O busto que Faro usurpou e que deixou meio Algarve em alvoroço! (I)

A cidade de Faro engalanou-se, em Março de 1930, para a solenização do centenário do nascimento do poeta João de […]

FaroA cidade de Faro engalanou-se, em Março de 1930, para a solenização do centenário do nascimento do poeta João de Deus, cujo apogeu foi o descerramento de um monumento na Praça D. Francisco Gomes, também conhecida como Jardim Manuel Bívar. Mas, para chegar a esta inauguração, quase que houve guerra no Algarve.

Filho pródigo do Algarve, natural de São Bartolomeu de Messines, autor da Cartilha Maternal, João de Deus foi uma das figuras mais populares e queridas dos portugueses dos fins do século XIX.

A festa decorreu a 8 de março, dia do aniversário natalício, e foi descrita pela imprensa como «apoteótica, comovedora e brilhante». No entanto, e em contra ciclo, a história deste monumento dificilmente seria mais conturbada.

Desde várias comissões organizadoras, a diferentes locais de implantação, à decisão final tomada por um primeiro-ministro, seguida de diferentes protestos populares e um coletivo, ou a demissão de uma Junta de Freguesia, houve de tudo um pouco.

João de Deus
João de Deus

Na verdade, nenhum outro assunto foi tão polémico no Algarve dos anos de 1920 e com eco em toda a imprensa regional e na maioria dos periódicos nacionais, como o monumento a João de Deus.

Remonta à data do falecimento do poeta, em 1896, a ideia de o imortalizar num monumento na sua terra ou região natal, mas só no final da segunda década do século XX o projeto ganha alguma consistência, pese embora a colocação, em 1908, de uma lápide na casa onde viveu em Messines.

Em 1919, a Câmara Municipal de Silves decide construir, por subscrição pública, uma estátua em bronze ao ilustre vate, na sua terra natal.

Pouco depois, inicia-se a subscrição, através de uma comissão criada para o efeito e liderada por distintos messinenses. Logo em 1922, porém, o alcantarilhense (entretanto radicado em Faro) Joaquim Cruz de Azevedo, redator regional de “O Século” e grande admirador de João de Deus, sustenta que o monumento devia ser erigido em Faro, capital de distrito e não em Messines, considerado um meio rural e retrógrado.

Estalava assim a discussão e com ela um longo folhetim que preencheria centenas de colunas na imprensa nos anos seguintes, com argumentos de ambos os lados da contenda.

Em 1925, projeta-se a construção de um Jardim-Escola João de Deus em Faro, patrocinado desde logo pelo ministro da Instrução com trinta mil escudos.

Cruz de Azevedo junta-se então aos partidários de Messines, para a localização do monumento.

A polémica sobre a estátua em O Algarve, 1928A disputa parecia resolvida, mas estaria mesmo? Não, não estava. Pouco depois, Cruz Azevedo desloca-se a Messines, onde uma outra comissão é constituída com o objetivo de secundar os seus esforços na angariação de recursos para o monumento.

É então realizada uma subscrição em toda a freguesia, bem como promovidos alguns espetáculos, com vista à “creação do monumento a João de Deus em Messines”, conforme noticiava o jornal “Folha de Alte”, na edição de 1 de Maio de 1926.

Em Setembro seguinte, o governo da Ditadura Militar publica, através do Decreto n.º 12:292, a cedência gratuita do bronze necessário para o busto “do grande poeta João de Deus”, bem como a sua fundição no Arsenal do Exército, segundo o projeto da comissão organizadora.

A oferta não seria alheia ao pedido que a Câmara de Silves fez em Abril de 1926, a um mês da revolução de 28 de Maio, aos deputados do Algarve, para que, no Parlamento, apresentassem uma proposta para a “cedência do bronze e fundição no Arsenal do busto de João de Deus para o monumento que projeta erigir na sua terra natal”.

Atingido o objetivo, a autarquia silvense interessa-se pelo plinto, de tal forma que, logo em Dezembro, examina “vários projetos do pedestal para o monumento a João de Deus, projectos estes da autoria do senhor Samora Barros”.

São Bartolomeu de Messines em 1930
São Bartolomeu de Messines em 1930

E se os ânimos haviam serenado, em Dezembro o “Correio do Sul” noticia a “constituição duma Grande Comissão que deverá levar a efeito a consagração pela estátua na cidade de Faro, à obra de João de Deus”.

Mas é no início de 1928 que a discussão entra de novo em efervescência. A imprensa regional, face a rumores que atribuem o monumento a Faro, torna a levantar a questão “Messines ou Faro?”

A 6 de Fevereiro, a Junta de Freguesia de Messines, a comissão local e a Câmara de Silves, telegrafam ao Governador Civil protestando contra a Câmara de Faro e o seu propósito de erigir o monumento naquela cidade.

Os messinenses não acalmam, reunindo-se pouco depois as mesmas entidades, coadjuvadas por diversas personalidades da região, com o Governador Civil, sendo que o busto ficara entretanto à sua guarda, na Câmara de Faro.

Chamada a pronunciar-se a família do poeta, esta opta por não se envolver na disputa, enquanto o Governador Civil, Alexandre Brandão, publicamente também não se envolve, propondo que o assunto fosse analisado “por ponderoso critério” pelo ministro da Justiça e pelo Procurador-Geral da República.

