A cultura e a melancolia do risco global

Em matéria de riscos globais e sistémicos, a procissão ainda só vai no adro

O novo coronavírus pregou-nos uma partida e está a deixar-nos à beira de um ataque de nervos. Como é que uma civilização e uma cultura sobre o progresso humano e social nos trouxeram até aqui?

Acresce que o risco global, difuso e invisível se torna cada vez mais ameaçador. De certo modo, “a cultura do risco, hoje, é a cultura do cerco”.

Vale a pena, pois, revisitar esta cultura do risco para averiguar até que ponto ela condiciona e inibe a nossa vida em comum, no preciso momento em que nós mais precisávamos da condição da liberdade para a partilhar plenamente.

 

A tipologia dos riscos globais

Os riscos globais (RG) já têm a sua tipologia. O Forum Económico Mundial de Davos publica anualmente um relatório de avaliação sobre o “estado do risco”. A tabela que apresento dá bem conta do campo de restrições que os riscos globais significam. Que ensinamentos extrair desta tipologia, que sejam úteis para uma apreciação do risco global?

Em primeiro lugar, as falhas na governação global para regular a globalização económica, comercial e financeira.

Em segundo lugar, a crise das instituições multilaterais para regular os riscos geopolíticos das potências emergentes que reivindicam as suas áreas de influência.

Em terceiro lugar, as falhas de cooperação internacional para regular todo o tipo de riscos ambientais, dos mais impressivos (nucleares, biológicos e químicos) aos mais pessoais (a multiplicação de vários tipos de febre e gripe).

Em quarto lugar, as falhas de governação global para regular os riscos sociais, como a pandemia do covid19, na exata medida em que as culturas de risco e prevenção que lidam com a perceção dos riscos globais, são, também, culturas de medo, onde pode germinar a “ameaça perfeita”.

Em quinto lugar, as falhas na governação global para regular os riscos tecnológicos que são o “paradoxo preferido do capitalismo”.

Para o capitalismo o problema é a dose, isto é, todos os problemas se resolvem com uma dose adequada de tecnologia, mobilidade e organização: dose a menos não resolve o problema, dose a mais gera um novo problema devido à sua eventual propagação sistémica.

Esta é a razão pela qual a definição do risco científico e técnico é um problema probabilístico, de risco previsível, a menos que um erro involuntário, ou um “cientista louco”, sejam a justificação objetiva para a ocorrência de risco.

A cultura do risco global

Em matéria de risco, passámos da sociedade do risco natural e local (perigos controláveis e sociedades seguras) para a sociedade do risco global (perigos incontroláveis e sociedades indefesas). O risco passa a ser um produto da sociedade urbana e industrial e das respetivas aplicações da ciência moderna.

O lema fundamental da sociedade urbano-industrial da primeira modernidade pode ler-se da seguinte forma: a ciência domina a natureza, o Estado domina o homem. Com a segunda modernidade, porém, quebram-se estes dois nexos. O risco cresce com a modernização.

O que nos diz a teoria social, hoje, no tempo da modernidade tardia da sociedade contemporânea sobre a cultura do risco?

– O risco é um risco antropogénico: hoje, os riscos globais, mesmo os naturais, são, quase todos, de origem humana, esse é o preço da sociedade urbano-industrial da modernidade tardia;

– O risco é uma construção social e política: há controvérsia, conflito de interesses, uma ideologia do risco, uma indústria e um negócio, mesmo as relações de definição do risco são relações de poder;

– O risco é um risco sistémico: os efeitos de propagação em cadeia são ainda mal conhecidos, o nível de ameaça e perigosidade aumenta exponencialmente com o grau de interdependência dos riscos;

– O risco é variável com as diferentes culturas de risco: o risco varia com as culturas de risco, trata-se, ao mesmo tempo, de um campo simbólico e de um campo de forças muito poderosos onde correm expectativas, perceções, superstições, encenações, representações, conhecimento;

– O risco é um risco aleatório e probabilístico: o risco não respeita fronteiras ou soberania, cruza o espaço-território em todas as direções, desterritorializando atividades, lugares e pessoas;

