Lagos abre museu para que não se apague memória do «legado terrível» da escravatura

De tablet na mão, apontado à parede onde apenas há um mapa a preto de branco, o ministro da Cultura […]

Núcleo Museológico da Escravatura_inauguração_27De tablet na mão, apontado à parede onde apenas há um mapa a preto de branco, o ministro da Cultura fazia deslizar com o dedo páginas e páginas de informação sobre o que estava à sua frente. Foi assim esta segunda-feira, 6 de Junho, na inauguração do Núcleo Museológico Rota da Escravatura, em Lagos.

Este é o mais recente equipamento cultural da cidade e ocupa os dois pisos do edifício conhecido como “Mercado de Escravos”, onde na realidade funcionou a vedoria e a alfândega, classificado como monumento de interesse público. A sua abertura marca também o início de um profundo processo de requalificação do Museu Municipal de Lagos, que aqui tem um núcleo dedicado a uma página escura, mas muito significativa da história da cidade e do país.

Porque o espaço é pequeno e os tempos são outros, a aposta não foi feita na exposição de muitas peças, mas sobretudo em conteúdos multimédia, disponibilizados através das novas tecnologias, como os tablets que, à chegada, são fornecidos aos visitantes, para que eles completem a visita.

«Lagos é a cidade de onde partiram os primeiros navegadores, usando as tecnologias de ponta da sua época, por isso nós usámos também as inovações dos tempos atuais para contar esta página da nossa história», disse Joaquina Matos, presidente da Câmara de Lagos, ao Sul Informação, à margem da inauguração.

E que página é esta que é contada no Núcleo Museológico? O ministro da Cultura, no seu discurso, citaria o filósofo Walter Benjamim, dizendo que «todo o monumento da civilização é, ao mesmo tempo, um monumento de barbárie». E este novo espaço recorda esse «lado negro», esse «legado terrível», como o classificou o ministro Luís Filipe de Castro Mendes, do tráfico de seres humanos, os escravos, que foram um dos “produtos” mais rentáveis entre os trazidos para a Europa e mais tarde comercializados para as Américas, pelas navegações portuguesas.

 

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E o que tem Lagos a ver com esse «legado terrível»? É que a cidade foi, segundo a «Crónica da Guiné», de Gomes Eanes de Zurara, o local onde, no século XV, aportaram os primeiros escravos africanos.

E isso que era apenas uma memória antiga, traduzida no nome “Mercado dos Escravos” dado ao edifício situado na zona onde, de facto, terão chegado os primeiros escravos, foi avivada a cores fortes, quase de sangue, quando, em 2009, durante as obras de construção de um parque de estacionamento em Lagos, foram descobertos, no Vale da Gafaria, 158 esqueletos de seres humanos, que as investigações arqueológicas e antropológicas identificaram como escravos africanos.

Trata-se, segundo os especialistas, do mais antigo local de enterramento de escravos africanos encontrado em toda a Europa. Mas, o mais pungente é que estes nem tinham sido enterrados, mas atirados para o lixo, como uma mercadoria velha e sem serventia.

«Esta descoberta arqueológica revelou-nos uma realidade histórica que não podemos ignorar, que temos o dever de relembrar. Foi esta pesada responsabilidade que a Câmara Municipal de Lagos assumiu plenamente, ao projetar um núcleo museológico que desse visibilidade a uma história antiga e triste: a nossa participação, durante séculos, no tráfico de seres humanos», disse a presidente Joaquina Matos, na inauguração.

É que, acrescentou a autarca, «para o bem e para o mal, Lagos participou ativamente no arranque daquilo a que hoje chamamos globalização», pelo que o concelho integra mesmo a candidatura «Lugares de Globalização», recentemente incluída pela Comissão Nacional da UNESCO na Lista Indicativa de Portugal ao Património Mundial.

 

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«Dada a temática em causa, era também obrigatório associar a este núcleo museológico a colaboração do projeto “Rota do Escravo” da UNESCO, que pretende contribuir a nível internacional para o conhecimento do problema da escravatura e do tráfico de escravos», referiu Joaquina Matos, acrescentando que «reunindo uma equipa de técnicos e especialistas de diversas áreas disciplinares (arquitetos, museólogos, arqueólogos, historiadores, designers, informáticos), foi possível desenhar um projeto moderno e ambicioso, mas simultaneamente rigoroso e contido».

O edifício do “Mercado de Escravos”, cedido pelo Exército Português à Câmara de Lagos para aí instalar este Núcleo, foi alvo de um projeto de reabilitação da autoria do arquiteto algarvio António Marques, com projeto museográfico do P-06 Atelier. Mas a verdadeira mentora científica do núcleo é Elena Morán, arqueóloga da Câmara de Lagos, com a colaboração do também arqueólogo Rui Parreira e ainda do investigador e professor universitário Rui Loureiro. O investimento atingiu perto de 427 mil euros, financiados em 65 por cento pelo PO Algarve, e o restante garantido pela própria Câmara.

A reduzida área dos dois pisos deste edifício impediu, por exemplo, a instalação de um elevador que pudesse garantir o acesso, ao piso superior, de pessoas com mobilidade condicionada. E foi aí que a tecnologia de hoje permitiu criar uma resposta original: no Núcleo Museológico há um dispositivo que permite a visita virtual, com óculos de realidade aumentada, que o ministro Castro Mendes fez questão de experimentar.

