Uma vida de caracol

Felizmente, nesta cidade não é habitual cruzarmo-nos com pessoas que transportam de um lado para o outro, despojadas de dignidade, tudo o que têm

De cachecol púrpura a adornar o pescoço, com calças verde-tropa desbotadas e casaco axadrezado roto, José guarda sorrisos na algibeira. Nem sei se o seu nome é José, mas foi assim que o batizei; talvez um dia lhe pergunte como se chama.

Não consigo adivinhar a idade de José: diria, mais do que trinta, menos do que cinquenta. As longas rastas até à cintura acusam tempo de vida, mas sem exatidão.

As rugas do rosto são pouco expressivas. Possui um olhar pesaroso, certamente, do vazio da solidão.

Há vários anos que me cruzo com José quando percorro a cidade a pé. De carro, já parei várias vezes na passadeira para que ele pudesse exercer o seu direito de peão. Quando nos encontramos, pede-me uma moeda e, em troca, oferece-me um sorriso honesto.

Certo dia, perguntei na mercearia da rua, por onde ele vagueia com mais frequência, se conheciam a sua história. Disseram-me apenas que era pacífico, desde que andasse medicado. A escolha do termo «pacífico» inquietou-me; fez-me querer saber mais (na teoria) sobre o lado violento do Homem. Descobri Steven Pinker que defende que existem anjos bons na nossa natureza — que não somos uma espécie violenta, mesmo que os noticiários nos possam levar a pensar o contrário. José permite que a medicação adormeça os anjos maus.

Recentemente, encontrei-o numa zona distante do centro da cidade. O sorriso estava lá, as calças desbotadas e o casaco roto, também. Mas tinha ao pescoço um cachecol quadriculado em tons de vermelho, castanho e bege daqueles que nos lembram de imediato um perfume. Fantasiei que alguém apenas com dinheiro de plástico na carteira lhe tivesse oferecido o cachecol em troca de um sorriso largo.

Confesso que a imagem do cachecol, contrastando com a restante indumentária, me inquietou, mas não tanto quanto vê-lo a empurrar a sua casa ambulante, reunida num carrinho de compras de supermercado. Uma existência amealhada em sacos de plástico de várias cores e tamanhos, sobre uma manta de retalhos mais rota do que retalhada com um naperon a decorar o ferro. Sabia que José era sem-abrigo, mas vê-lo assim, a transportar a vida como um caracol, comoveu-me.

Felizmente, nesta cidade não é habitual cruzarmo-nos com pessoas que transportam de um lado para o outro, despojadas de dignidade, tudo o que têm. Almas solitárias que adormecem onde quer que o cansaço as vença, com as estrelas como teto.

Depois deste último encontro, passaram meses e não voltei a ver o José. Talvez, da próxima vez, lhe pergunte como se chama e de mão estendida com uma nota, lhe ofereça o meu sorriso em troca de nada.

 

 

Autora: Analita Alves dos Santos é autora e mentora literária

 

 

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