Os ânimos voltam a serenar e “crentes que justiça será feita”, os messinenses organizam diferentes atividades (bailes de carnaval, etc.) para angariar fundos pecuniários, para a festa de inauguração do monumento.

O Governador Civil Matias de Freitas
O Governador Civil Matias de Freitas

Em Junho de 1929, protestam junto do ministro do Interior, face à eventual “usurpação do monumento que se pretende fazer do busto de João de Deus”.

A questão estava ao rubro no Algarve e em Messines em particular. Em Julho, uma avenida é delineada na aldeia, entre o pontão de acesso à estação e o largo da Igreja, e em cujo centro se projetava erigir “o belo e brônzeo busto de João de Deus”, como escrevia J. Nobre Ruivo na “Folha de Alte”, para logo referir que, do monumento, “há tempos ninguém fala… nem o sr. Cruz Azevedo”.

Não era, contudo, bem assim: uma carta do Procurador-Geral da República, entretanto conhecida, pendia a favor dos partidários da capital de distrito.

Até que, pela Portaria n.º 6471 de 15 de Novembro de 1929, o presidente do Ministério (como à época se designava o cargo de primeiro-ministro) Ivens Ferraz designa Faro como o local a erguer o monumento.

A notícia é recebida em S. B. de Messines como uma “bomba”! Os messinenses consideram-se roubados e as consequências são imediatas: a Junta de Freguesia, interpretando os ensejos da população, demite-se, como forma de protesto, apesar do Governador Civil, agora Matias Freitas de Guimarães, nunca a aceitar.

Na verdade, e apesar de publicamente isento, a Portaria foi o resultado de uma carta que o Governador Civil remeteu ao presidente do Ministério, pedindo a sua intervenção.

Datado de 26 de Outubro, o ofício de duas páginas narra a história do monumento e com ela a disputa, pois “degladiando-se Faro, capital de Distrito, e Messines, terra natal de João de Deus e parecendo-me ser necessário resolver urgentemente a fim que a homenagem se possa realizar-se no dia do centenário”, sugeria Matias de Freitas, ao presidente do Ministério, que publicasse um decreto que determinasse que o busto do poeta fosse erguido em Faro.

Decreto 12292 de 9 de Setembro de 1926
Decreto 12292 de 9 de Setembro de 1926

Além de elogiar a ação de Cruz Azevedo, que certamente bem conhecia, pois residia na capital de distrito, Matias Freitas fundamentava a sua escolha referindo que, quando se escolheu Messines para a ereção do busto, na sequência da construção de um Jardim Escola em Faro, Cruz Azevedo não encontrou “auxílio da parte daquela povoação nem da cabeça do Concelho, Silves”, tendo ao invés a Câmara de Faro oferecido 10 mil escudos para a compra do pedestal e um outro membro da comissão o mármore necessário, desde que ele se destinasse em Faro.

Reforçava ainda que “a maioria dos subscriptores, consultados, optou por Faro” e como corolário, Messines era “uma pequena aldeia onde uma homenagem desta natureza não tem realce e que o Estado como maior subscriptor (bronze e fundição no valor de 9.068$47) tem o direito de impor a sua vontade”.

Em suma, Matias de Freitas, que exercia o cargo de Governador Civil somente desde 30 de Março de 1929, e era o quarto da Ditadura Militar, não terá sido isento. Não só menosprezou os esforços desencadeados pelos messinenses e pela própria Câmara de Silves, como classificou a aldeia de um meio pequeno e sem distinção.

O que de todo correspondia à realidade, já que havia vários anos que Messines se intitulava de vila, como demonstra o “Guia de Portugal”, de Raul Proença, publicado em 1927.

A freguesia detinha um extraordinário movimento agrícola e a aldeia um notável incremento comercial e industrial, que motivou, em 1927, o pedido de emancipação concelhia, por reunir todas as condições previstas na lei.

Casa em Messines, onde nasceu João de Deus, em imagem antiga
Casa em Messines, onde nasceu João de Deus, em imagem antiga

E, quanto a esforços, os conterrâneos do poeta foram incansáveis, como se evidenciou. Mas a disputa era desproporcionada, S. B. Messines e os seus apoiantes perdiam a guerra, o busto era-lhes usurpado, mas acreditavam ainda num milagre.

Os periódicos nacionais e regionais divulgaram amplamente a atribuição do monumento a Faro e a demissão da Junta de Freguesia de Messines em protesto, e muitas vozes se levantaram em sua defesa.

De tal forma que só em Fevereiro de 1930 se perderam todas as esperanças. Afinal, e como lembrava Virgílio Magno, na “Folha de Alte”, em tempos também “os jornais da capital Diário de Notícias e O Século mostraram-se dispostos a interceder a nosso favor, mas como em Faro há mais leitores, três vezes nove …, etc., etc.”

Porém, se os dias eram agora de mágoa, tristeza e revolta em S. B. de Messines, em Faro tudo se coadunava para a homenagem “ao glorioso autor do Campo de Flores”, procurando torná-la digna do grande algarvio “legítimo orgulho de todos os portugueses”.

Portaria de 15 de Novembro de 1929
Portaria de 15 de Novembro de 1929

A 26 de Fevereiro, o monumento ficava concluído, a inauguração seria daí a dias. Sábado, 8 de Março de 1930, o dia amanheceu festivo, a cidade engalanara-se e preparava-se para o acontecimento.

 

(Continua)

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de História Local e Regional

 

 

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