As “passinhas do Algarve” na seca de 1875 ou o retrato social e económico da região

A década de 70 do século XIX foi dramática para os algarvios. Anos consecutivos de seca fizeram soar as campainhas […]

A década de 70 do século XIX foi dramática para os algarvios. Anos consecutivos de seca fizeram soar as campainhas de alarme na capital do reino, Lisboa, em maio de 1875.

Na verdade, o clima mediterrânico, onde o Algarve se insere, carateriza-se por uma precipitação baixa e irregular, sendo frequentes anos de estiagem, em alternância com outros mais húmidos, com cheias e inundações. Todavia, a seca por aqueles anos tornou-se medonha e com ela a fome e a sede ameaçaram aniquilar os algarvios.

Em 15 de julho de 1874, já o periódico lacobrigense “Gazeta do Algarve” noticiava a extraordinária seca que se sentia na região: “que esterilisou os nossos campos, destruiu regadios importantes e empobreceu fontes que nunca accusaram a falta ou carência absoluta d’água”.

Mas se aquele ano agrícola não deixou saudades, o de 1875 seria dramático. O céu não verteu uma gota de água, principalmente no barrocal e litoral, de tal forma que, na edição de 21 de abril de 1875, o mesmo jornal pressagiava “com a velocidade da successão do tempo vamos caminhando para uma crise alimenticia assustadora”, para depois acrescentar que “nenhumas esperanças há já de que a agricultura produza o sufficiente para a sustentação dos habitantes da província, nem pastos haverá em quantidade bastante para a alimentação do gado”.

A 2 de junho, o mesmo periódico fazia o balanço das colheitas na zona de Lagos, dizendo que, a produção era tão fraca, que, das searas, resultou uma semente e meia, e, do arvoredo, perspetivava-se um quarto do que seria colhido num ano normal. Em suma, uma calamidade abatia-se sobre o Algarve.

Com uma agricultura de subsistência, dois anos agrícolas maus comprometiam não só toda a alimentação, como inviabilizavam novas sementeiras. Afinal, apesar de terem sido deitadas à terra, as sementes não germinaram, ou, se tal aconteceu, não geraram nova semente. Também as árvores ameaçavam secar, mormente as figueiras, primordiais na economia regional, colocando em causa a produção anual e de vários anos subsequentes.

Numa época ainda longínqua para o estado social, onde a principal atividade da governança era a cobrança de impostos, a situação catastrófica da região, aliada aos gritos lancinantes dos algarvios, forçaram o governo a agir.

 

Assim, por portaria de 15 de maio de 1875, foi ordenado ao governador civil, o advogado José de Beires (Lamego, 1825-Lisboa, 1895), que percorresse todo o distrito com o objetivo de colher informações exatas acerca dos prejuízos causados pela falta de chuvas.

Aquele magistrado saiu de Faro a 23 de maio, iniciando a visita por Vila do Bispo, e sucessivamente percorreu todas as sedes dos concelhos e a maioria das freguesias da região, regressando à capital algarvia a 10 de junho.

É difícil imaginarmos as condições da viagem. É que, se por um lado e na sequência da Regeneração, avançava a construção de algumas vias macadamizadas, por outro a lentidão dos trabalhos e os parcos recursos faziam com que predominassem as velhas estradas medievais, quase sempre veredas.

Quanto ao caminho de ferro, além de um pequeno troço fantasma, construído entre Faro e Boliqueime, não descia além de Casével (Castro Verde), então a estação que servia o Algarve.

José de Beires reuniu-se com as autoridades locais (câmara e conselho municipal), os maiores contribuintes prediais, párocos e regedores das freguesias, deslocando-se ainda a uma ou outra aldeia, para se inteirar in loco das sequelas da longa estiagem.

Nas reuniões, recolhia informações sobre a gravidade da situação, bem como propostas para minorar a crise. Da sua visita, resultou um longo e detalhado relatório que enviou ao governo, com a descrição da conjuntura agrícola, económica e também social de todas as freguesias e concelhos do Algarve. Exposição complementada com sugestões que considerava pertinente executar para evitar a indigência dos algarvios.

 

A minúcia da sua descrição permite-nos hoje conhecer não só os efeitos da seca, em todas as freguesias, mas também as principais culturas que então se praticavam e a sua produtividade em anos regulares. É, pois, apoiados pela pena daquele magistrado, cujo relatório foi publicado na “Gazeta do Algarve”, que nos propomos revisitar o Algarve entre 23 de maio de 10 de junho de 1875.

Como se referiu, o governador iniciou o périplo pelo concelho de Vila do Bispo. Este compunha-se de serra inculta e extensos terrenos de lavoura, vivendo a população quase exclusivamente da agricultura. Tal como em toda a região, a propriedade encontrava-se muito compartilhada.

