A seca chegou ao Nordeste algarvio e está aí para todos. Os apoios é que não

A terra gretada, a denunciar que a água que antes a cobria há muito se evaporou, e as charcas quase […]

A terra gretada, a denunciar que a água que antes a cobria há muito se evaporou, e as charcas quase vazias não deixam dúvidas: a seca já chegou ao Nordeste algarvio. O pior é que parece estar para ficar.

No interior do Sotavento Algarvio, o verde vivo ainda se vislumbra, mas nas agulhas dos muitos pinheiros que povoam os montes. Até o bem adaptado pomar de sequeiro mostra que a falta de chuva e o acumular de anos de pouca pluviosidade está a deixar consequências.

O outonal castanho não deixa de saltar à vista, mas é nos campos, quase totalmente despidos de mato, que mais se nota. O contraste é dado pelos barrocos e pedras, que, apesar de não darem cor à paisagem, sempre quebram a monotonia.

É a seca, dizem os que vivem no Nordeste algarvio, com preocupação. É a seca, confirma o Ministério da Agricultura,  que estendeu aos concelhos de Alcoutim e Castro Marim as Medidas Seca 2017, já em vigor no Alentejo e noutros pontos do país.

Isto significa que há apoios para ajudar os produtores a enfrentar as consequências da escassez de água. Mas esta ajuda só está disponível para o setor pecuário, deixando de fora os agricultores, nomeadamente os fruticultores. Também sem acesso à medida ficam aqueles que, por capricho administrativo, vivem noutros concelhos, ali ao lado, ainda que enfrentem os mesmos problemas.

Do alto do monte onde André Palma Mateus tem a sua unidade de produção de leite de cabra algarvia e onde guarda os seus animais, situado no Feital, Corte João Marques, na Freguesia do Ameixial (Loulé), avistam-se os concelhos de Alcoutim, Almodôvar e Mértola. Mas, apesar destes três municípios, que estão dentro das Medidas Seca 2017, ficarem a não mais de três quilómetros do Feital, este caprinicultor não pode aceder aos mesmos apoios que os seus vizinhos.

Isso não evita que tenha, exatamente, os mesmos problemas. As cabras e as ovelhas do Nordeste algarvio já pouco ou nada pastam, por estes dias. Os campos estão totalmente limpos depois de um Verão que teima em prolongar-se Outono adentro e nem sequer sobraram as raízes.

Com a seca, os rebanhos pouco mais podem fazer do que que ficar no campo, à espera da recolha aos seus currais e das tão desejadas doses de água e ração. A presença de um elemento humano desperta, ato contínuo, um interesse inusitado: será que vem aí comida? A pergunta adivinha-se nos olhares de expetativa dos animais.

André Palma Mateus garante, todos os dias, água e ração às suas 350 cabras. Só em ração gasta entre «150 e 180 euros por dia». «Se continuar sem chover, não sei o que vai acontecer. Nem quero pensar nisso, este é o meu sustento, a minha vida, o meu trabalho. Olhe, vamos rezar para que chova!», desabafou.

Sem este esforço financeiro feito pelo caprinicultor, «muitos dos animais já tinham morrido». «Não há pasto, não há nada. Há seis ou sete meses que tenho de comprar ração», diz.

«Aqui, para nós, não há ajudas. Eles acham que nós não precisamos de apoio para conseguir manter isto. Estou aqui num cantinho, a três quilómetros de Alcoutim e da partilha com Almodôvar e Mértola. Estou aqui a vê-los», acrescentou André Palma Mateus, sem esconder a revolta que sente.

Apesar de estarmos numa altura do ano em que já devia haver pastagens novas, sem chuva «não se sabe quando as haverá». «Isto é só terra e pedra, mesmo raízes não sei se as há», ilustrou o caprinicultor.

E sair com o rebanho é cada vez mais um risco, pois as charcas quase esgotadas tornaram-se potenciais focos de doenças e devem ser evitadas. «Já me morreram cabeças de gado, devido às águas ruins. A comida também é fraca e, ao mínimo descuido, eles morrem. Tenho as vacinações todas em ordem, mas isso não chega. O grande problema que aqui temos é a falta de água e comida», resumiu.

«Tinha uma charca que já secou totalmente. Tenho um poço aqui na propriedade que dá para lavar a sala de ordenha e para elas beberem, mas ando sempre no limite. Volta e meia, não tenho água», revelou.

A triste prova desta realidade é a cabra que André Palma Mateus viu morrer no caminho para os campos onde deixa o seu rebanho, durante o dia, pouco antes de falar com o Sul Informação.

Cabra de André Palma Mateus morta num caminho

As preces de André Palma Mateus – e de muitos outros – parecem ter sido ouvidas. Mas a chuva anunciada para estes dias será insuficiente para resolver um problema que se arrasta há anos.

