Se houvesse um museu informal do Farense, tinha de ser ali: desde as bandeiras nas paredes, ao símbolo à entrada, aos bilhetes emoldurados, às fotos de antigas equipas. «Olha, eu estou aqui nesta», diz uma dessas velhas glórias que pululam no imaginário do São Luís. «E naquela também», acrescenta. É o Vilaça, defesa esquerdo dos anos 80 que chegou de Braga para marcar uma era. Todos o conhecem, a começar pelo mestre João, o homem por detrás desse museu. Ou seja, a Adega do Amável.
Quando entra no estabelecimento, já a tarde vai longa, é rara a pessoa que não o conhece. Passaram-se décadas, mais de 40 anos, mas as memórias de Manuel Vilaça a jogar naquela ala esquerda continuam muito vivas.
João Domingos, um farense dos sete costados, que, depois de emigrado nos Estados Unidos da América, voltou ao Algarve, lembra-se bem. É ele o dono do Amável e logo solta um cumprimento quando o vê.
«Eh pá, finalmente deixaste-te ver!», diz, mal repara em Vilaça. Bom pretexto para começar a conversa. «E lembra-se dele como jogador, mestre João?», pergunto.
«Se me lembro… então claro que sim. Eu estava nos Estados Unidos, mas vinha cá ver muitos jogos. Era raçudo: não perdia uma bola», responde prontamente.
Agora, palavra ao artista.
«Eu era um ala, acima de tudo, fazia o corredor todo. Era agressivo no lance, mas virava as costas e depois já não passava nada. E tenho uma coisa engraçada: nunca fui expulso», conta.
Na longa carreira – de 1974 a 1990 -, o antigo defesa esquerdo passou por vários clubes: Braga, Farense, Espinho, Penafiel, Felgueiras, Ermesinde, Louletano e Faro e Benfica. Essencialmente, na I Liga, mas também na II.
E tudo começou… pelo andebol.
«Eu era mais do andebol e jogava muito bem, mas deu-me um vaipe e pensei que o futebol é que era giro. Fui treinar nos juvenis no Braga, comecei com 15 anos, e tive logo jeito», conta.
Não é caso único no mundo do futebol, mas é sempre engraçado. Apesar de ter feito toda a carreira como defesa esquerdo, Vilaça começou numa posição bem diferente: avançado.
«Estávamos naquela época de captação. Para defesa esquerdo, ninguém levantou a mão e, então, decidi levantar eu. Treinei sete minutos e fiquei logo selecionado. No dia seguinte, já era um treino só com os escolhidos: comecei como defesa esquerdo nos juvenis e nunca mais deixei a posição», diz.
As histórias vão sendo contadas ao ritmo de uma tábua de enchidos e copos de vinho. Os anos em Braga, confessa, foram essenciais – desde a formação, às temporadas já como sénior em que subiu à I Liga pela primeira vez.
Mas Faro é indissociável da história de vida deste antigo defesa esquerdo.
António Medeiros, então treinador do Farense, precisava de um lateral e lembrou-se de Vilaça. O jovem jogador pensou: «porque não?». Sinal de que a escolha não podia ter sido mais acertada é que, logo no jogo de apresentação, o atleta conquistou o São Luís.
«Era a minha estreia: faço uma jogada, ganho um penálti e o treinador tira-me para as palmas. A bancada agarrou-me logo ali», diz, orgulhoso.
Nessa primeira temporada, o Farense ficou a um passo de subir à I Liga. «O [Fernando] Barata, que era o presidente, mudou o treinador porque achava que já tínhamos subido e deu mau resultado», conta.
Não subiram nesse ano, mas, na época a seguir – 1982/1983 -, viria o ponto alto da carreira de Manuel Vilaça. É ele próprio que o admite.
«Fomos campeões nacionais da II Liga. Foi uma coisa do outro mundo ser campeão do Farense. É, assim, um apogeu. A massa associativa, aqui em Faro, gostava de mim e nunca tive problemas. Eu era muito poucas vezes substituído. Empenhava-me sempre e punha a minha capacidade física no jogo. Mas sem nunca ser expulso!», diz, entre risos.
Entre as muitas memórias em Faro, o antigo atleta recorda também Hristo Mladenov, treinador húngaro, que, apesar de uma zanga posterior que o levou a deixar o clube, descreve como «um tipo fantástico».