Pela quantidade de cereais que produzia e exportava, era considerado o celeiro do Algarve. Por sua vez, o número de árvores e vinhedos era diminuto, apenas junto das povoações e para “recreio”, como referia. Ainda assim, existiam algumas plantações novas de figueiras.

Quanto aos efeitos da seca em Budens, escreveu José de Beires:
“N’esta freguezia, como nas outras do concelho, cultiva-se apenas o trigo, cevada, raros centeios, grão, chicharo e milho. É, porém, no trigo que consiste a sua principal riqueza agrícola.
Apresentaram-se as searas com magnifico aspecto no principio do anno, e attingiram pela maior parte um desenvolvimento superior ás searas dos outros concelhos, especialmente nas chamadas — terras de dentro — terrenos baixos e verdes, que são por isso menos exigentes de copiosas chuvas. Mas, a final, a prolongada estiagem tolheu n’umas o completo desenvolvimento da espiga e produziu n’outras a sua morte prematura, restando apenas n’estas o feno e algum grão mirrado. Calcula-se que ainda assim a média da producção será de 50 por cento d’uma colheita regular. Das sementeiras serôdias nem a semente se espera”.

Relativamente às freguesias da Raposeira e Vila do Bispo, a situação era idêntica. Quanto a Sagres:
“É a freguezia que mais soffre com a estiagem. Tem os mesmos géneros de cultura, mas são maiores os estragos nas searas.
A producção ha de ser inferior á das outras freguezias. Ha também ali absoluta falta de agua potável. O destacamento militar que existe na praça de Sagres abastece-se da Villa do Bispo, que dista uns 6 kilometros”.

Da terra, já haviam inclusive emigrado alguns indivíduos para as minas. Em resumo, era em Sagres que a seca atingia o seu zénite no concelho, até pela carência de água potável. Por outro lado, a ausência de arvoredo no município não permitia colmatar, com os frutos, a fraca colheita de cereais.

Feito o diagnóstico de Vila do Bispo, José de Beires seguiu para Aljezur. No concelho, o arvoredo era escasso, oliveiras, sobreiros e laranjeiras eram as árvores principais. Também as vinhas eram aqui diminutas.

Sobre a Bordeira escreveu:
“É situada esta freguesia no interior da serra, e a sua cultura, quasi única, é de cereaes e milho. No sitio da Carrapateira, um dos melhores da freguezia, houve já no anno anterior grande escacez de colheitas, tendo os lavradores de recorrer a empréstimos para poderem occorrer ás despezas agricolas do presente anno. As searas apresentam-se melhores do que as do anno passado; mas em relação a um ano regular produzirão um terço a menos. No resto da freguezia apenas estão soffriveis as searas dos terrenos baixos. As sementeiras serodias consideram-se perdidas.”

Por sua vez, em Aljezur:
“Compõe-se esta freguezia, principalmente de terreno de serra, em grande parte inculto, e de uma extensa várzea, terra de primeira qualidade, cuja cultura, quasi exclusiva, foi de arroz e milho até 1872. A sementeira de arroz está hoje limitada a uma pequena area; no resto foi substituida, primeiro por milho e agora por trigo. As searas ali promettem abundante colheita, sendo talvez as melhores de todo o districto. Ainda assim os lavradores queixam-se da estiagem que não lhes permitte, depois das ceifas, aproveitar os mesmos terrenos para outra sementeira, como costumam. Fora da várzea, as searas, que são em muito maior quantidade, offerecem colheita escassa. Calcula-se, por isso que a producção geral da freguezia será inferior em um terço á de um anno regular.”

Na vila já se importava farinha, sendo que as sementeiras de milho, feijão e grão prognosticavam uma colheita muito inferior ao normal. Já em Odeceixe, a situação era semelhante à sede de concelho.

Em termos gerais, Aljezur era o município do Algarve que menos sofria com a crise alimentícia e para tal muito contribuía a várzea da ribeira.

Ainda assim, notava o magistrado que a ausência de trabalho levara alguns aljezurenses a emigrar, o que nunca sucedera em anos anteriores.

Como medida minimizadora, propunha a construção de um lanço da estrada distrital a partir de Aljezur, o que abonaria trabalho para a classe operária das três freguesias.

Visitados os concelhos de Vila do Bispo e Aljezur o governador civil partiu para Lagos, onde se encontrava em 28 de maio.

 

(continua)

 

Nota 1: As imagens utilizadas, à exceção do periódico, são meramente ilustrativas. Correspondem a postais ilustrados, da primeira metade do século XX.
Nota 2: Nas citações do jornal «Gazeta do Algarve», optou-se por manter a grafia e da época.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita, engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, colaborador habitual do Sul Informação

 

 

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