25 de Abril: Exemplos de resistência foram a exceção na imprensa regional

“A imprensa local e regional foi, genericamente, um setor bem comportado durante o Estado Novo”. Mas houve exceções

Exemplo de textos cortados pela Censura no Jornal do Fundão

Um olhar sobre a ditadura revela uma imprensa regional geralmente “bem comportada”, na qual pontuaram exemplos excecionais de resistência, como os jornais “Comércio do Funchal”, “Jornal do Fundão” e “Notícias da Amadora”.

Em geral, a “frágil” imprensa regional foi-se “aguentando ao longo da ditadura, mas sem lhe fazer frente”, observa, em declarações à Lusa, o investigador e professor universitário João Figueira.

“A imprensa local e regional foi, genericamente, um setor bem comportado durante o Estado Novo”, retrata, explicando-o com “a ausência de estruturas empresariais consistentes” e “um excessivo amadorismo”.

A “irrelevância” dos jornais locais e regionais “enquanto campo de resistência e de combate contra a ditadura” não afasta, porém, alguns “casos emblemáticos de jornais que lutaram contra a corrente”, assinala o professor de Jornalismo na Universidade de Coimbra.

Nessa lista surgem três títulos à cabeça – “Comércio do Funchal”, “Jornal do Fundão” e “Notícias da Amadora” –, que, segundo a Hemeroteca Municipal de Lisboa, eram os jornais regionais mais lidos no país.

Estes três jornais “criaram-se à volta de ideias”, numa época em que as notícias não contavam e a imprensa “era praticamente só opinião”, recorda João Palmeiro, analista de ‘media’ e produtor cultural.

“O que contava eram as pessoas localmente importantes (médicos, farmacêuticos, advogados, juízes) que escreviam sobre o que se passava localmente”, acrescenta, lembrando que os jornais não tinham correspondentes em Lisboa e “não faziam a mais pequena ideia” do que lá se passava.

“A visão que temos de oposição ao regime, ideológica e política, não encontramos na imprensa regional, o que encontramos muitas vezes é oposição ao poder central, quando tenta fazer coisas que a população local não quer”, distingue, em declarações à Lusa.

Aliás, a imprensa regional “só se metia em assuntos de ordem nacional em duas circunstâncias, se havia visitas ou inaugurações oficiais, de membros do governo, ou nos chamados casos de interesse local”.

João Palmeiro, que durante décadas representou a Associação Portuguesa de Imprensa, a mais representativa associação de editores de jornais e revistas, dá como exemplo a “celeuma” causada nos anos 1950 quando Lisboa decidiu regulamentar as casas de regiões ou municípios.

 

Exemplo de texto totalmente cortado pela Censura no Jornal do Fundão

 

Amadora, Funchal e Fundão eram bastiões da oposição à ditadura

A oposição da imprensa regional ao Estado Novo fez-se sobretudo a partir de três locais, Amadora, Funchal e Fundão, cujos respetivos jornais deixaram uma marca no caminho da ditadura para a democracia.

José Maria Amador entrou aos 18 anos para o “albergue da oposição” que era o “Comércio do Funchal”, editado desde setembro de 1934.

A matriz do semanário – que custava quatro escudos na Madeira e tinha como diretor e proprietário, desde 1967, João Carlos da Veiga Pestana – “era ser crítico do regime”, recorda à Lusa o madeirense, que não continuou no jornalismo, dedicando-se à área do património cultural.

Amador guarda na memória como se fazia o jornal: “Era tudo manual. Uma dezenas de jovens intercalavam as folhas e dobravam os jornais e depois levavam aos correios, em pacotes transportados em viaturas próprias. Demorava uma noite.”

O “jornal cor-de-rosa”, como era conhecido, tinha uma tiragem à volta de 15 mil exemplares, dois terços dos quais seguiam para o Continente, onde tinha “alguma influência, sobretudo nos meios universitários”, contribuindo para a “consciencialização de uma elite estudantil de esquerda”.