É que a seca que se vive no Nordeste algarvio, que oficialmente é severa, mas que há quem defenda que já chegou a extrema, não começou agora. Este é, segundo a Direção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve, um problema que se arrasta há muitos anos.

E, apesar de 2016 até ter sido um ano com níveis de pluviosidade dentro da média, os anos que o precederam e o que agora corre estão bem abaixo do normal, no que à quantidade de chuva diz respeito. Ou seja, como explicou Florentino Valente, chefe da Divisão da Agricultura, Estudos e Programação daquela entidade, nos últimos anos «não houve água suficiente para hidratar os solos e repor os lençóis freáticos».

Foi esta realidade que levou o Governo a alargar as Medidas Seca 2017 aos concelhos de Alcoutim e Castro Marim, decisão para a qual muito contribuiu o trabalho de monitorização da DRAPAlg, mas também a pressão da associação Cumeadas e de outras organizações de produtores. O presidente da Câmara de Alcoutim Osvaldo Gonçalves foi outro dos que assumiu esta bandeira.

Foi precisamente nos Paços do Concelho alcoutenejos que o Sul Informação assistiu a uma das duas sessões de esclarecimento que a DRAPAlg promoveu, para dar a conhecer aos profissionais do setor o que está a ser feito para mitigar as consequências da seca.

Uma mensagem que poderá ter tranquilizado parte da assistência, nomeadamente os que têm animais, mas que não serviu para apaziguar aqueles que investiram, em alguns casos somas avultadas, em projetos de fruticultura.

Valter Luz

Valter Luz, fundador e gestor da empresa Luzagro, sediada em Diogo Dias, na freguesia de Martim Longo, pinta um cenário negro para a sua atividade, a olivicultura.

«As medidas da seca não contemplam a realidade total que aqui se vive. Não há só animais, há também investimentos feitos noutras áreas. Dos mais de 30 projetos de jovens agricultores que vieram para Alcoutim, só um ou dois são de animais. Todos os outros são ligados a plantas endafoclimaticamente adaptadas, como a medronheira, a oliveira e a amendoeira», explicou.

Paralelamente à aposta em espécies de árvores bem adaptadas, «foram feitos investimentos em charcas e furos», para garantir a rega – o que, neste caso, é o mesmo que dizer a produtividade. «Mas como estamos num ciclo de seca que vai para seis anos, os furos estão, na sua grande maioria, secos, as charcas não aguentaram o Verão, porque os níveis de evapotranspiração foram brutais – tanto na água que aquecia e evaporava, como na que se utilizava na rega, que não chegava à raiz, porque os níveis de humidade eram zero», garantiu Valter Luz.

«Lembro-me de estar a regar de noite e as pedras ainda estarem quentes. Estamos a falar das 10 ou 11 horas da noite», recordou.

Charca quase seca na propriedade de Valter Luz

Para alguém como Valter Luz, que há três anos plantou milhares de oliveiras com os apoios disponíveis para jovens agricultores e gere agora um olival intensivo de regadio, onde as árvores são clones de outras bem antigas que já existiam nos terrenos, esta situação é verdadeiramente preocupante. Até porque tudo foi feito antevendo potenciais secas, mas não uma tão prolongada.

«Na maior parte das árvores de sequeiro, estamos a assistir a uma calamidade. Há zonas, em Alcoutim, perto do rio, onde caiu alguma chuva há tempos, que permitiu dar alguma “carne” aos frutos. Mas aqui no interior, tivemos temperaturas de 40 a 50 graus durante o Verão, sem chuva, a planta está ressequida e em stress hídrico. Nem vale a pena apanhar esta azeitona. Nem sequer serve para azeite, quando normalmente podem servir para azeite e como azeitona de mesa», ilustrou.

No caso da Luzagro, o principal negócio é a azeitona de mesa, que tem de ter um calibre maior que a utilizada para azeite.

«Nos nossos projetos, contemplámos tudo o que era possível: as barragens têm um perímetro grande, o investimento foi bem calculado, mas ninguém contava com quase seis anos de seca. Esse foi o grande problema», revelou o agricultor.

Isto é um problema, só por si, que pode levar «ao acentuar da desertificação e a um revés na agricultura do Nordeste algarvio». Mas traz complicações adicionais para os jovens agricultores que olharam para este território e aí decidiram investir, há alguns anos.

«Quando recebemos os apoios para jovens agricultores, é preciso provar que o plano é viável e que tem pernas para andar. Mas há imponderáveis, que levam a que os objetivos possam não vir a ser cumpridos», disse. Caso não cumpram estes objetivos, os beneficiários dos apoios podem ter, no limite, de os devolver.

Existe, portanto, um problema, «mas também há soluções: se as medidas forem abertas para todos e houver possibilidade de fazer novas captações de água, mais fundas, e houver boa vontade para trazer água para o concelho».

