Crónicas do Sudoeste Peninsular (IV): Vem aí a 2ª ruralidade, vêm aí os neo rurais

Agora que se fala tanto em áreas de baixa densidade e valorização do interior (o Conselho de Ministros acaba de […]

António CovasAgora que se fala tanto em áreas de baixa densidade e valorização do interior (o Conselho de Ministros acaba de aprovar o programa de coesão territorial para essas áreas), agora que o “boom” do turismo pode ser uma oportunidade para criar “uma nova geração de vindouros”, vale a pena uma pequena incursão pelo universo do nosso mundo rural.

O espaço rural é, cada vez menos, um espaço produtor e, cada vez mais, um espaço produzido. O mundo rural é, hoje, um palco imenso onde se desenrolam todas as representações do mundo atual, das mais paroquiais e populares às mais cosmopolitas e sofisticadas.

Em boa verdade, trabalhamos mais com representações do mundo rural, quase todas de proveniência e inspiração urbanas, do que com o “mundo rural propriamente dito”.

Estamos, portanto, numa situação transitória em que os valores específicos da ruralidade, mais tradicionais ou mais modernos, são objeto de apropriação por atores muito diversos que os usam para estratégias muito variadas.

O que importa realçar, nesta altura, é a evidência de que o espaço rural se transmutou de espaço-produtor em espaço-produzido. Esta transmutação, feita essencialmente por agentes citadinos ou urbanos, significa umas vezes verdadeira modernização agrária, outras vezes conservacionismo, outras turistificação vinícola, oleícola ou cinegética, outras vezes, ainda, simples elemento decorativo para “happenings” cosmopolitas, aproveitando a amenidade de uma barragem, de um rio ou outra ocorrência aprazível.

Seja como for, os “futuros” do mundo rural já se anunciam. Eis uma incursão breve a esse tempo do futuro.

 

Os mercados de futuro

Já estamos em condições de enunciar aqueles que serão os principais mercados de futuro do mundo rural. Eles estarão, certamente, na confluência de quatro grandes vetores emergentes: a agroecologia, a biodiversidade, os ecossistemas e as paisagens globais. Eis os seus principais mercados:

– os mercados dos produtos agroecológicos: dos produtos convencionais aos produtos limpos,
– os mercados do carbono: o papel dos fundos de investimento no sequestro do carbono,
– os mercados da água: da água da chuva à água da rede, com passagem pelas águas recicladas,
– os mercados da biodiversidade e dos serviços ecossistémicos: os bens comuns e de mérito ecológico que fazem a notoriedade e a reputação de um lugar,
– os mercados das amenidades: do ordenamento à arquitetura da paisagem, da engenharia biofísica às artes da paisagem,
– os mercados dos 4R: reduzir, reciclar, reparar e reutilizar, os princípios fundamentais de uma nova economia circular e de um comportamento responsável,
– os mercados de nicho e denominação de origem: os produtos com identidade, que importa valorizar a todo o custo porque põem no mapa os territórios mais remotos,
– os mercados dos produtos não-convencionais: o futuro saudável está claramente ao nosso alcance, ou a ligação entre a agricultura biológica e uma política de “institutional food”,
– os mercados da mitigação, adaptação e compensação: as alterações climáticas já aí estão, esta é uma linha fundamental de intervenção para a política pública e privada,
– os mercados dos alimentos funcionais: os milagres da biotecnologia alimentar ao serviço da saúde pública,
– os mercados da microgeração energética: poupança, eficiência e diversificação das fontes, a democracia energética ao nosso alcance,
– os mercados da prevenção, contingência e segurança: um mercado em crescimento rápido, da meteorologia e dos equipamentos de aviso e alerta até aos processos laboratoriais de rastreabilidade dos produtos,
– os mercados da regeneração e da renaturalização dos recursos e dos ecossistemas: da engenharia biofísica e da arquitectura paisagística até à cirurgia reconstrutiva das áreas ardidas.

 

“Os amigos do campo”, os neo rurais do próximo futuro!