Quanto à aplicação que permite, aos visitantes mais ávidos de informação, aceder a conteúdos muito para além dos que estão expostos, através de tablet ou smartphone, saiba que essa app já pode ser descarregada na Playstore (para Android) e em breve na loja virtual da Apple, para o dispositivo de cada um. Apenas há uma condicionante: a app só funciona no local, ou seja, no próprio Núcleo Museológico.

 

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Os óculos de realidade aumentada, porém, poderão servir para levar os conteúdos «a qualquer parte do país», como explicou Helena Castaldo ao Sul Informação. Por exemplo, «quando Lagos quiser mostrar a sua nova oferta cultural na Bolsa de Turismo de Lisboa ou apresentá-la numa escola».

Mas não se pense que este Núcleo Museológico é apenas feito de conteúdos virtuais. No sítio, nos dois pisos, há muito para ver. A começar pela escultura «Rei Amador», em casca de bananeira, da autoria do artista plástico são tomense Eduardo Malé Fernandes, mas continuando com algumas peças expostas nas vitrinas, como o par de algemas com as quais se prendia as mãos dos escravos, cedidas pelo Museu Nacional de Arqueologia de Lisboa, um dente de elefante, ou uma pintura a óleo representando Nossa Senhora do Carmo rodeada de várias santas, que estava na Igreja de Santa Maria, fronteira ao “Mercado de Escravos”.

Por outro lado, a partir do edifício do Núcleo Museológico, há toda uma Rota da Escravatura que pode ser percorrida na cidade de Lagos. Alguns desses locais já não existem, pelo que podem ser apenas percorridos virtualmente, através de imagens de reconstituição, que estão presentes num guia disponibilizado pelo Museu de Lagos, mas que o Sul Informação aqui apresenta em exclusivo:

 

A abertura do Núcleo Museológico Rota da Escravatura é apenas «o primeiro passo de uma longa caminhada de responsabilidade histórica que não termina aqui. Pretendemos dar continuidade ao aprofundamento desta temática, dinamizando-a e estabelecendo pontes de diálogo com outras comunidades unidas por este legado histórico», salientou a presidente da Câmara.

«Cabe-nos, a todos, a responsabilidade de promover a reflexão sobre a evolução da escravatura, designadamente, nos tempos atuais, fenómeno que, embora com diferente roupagem, continua a existir, pondo em causa os mais fundamentais direitos humanos».

A entrada no Núcleo Museológico Rota da Escravatura será gratuita até ao próximo dia 12 de junho.

 

Mais informação:

A instalação do Núcleo Rota da Escravatura do edifício conhecido como Mercado de Escravos procura requalificar a visita à cidade de Lagos.

No Piso 0, instalou-se um ponto de receção de visitantes e de divulgação dos pontos de interesse do itinerário «Lagos na Rota da Escravatura»; no Piso 1 instalou-se uma exposição de longa duração que aborda o tema da escravatura na história da cidade e corresponde à crescente visibilidade que o seu debate, associado ao dos direitos humanos e do racismo, tem adquirido no plano internacional.

Na concretização do discurso expositivo são abordados diversos aspetos:
>>a realidade africana entre os séculos XV e XVI, hierarquizada mas dinâmica e aberta à inovação técnica e cultural;
>>o comércio negreiro, enquadrado no movimento de intercâmbios comerciais a partir da década de 40 do século XV;
>>a evolução urbanística de Lagos nos séculos XV e XVI e a escravização dos africanos até ao século XIX – considerando, como fio condutor de um Itinerário da Escravatura, o Mercado de Escravos como edifício emblemático e memorial da realidade esclavagista da cidade de Lagos e do Algarve;
>>os lugares urbanos da «novidade» africana que correspondem aos pontos de interesse/paragens no guia de «Lagos na Rota da Escravatura»;
>>a integração dos escravos na sociedade algarvia;
>>os silêncios sobre a tragédia do tráfico esclavagista, silêncios estes que é necessário quebrar aprofundando e incrementando o conhecimento da extensão espacial e temporal do fenómeno esclavagista, concretizando os conceitos defendidos pelo Comité «Rota do Escravo» e pelas «Rotas do Diálogo» da UNESCO.

 

Núcleo Museológico Rota da Escravatura
Local: Praça do Infante
Terça a domingo | 10h00 – 12h30 / 14h00 -17h30
Condições de Acesso: Tarifa normal – 3€ | Tarifa reduzida – 1,50€: para Grupos Turísticos, jovens entre os 12 e os 18 anos, cidadãos com idade igual ou superior a 65 anos e portadores de Cartão Jovem| Entrada Gratuita a grupos escolares, a trabalhadores da CM Lagos e residentes em Lagos, quando devidamente identificados, e a menores de 12 anos.

Bilhete conjunto (visita a mais do que um equipamento museológico):
Museu + Núcleo Museológico Rota da Escravatura – p.p.: 5,00€
Museu + Núcleo Museológico Forte da Ponta da Bandeira – p.p.: 4,00€
Museu + Núcleo Museológico Rota da Escravatura + Núcleo Museológico Forte da Ponta da Bandeira – p.p.: 6,00€
Núcleo Museológico Rota da Escravatura + Núcleo Museológico Forte da Ponta da Bandeira – p.p.: 4,00€
Para mais informações: [email protected]; ou telefone 282 771 724.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues|Sul Informação

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