lógica de um território-zona (T-Z) mas de “fora para dentro e de dentro para fora” na lógica de um território-rede (T-R), na exata medida em que as redes de fluxos transportam a região para múltiplas latitudes e universos relacionais. A governação regional será, cada vez mais, uma governação multi-escalar e multiníveis, não apenas com territórios materiais, mas, também, com territórios virtuais.

As sociedades mais cosmopolitas, como as regiões turísticas, terão uma perceção do risco muito mais elevada. Acresce que, para lá dos “picos turísticos”, sempre dependentes dos ciclos económicos, o Algarve terá, provavelmente, um crescimento monótono porque não tem grupos económicos regionais com poder suficiente para interpretar uma política de diversificação da sua base económica. A baixa capitalização do empresariado algarvio torna muito difícil realizar políticas alternativas de diversificação da base económica, a menos que a região importe iniciativa empresarial e capital suficiente. E aqui há muito trabalho para a região-cidade realizar.

A grande novidade da próxima geração residirá na denominada “conexão colaborativa” entre comunidades online e offline operada nas redes virtuais de “muitos para muitos”. De facto, a conexão colaborativa alterará, substancialmente, as velhas noções de “stock e dotação” e a região do Algarve, uma região aberta ao mundo, poderá tirar partido dessa diferenciação cosmopolita.

Nesse caso, o território-fluxo da região-cidade do Algarve, para lá do turismo de ocasião, incluirá ainda a comunidade dos residentes estrangeiros, os atores da cooperação transfronteiriça peninsular, a mobilidade de estudantes, investigadores e artistas e a grande variedade dos trabalhadores digitais em trânsito no ciberespaço, entre outros.

A coreografia política da região-cidade do Algarve

O cosmopolitismo da região algarvia promoverá este território-rede como a “região-cidade dos 4C”, uma região com mais conhecimento, criatividade, cultura e cooperação territorial. Assim, nas próximas décadas, viveremos em “estado de topoligamia”, estaremos casados com vários territórios, numa composição variável de materialidade e virtualidade.

Neste ambiente extraordinariamente contingente e complexo, a próxima geração de políticas do território estará muito para lá da simples intermunicipalidade. A coreografia política regional em redor da região-cidade dos 4C terá muitas hipóteses para explorar, muitas delas em estreita complementaridade:

1) A área metropolitana do Algarve
A área metropolitana do Algarve faz sentido no grande mundo transatlântico como porta de entrada e encruzilhada de culturas e civilizações, reclamadas pelo universo latino-americano, pelo aprofundamento da CPLP e pela “promessa do mar ampliado” na sequência do pedido de alargamento da nossa plataforma marítima.

2) O polo tecnológico do Algarve
A sociedade da informação e do conhecimento já aí está, a próxima geração de infraestruturas e equipamentos incluirá polos tecnológicos que, por sua vez, integrarão incubadoras e aceleradoras de start up; é o negócio digital a operar e é, também, não esqueçamos, uma nova fonte de formação de dívida pública.

3) A região-piloto do Algarve
Esta hipótese continua em aberto e está em linha com a tradicional divisão de fronteiras político-administrativas. O nível NUTS II é o território correspondente às atuais CCDR.
É a evolução do chamado “modelo coordenativo” de administração desconcentrada para um modelo “politicamente representativo” que criará no continente cinco regiões administrativas.
A proposta de uma região-piloto pode ser uma jogada política interessante no contexto que se avizinha, os argumentos existem.

4) A comunidade intermunicipal do Algarve
Depois da falência de muitas empresas e fundações municipais e da municipalização de muitas associações de desenvolvimento local, é agora a vez de o Estado Local promover as comunidades intermunicipais.
A comunidade intermunicipal do Algarve pode ser o embrião da região-piloto e/ou da região-cidade do Algarve, se os municípios tiverem essa magnanimidade.

5) As unidades territoriais do PROTAL
A ligação virtuosa entre a cultura virtual, o património natural e cultural e o mundo rural, pode abrir um caminho muito prometedor à ocupação do território, trazendo para o interior do país muitas atividades profissionais e neorurais que serão, amanhã, os promotores da 2ª ruralidade e de outras geografias inovadoras.
As amenidades paisagísticas são um trunfo imenso para a promoção da região-cidade do Algarve.

6) As áreas de baixa densidade do interior algarvio
Esta é a abordagem conservadora das políticas públicas atuais, uma mistura, por vezes confusa e burocrática, de programas e medidas aonde só os mais treinados têm acesso regular e garantido.
Ficamos, por vezes, com a amarga sensação de que os problemas não são para resolver, são para “ir resolvendo”, para manter todo o sistema clientelar em funcionamento.

7) A macrorregião peninsular
A política de coesão territorial da União Europeia consagra uma possibilidade que não tem sido devidamente aproveitada pelos dois países ibéricos, falo das macrorregiões europeias (50 a 60 milhões de habitantes).
A individualidade própria e singular da Península Ibérica no quadro europeu poderia ser um laboratório experimental para a próxima fase da política de coesão territorial europeia.
Os governos dos dois países estão obrigados a zelar por esta possibilidade.

8) A Euro-região do Sudoeste Peninsular (AAA)
A Euro-região do Alentejo, Algarve, Andaluzia (AAA) é outra “entrada” para a política de coesão territorial no quadro peninsular.
Se pensarmos no Algarve e no Alentejo como um grande corredor geoeconómico entre duas áreas metropolitanas – a área metropolitana de Lisboa e a área metropolitana de Sevilha – e, nesse contexto, a oportunidade que é conferida ao aeroporto de Beja, fica justificada a relevância política e económica desta opção.