– O risco é um risco difuso: o risco é difuso devido à sua aparente invisibilidade, donde não poder ser privatizado por via de uma companhia de seguros, mas socializado por via do contribuinte, pelo que solicita novas lógicas e formas de ação e responsabilidade coletivas;

– O risco está associado a uma baixa intensidade de cultura de prevenção: em particular, a baixos níveis de investimento em operações de esclarecimento e mitigação que são, geralmente, as primeiras sacrificadas em conjunturas de crise económica e financeira;

– O risco está intimamente associado com comportamentos locais e individuais: na exata medida em que só as pequenas mudanças de comportamento quotidiano materializam as grandes orientações das políticas globais, isto é, sem responsabilidade individual não há responsabilidade coletiva eficaz e eficiente;

– O risco tem uma distribuição geográfica muito desigual: embora não escolha os seus alvos, as suas ocorrências ou acontecimentos agravam sobremaneira a situação dos países pobres onde assistimos à destruição continuada de atividades, territórios e regiões inteiras;

– O risco é o fruto direto de falhas graves de global good governance: a fortíssima conexão causa-efeito dos riscos não é acompanhada de uma governança multiníveis com o mesmo grau de integração e responsabilidade; o risco é multi-escalar e a global governance é decisiva para prevenir os efeitos externos mais nefastos e agressivos dos riscos.

Em jeito de síntese, o quadro sociológico do risco global ou padrão de risco pode ser expresso do seguinte modo (Covas e Covas, 2010: 266):

– Do risco localizado para o risco globalizado;
– Do risco natural para o risco de origem humana;
– Do risco concreto para o risco difuso;
– Do risco efetivo e conhecido para o risco potencial e desconhecido;
– Do risco circunscrito para o risco sistémico;
– Do risco visível para o risco invisível;
– Do risco divisível para o risco indivisível;
– Do risco particular para o risco coletivo;
– Do risco privado para o risco socializado;
– Do risco determinístico para o risco aleatório.

Em tempo de modernidade tardia, como é o tempo português, a relação entre os problemas sociais e os riscos globais pode convergir, dramaticamente, para um “Estado de Necessidade”, um “Estado de Risco” ou um “Estado de Emergência”, em que tudo ou quase tudo gira em redor da equação do risco global. No nosso caso, tudo isto, infelizmente, já se revelou e comprovou.

Já vivemos sob a forma de “Estado de Necessidade”, sob a autoridade da Troika que nos “libertou” do risco de insolvência coletiva, vivemos quase permanentemente em “Estado de Risco” tantos são os perigos e ameaças, e agora vivemos em “Estado de Emergência” por causa do covid19.

Notas Finais: a melancolia da crise ao quotidiano

Aqui chegados, sabemos que a cultura do risco, hoje, tem muito a ver com o “risco ao quotidiano” e que há uma encenação do risco, um “risco espetacular”, que passa pelo crivo mediático e que condiciona a perceção e adesão do risco individual e da sua subjetivação.

Sabemos todos que os custos do risco global são incomportáveis para os Estados mais vulneráveis e que o controlo do risco é uma tarefa infindável que nos causa ansiedade e uma indisfarçável melancolia.

Sabemos todos que a segurança e a solidariedade em matéria de distribuição de riscos é uma matéria politicamente muito sensível, que a sociedade contemporânea é uma sociedade saturada, cheia de imponderáveis e de efeitos não-intencionais, que a distribuição do risco é desigual e não possui evidência científica suficiente e que uma cultura de emergência prevalece sobre uma cultura de prevenção do risco.

Dito isto, e em matéria de riscos globais e sistémicos, a procissão ainda só vai no adro, pois as nossas diferentes e teimosas pegadas – ambientais, sanitárias, hídricas, digitais, alimentares, securitárias, tecnológicas, industriais – vão devolver-nos com custos acrescidos e graves muitos dos nossos erros de comportamento.

Por isso, a grande lição desta pandemia é, também, acerca da economia dos nossos comportamentos. Eis, pois, uma grande mutação à nossa frente, a mutação dos nossos comportamentos e a busca de uma outra racionalidade, sociabilidade e convivialidade.

Bibliografia: Covas, A e Covas, M (2010), Modernização ecológica, serviços ecossistémicos e riscos globais, Edição da Universidade do Algarve.

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