Sem rega, algumas oliveiras começam a secar

«Este é um concelho com um enorme potencial, que tem azeitona e medronho de grande qualidade e outros produtos de excelência, como o mel. Mas tem que se mudar consciências. Há que fazer uma barragem no Vascão ou trazer a água que já existe ali em Mértola para cá. É preciso pensar em regadio, porque a água é o sangue da terra e sem ela não se faz agricultura», acredita Valter Luz.

As consequências nefastas da seca para o pomar de sequeiro, principalmente para o olival, não são sentidas apenas por Valter Luz.

Segundo Fernando Severino, diretor regional de Agricultura e Pescas, a seca «já está a ser muito sentida no olival da região, mas não só». «Há azeitona em quantidade, mas com falta de calibre», explicou. E esta não é uma cultura residual, no Algarve, tendo em conta que «há 8 mil hectares de olival» por terras algarvias.

Ainda assim, as consequências da seca na agricultura, no Algarve, ainda não são muito sentidas, tendo em conta que, segundo a Águas do Algarve, as barragens estão com bons níveis. Isso leva a que não haja preocupações, para já, no que toca à disponibilidade de água para abastecimento humano, nem sequer para rega.

O problema é que os perímetros de rega das diferentes barragens não chegam a todo o território algarvio. O Nordeste da região é um bom exemplo: a barragem de Odeleite tem muita água, mas ela só chega aos agricultores que têm as suas explorações a Sul da infraestrutura. Os que estão a Norte ficaram fora do perímetro de rega.

Esta, aliada à falta de água no subsolo e nos rios e ribeiras, é uma das principais razões para que a seca esteja a ser sentida com maior intensidade neste território.

 

Ribeira (quase) seca

Os fruticultores de Alcoutim e Castro Marim ainda terão de continuar a lutar para que sejam lançadas medidas que os ajudem a mitigar as suas previsíveis perdas. Já quem tem animais pode, desde já, apresentar projetos que visem «garantir o abeberamento» dos seus rebanhos.

Segundo explicou a DRAPAlg, «são elegíveis investimentos de pequena dimensão, até um máximo de 25 mil euros», que podem passar por maquinaria e equipamentos, pequenas construções agrícolas e pecuárias, plantações plurianuais e, claro, por furos e charcas.

Estas candidaturas podem ser feitas até ao dia 17 de Novembro e é garantida uma comparticipação de 50 por cento.

Apesar das ajudas estarem disponíveis, Nuno Madeira, presidente da ANCCRAL – Associação de Criadores de Caprinos da Raça Algarvia, não crê que haja muitos caprinicultores a apresentar projetos.

«Não acredito que tenha grande adesão, pois não me parece que compense em termos monetários. A maioria das empresas são familiares e têm explorações muito pequenas», disse.

O que seria positivo, defendeu, era a criação de um subsídio aos suplementos alimentares que os donos de animais têm de lhes dar, devido à falta de pastagens. «Num ano normal, não estaríamos a suplementar os animais nesta altura. Era positivo criar um sistema em que o apoio fosse concedido contra fatura», disse.

Quanto à seca em si, diz que, tirando «alguns casos pontuais», não está a causar problemas relacionados com a mortandade dos animais, sendo, acima de tudo, um problema de sustentabilidade financeira das explorações. Mas isso poderá mudar rapidamente, caso a chuva não venha e nas quantidades e tempo certos.

«O pior cenário é se vierem chuvadas fortes, com interregnos grandes entre si, pois não permitem dar continuidade ao ciclo de crescimento e floração das plantas», acredita Nuno Madeira.

Nuno Madeira

Entre rezas e expetativas goradas, a seca parece ter vindo para ficar por mais algum tempo, no interior do Algarve (e do país). «A média dos últimos cinco anos é inferior à dos quinténios anteriores. O padrão que vemos é que haverá seca de tantos em tantos anos. Também há períodos de chuva cada vez mais curtos», ilustrou Florentino Valente, da DRAPAlg.

Da parte do ministro da Agricultura Capoulas Santos, que no início da semana esteve presente na reunião onde foi apresentado o segundo relatório da Comissão de Acompanhamento da Seca, criada em Julho, chega a garantia de que a situação está a ser acompanhada de perto e que não está colocado de parte o alargamento das Medidas Seca 2017 a outros concelhos, nem sequer a criação de novos apoios.

Para já, além dos apoios a projetos para garantir o abeberamento dos animais, foram «avançados 500 mil euros» em apoios da União Europeia que só seriam pagos no final do ano e aberta uma linha de crédito «bonificada, com um ano de carência» para compra de ração, disse o membro do Governo à Antena 1.

André Palma Mateus, Valter Luz e os que estão na sua situação, pelos vistos, ainda têm muito que lutar e rezar para que os seus problemas encontrem uma solução.

 

Fotos: Hugo Rodrigues|Sul Informação

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