«Houve uma vez… Fomos jogar na II Divisão no campo do Vasco da Gama de Sines. Nós éramos a melhor equipa, mas eles começaram a dar uma luta terrível. O extremo que estava à minha frente, meu colega, era o Cheira e estava a esconder-se. A jogar a medo. Chamei-lhe os nomes todos, começou-se a entusiasmar e eu e ele partimos o jogo todo», conta.
Em Faro, jogou com muita gente: Mészáros (guarda-redes húngaro que também passou pelo Sporting), Jorge Jesus, Manuel Cajuda, José Rafael, Skoda, Carlos Alhinho… Tudo nomes que marcaram o futebol português nesses anos 80.
De muitos, ainda se mantém amigo: Cajuda, Skoda, Zé Rafael, mas também Paulo Campos – médio brasileiro que passou por Benfica e Farense – , Jorge Martins ou Rogério Valério. A lista nunca mais acaba.
«O Jesus ainda agora esteve aí [em Faro] e uma das condições que pôs foi que só ia jantar se me convidassem», conta, a rir.
Pretexto perfeito para virar a conversa para outra das paixões de Vilaça: a cozinha. Aliás, em Faro, talvez esta seja uma faceta tão conhecida como a de futebolista.
Durante décadas, foi dono de um restaurante na baixa. O gosto pelos tachos já vinha dos tempos da bola.
«Eu pendurei as botas aos 32 anos e é toda uma nova vida. Eu tinha jeito para a cozinha, já gostava, e decidi abrir um restaurante», conta.
De 1989 a 2002, o “Vilaça” esteve de portas abertas, na Rua de São Pedro. Dali, ainda esteve mais oito anos aberto, mas noutra localização, perto do Consulado do Brasil.
Por lá, passaram milhares de clientes, alguns de renome, como Jorge Palma, Pedro Abrunhosa e Maria João Pires.
«Durante 24 anos, fiz as Semanas Académicas do Algarve e dava de comer a toda a gente da organização: artistas, técnicos, tudo», relembra.
«Toda a gente me conhece como o jogador que tinha o restaurante», acrescenta, sorridente.
Apesar de minhoto – com um sotaque que não engana -, o Algarve faz parte da vida de Vilaça, que se recorda bem de como foi chegar a Faro.
«O que me cativou logo foi um clima a que não estava habituado… Em Braga, chovia meses consecutivos. Chego aqui e, em Dezembro, estou na praia com a minha mulher e dois dos meus três filhos [a terceira, nasceria mais tarde, já em Faro]. Então, pensei: nunca mais saio daqui», diz.
Daí que, quando foi obrigado a deixar o Algarve por alguns anos (saiu do Farense em 1984 para Penafiel) «custou muito».
«De tal forma, que voltei logo em em 1987 para jogar no Louletano», acrescenta, prontamente.
E mágoas, ao longo de tantos anos como profissional, não as houve? Apesar de não responder diretamente, o antigo defesa esquerdo conta duas histórias.
A primeira: quando esteve perto de assinar por um grande: o FC Porto, no caso.
«Em 1977, sou chamado à seleção para o Torneio de Toulon, faço quatro jogos e marco um golo. Quando venho da seleção, o FC Porto interessa-se por mim. O Pedroto era o treinador na altura, mas o Braga entendeu que ainda não devia sair. Estive quase a dar o salto», relembra.
A outra: quando esteve quase a emigrar. «Fui fazer um treino ao Red Star Paris, que estava na II Divisão francesa. Eles estavam interessados, mas o Braga também não me deixou», diz.
Ao lembrar-se destas duas histórias, Vilaça recorda-se também a amizade que tinha com Fernando Gomes, o bibota com quem jogou em Toulon, e falecido em Novembro de 2022.
Pega no telemóvel: «tenho aqui uma mensagem dele que ainda não consegui apagar».
A conversa dirige-se para o final, com o antigo jogador a falar ainda da oportunidade que teve para assumir o comando técnico de um clube – o Aljustrelense – que acabou por recusar.
«Eu fiz o curso de treinador, uma equipa ainda me veio buscar, mas eu não quis ir: não havia autoestrada, tinha aqui a família. Refugiei-me na vida que já tinha, muito estável», diz.
Despedimo-nos já o relógio marca a hora de jantar. É sintomático: à porta de saída, está mais um cliente da Adega do Amável que reconhece o antigo jogador.
«Olha o Vilaça», diz. «Olá! Tudo bem?», responde, o ex-atleta.
Depois do cumprimento de despedida, ainda regressa para uma última conversa com o mestre João que já não ouvimos. Aposto que foi sobre o Farense.
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