Para estes mercados do futuro, é preciso sensibilizar e mobilizar toda a gente. Os “amigos do campo” são cada vez em maior número, cruzam o espaço em todas as direções, falta saber se é possível mobilizá-los para empreender e agir em espaço rural. Eis alguns dos “amigos do campo”, os neo rurais do próximo futuro:

– os “startupers” tecnológicos, para quem o campo cabe dentro de uma “app”,
– os “nostálgicos românticos”, para quem o campo é um local de recordações e evocações,
– os “peri-urbanistas pendulares”, para quem o campo é uma suave recarga para as descompensações do dia a dia,
– os “ecologistas militantes”, para quem o campo é o campo das grandes causas,
– os “turistas da natureza”, para quem o campo é uma “experienciação” inesquecível,
– os “caçadores reservistas”, para quem o campo é uma oportunidade de “acertar no pássaro”,
– os “desportistas radicais”, para quem o campo é uma experiência plena de emoções fortes,
– os “paisagistas do ordenamento e da conservação”, para quem o campo é um quadro pictórico e um mosaico ecossistémico,
– os “agricultores integralistas”, para quem o campo é uma espécie de regresso à terra-mãe biológica,
– os “patrimonialistas da cultura”, para quem o campo é um repositório de histórias e mistérios,
– os “sequestradores de carbono”, para quem o campo é um depósito precioso e uma oportunidade de investimento com interesse,
– os “consumidores funcionalistas”, para quem o campo é um repositório de dietas e mezinhas,
– os “arquitetos da construção sustentável”, para quem o campo é uma fonte inesgotável de materiais e biorregulação,
– os “prosumidores de energia”, para quem o campo é uma fonte inesgotável de recursos renováveis,
– as “famílias de recolhimento”, para quem o campo é uma fonte de espiritualidade e um repositório de valores, princípios e segurança, um projeto de vida.

Breve, o campo não é apenas o lugar onde uma ocorrência produtiva acontece, é, também, uma predisposição e uma aspiração fundadas, elas próprias, na inspiração da natureza.

Por isso, os neo rurais não vivem, geralmente, no campo, têm uma cultura pro-campo, são amigos do campo, mesmo vivendo na cidade grande.

Estamos, doravante, imersos no paradigma da mobilidade e das economias de rede e visitação. Por isso, já não fazem qualquer sentido algumas das categorias intelectuais e ideias dominantes que nos regeram nas últimas décadas, por exemplo: o estigma social ligado ao campo, o sacrifício da extensão rural no altar do mercantilismo químico-mecânico, o produtivismo monofuncional e superespecializado, a dicotomia urbano-rural, fonte de inúmeros mal-entendidos, o progresso identificado com o êxodo e a urbanização, a desqualificação do capital social no rural profundo e o academicismo sobranceiro e conservador das instituições de ensino superior.

Por maioria de razão, num país tão pequeno como Portugal, servido por boas infraestruturas de transporte e comunicação, o problema principal não é o “repovoamento e o stock populacional” de zonas de baixa densidade, mas, antes, a organização virtuosa da mobilidade e do fluxo de população, isto é, a montagem imaginativa e eficiente de uma economia de rede e visitação no território, concebido como território-rede colaborativo baseado em serviços itinerantes e polivalentes que a tecnologia das redes sociais pode facilmente imaginar e montar.

Creio que, no próximo futuro, naquilo que eu designo como a “2ª ruralidade”, a novidade mais importante seja a emergência da sociedade colaborativa e a economia da partilha assentes numa grande variedade de redes e plataformas tecnológicas e sociais.

Na 2ª ruralidade, “os neo rurais vindouros” terão aí um papel fundamental e tornarão o campo quase irreconhecível em relação ao que conhecemos hoje.

A “internet das coisas” estará presente, desde a agricultura de precisão até à silvicultura preventiva. A agricultura acompanhada pela comunidade (AAC) e a gestão comunitária e agrupada de aldeias e vilas serão uma realidade, a economia da partilha e as boas práticas da economia circular serão uma realidade face aos recursos ociosos, subempregados e esquecidos, a patrimonialização dos recursos arqueológicos e históricos e a sua moderada turistificação serão uma realidade.

Não será o melhor dos mundos, mas será seguramente um mundo melhor.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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