9) As regiões transfronteiriças e outros agrupamentos territoriais europeus
As regiões transfronteiriças, as euro-cidades e os agrupamentos de cooperação territorial são outras “entradas” para a política de coesão territorial da União Europeia.
Temos à nossa disposição, múltiplas formas de inteligência coletiva territorial e muitas possibilidades de cooperação exterior que podemos ir testando gradualmente no quadro, por exemplo, de um observatório transfronteiriço AAA.

10) A Região-cidade e a plataforma Algarve Sharing
Quarenta e quatro anos depois do 25 de Abril o país continua curvado ao seu urbanismo liliputiano e aos seus arquipélagos municipais.
As redes de cidades pequenas e médias e a formação de cidades-região inteligentes são uma promessa de futuro que pode inspirar uma nova versão do programa nacional da política de ordenamento do território.

Algarve Sharing, uma plataforma colaborativa 4C

Na sociedade da informação e da comunicação, as regiões podem, agora, ser organizadas de outro modo, numa base mais aberta e cosmopolita, tirando partido de várias soluções de base tecnológica e fazendo um caminho inovador em direção à economia da distribuição, da partilha de recursos ociosos, à economia dos bens comuns, à economia social e solidária, à economia de base cooperativa e mutualista.

Quer dizer, podemos olhar para a economia regional do Algarve e visualizar uma rede capilar de relações sociais e empresariais, no interior da qual os diferentes segmentos da economia algarvia coabitam entre si e em estreita colaboração com a economia mais convencional.

Assim, poderemos visualizar, no futuro próximo, uma economia regional composta do seguinte modo:

– Uma economia de bens e serviços, com outra ambição no plano internacional,

– Uma economia dos bens comuns ou utilities, em regime de serviços partilhados multimunicipais ou regionais, alguns em regime de concessão,

– Uma economia de partilha (sharing economy) de recursos ociosos e subutilizados, que pode gerar um suplemento de rendimento para as famílias participantes; o Algarve pode ter a sua própria plataforma para este efeito,

– Uma economia circular que vise organizar a participação dos cidadãos num programa 4R, de redução, reciclagem, reutilização e reparação de recursos residuais; o Algarve pode ter a sua própria plataforma para este efeito,

– Uma economia on-demand para os trabalhadores independentes e os free lancers que se inscrevem numa plataforma tecnológica para o efeito; o Algarve pode ter a sua própria plataforma para o efeito,

– Uma economia colaborativa nas atividades criativas, artísticas e culturais e que, por via de uma plataforma, pode gerir o trabalho intermitente destas atividades, bem como as residências artísticas e culturais criadas para o efeito,

– Uma economia social e solidária pode funcionar, igualmente, através de uma plataforma para a gestão dos bancos do tempo e do trabalho voluntário, bem como para a gestão de uma moeda social.

A região-cidade, através desta meta-plataforma Algarve Sharing, estará, doravante, em melhores condições de regular a economia regional e, em especial, pode ser muito útil na gestão coletiva de mercados de ocasião, bolsas regionais, marcas coletivas, bens comuns, mercados de nicho, contratos de institutional food, bancos do tempo, redes energéticas de microgeração, circuitos curtos de comercialização, uma rede de microcrédito, moedas sociais e complementares, financiamento participativo, espaços de coworking, residências científicas e artísticas, relações internacionais, entre outros exemplos, sempre numa lógica de comunhão e partilha de interesses comuns com a sociedade civil algarvia, e sempre para lá do simples arquipélago intermunicipal.

Notas finais

Sabemos que a Andaluzia tem 7,5 milhões de habitantes, o Alentejo e o Algarve juntos apenas um milhão. Sabemos que há uma desigualdade de estatuto político-institucional entre as duas regiões portuguesas e a comunidade autónoma espanhola. Sabemos que não há, neste momento, pensamento, doutrina e estratégia para uma aventura a três no sudoeste peninsular. Sabemos, enfim, que há um longo caminho a percorrer para esta “jovem comunidade territorial”.

Não obstante, sabemos, também, que a cooperação de proximidade é um recurso relativamente barato e abundante que pode ser usado de forma colaborativa pelos vizinhos.

Sabemos que a turistificação intensiva do sul da península merece mais e melhor atenção conjunta e atuação preventiva. Sabemos que o Alentejo e o Algarve são regiões de transição entre a área metropolitana de Lisboa e a área metropolitana de Sevilha, um corredor que é preciso organizar de modo mais imaginativo.

Sabemos que os parques naturais das três regiões são um ativo valioso que importa preservar e valorizar para o combate que se aproxima face às alterações climáticas.

Sabemos, igualmente, que as três regiões, fazendo parte da fronteira exterior da União Europeia, formam uma comunidade de segurança coletiva, interna e externa, que no futuro próximo prevalecerá, muito provavelmente, sobre tudo o resto (veja-se a proximidade dos fluxos migratórios).

Sabemos, finalmente, que o mediterrâneo e o atlântico, depois das primaveras árabes, das negociações do Brexit, da suspensão do tratado Transatlântico e da presidência Trump podem ter consequências geopolíticas imprevisíveis sobre o sudoeste peninsular.

Tudo razões de sobra para justificar a criação de um posto de observação privilegiado neste canto mais ocidental da península. Apesar do ruído de fundo, causado, sobretudo, pela disputa municipal, falo de uma organização política, uma região-piloto ou região-cidade do Algarve, dotada de órgãos próprios – uma assembleia intermunicipal e/ou regional, um conselho executivo regional e um conselho estratégico regional – e de uma genuína política de relações exteriores à medida da sua ambicionada reputação cosmopolita.

É uma oportunidade única.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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