Paralelamente, o jornal tinha uma precursora secção local sobre o que se passava na Madeira.

O “Comércio do Funchal” era “um pagode” onde “escreviam todas as correntes políticas críticas ao regime da altura, sociais-democratas, socialistas, MRPP’s, trotskistas, a esquerda mais radical, de fora só ficava mesmo o PCP”, descreve Amador.

O jornal uniu em ditadura o que não conseguiu juntar em democracia, terminando pouco depois do 25 de Abril.

Estar na Madeira foi, inicialmente, uma vantagem, pois “havia uma maior liberalização e as coisas passavam com relativa facilidade na censura local”, recorda Amador.

Mas, isso só durou até o regime perceber que tinha de apertar o cerco: o jornal passa a ser censurado em Lisboa e chega a ser suspenso.

Só viria a retomar atividade já estava no poder Marcelo Caetano, que fez regressar o “Comércio do Funchal” à censura local, pela mesma altura em que Vicente Jorge Silva se assumia como um dos seus principais dinamizadores.

Também o “Jornal do Fundão” tinha “uma dimensão nacional”, visível sobretudo na Beira Interior, em Lisboa e nas comunidades portuguesas na diáspora.

Os suplementos culturais, uma das imagens de marca do semanário, “tornaram-se referência na história da imprensa portuguesa”, realça Fernando Paulouro.

“Portugal era um país fechado dentro do medo”, lembra o jornalista, em declarações à Lusa.

Fundado por António Paulouro, em 1946, o “Jornal do Fundão” chegou a ser suspenso durante seis meses, em 1965, por ter publicado a notícia da atribuição do prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores ao escritor luso-angolano Luandino Vieira.

Fernando Paulouro, que começou a colaborar com o jornal ainda era estudante, relata que, a partir dos anos 1960, o jornal começou a ser visado em provas de página pela censura em Lisboa, um “regime especial” que a ditadura preferia ocultar.

O jornal colocava sempre a indicação “visado pela censura de Lisboa”, a censura tirava sempre “de Lisboa”, recorda.

“Os censores transformavam os leitores de jornais em detetives da palavra, à espera de ver lá coisas que lá não estavam mas deviam estar”, descreve Fernando Paulouro.

O “jornal de causas e solidário com as pessoas”, que custava três escudos, publicou o seu último número dois anos depois do 25 de Abril.

A censura foi particularmente agressiva sobre o “Notícias da Amadora”, mutilando 2.776 peças entre 1958 e 1974 e prendendo várias vezes o seu diretor, Orlando Gonçalves (1963-1994).

Fundado em 25 de outubro de 1958, custava cinco escudos.

Poucos dias antes do 25 de Abril, a polícia política (PIDE-DGS) tomou de assalto a tipografia e a redação do Notícias da Amadora, apreendendo material e prendendo jornalistas.

Um dos mais influentes periódicos de oposição ao Estado Novo, o “semanário popular” tinha muita projeção entre os opositores exilados.

Filho de Orlando Gonçalves, Orlando César, que viria a dirigir o jornal a partir de 1994 e até ao fecho, em 2006, recordou à Lusa que o “Notícias da Amadora” tinha “gente de todo o lado” e que era essa “diversidade” que dava “amplitude ao jornal”.

O “Notícias da Amadora” entra na vida de Orlando César quando tinha 13 anos, desviando-o da agronomia para o jornalismo.

Durante a ditadura, a partir de Angola, o jornalista enviou fotos dos massacres das comunidades autóctones e escreveu regularmente no jornal, sobretudo crónicas. Sujeito a vários cortes de censura, às vezes tinha de recorrer a pseudónimos.

Depois do 25 de Abril, Orlando César foi “uma espécie de correspondente em Angola”, voltando a Portugal em junho de 1975.

 

 

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