Vilaça, o minhoto que se fez Farense entre chuteiras e tachos

Uma viagem ao mundo do futebol e da cozinha, com um ícone de Faro, nascido em Braga

Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

Se houvesse um museu informal do Farense, tinha de ser ali: desde as bandeiras nas paredes, ao símbolo à entrada, aos bilhetes emoldurados, às fotos de antigas equipas. «Olha, eu estou aqui nesta», diz uma dessas velhas glórias que pululam no imaginário do São Luís. «E naquela também», acrescenta. É o Vilaça, defesa esquerdo dos anos 80 que chegou de Braga para marcar uma era. Todos o conhecem, a começar pelo mestre João, o homem por detrás desse museu. Ou seja, a Adega do Amável. 

Quando entra no estabelecimento, já a tarde vai longa, é rara a pessoa que não o conhece. Passaram-se décadas, mais de 40 anos, mas as memórias de Manuel Vilaça a jogar naquela ala esquerda continuam muito vivas.

João Domingos, um farense dos sete costados, que, depois de emigrado nos Estados Unidos da América, voltou ao Algarve, lembra-se bem. É ele o dono do Amável e logo solta um cumprimento quando o vê.

«Eh pá, finalmente deixaste-te ver!», diz, mal repara em Vilaça. Bom pretexto para começar a conversa. «E lembra-se dele como jogador, mestre João?», pergunto.

«Se me lembro… então claro que sim. Eu estava nos Estados Unidos, mas vinha cá ver muitos jogos. Era raçudo: não perdia uma bola», responde prontamente.

Agora, palavra ao artista.

«Eu era um ala, acima de tudo, fazia o corredor todo. Era agressivo no lance, mas virava as costas e depois já não passava nada. E tenho uma coisa engraçada: nunca fui expulso», conta.

Na longa carreira – de 1974 a 1990 -, o antigo defesa esquerdo passou por vários clubes: Braga, Farense, Espinho, Penafiel, Felgueiras, Ermesinde, Louletano e Faro e Benfica. Essencialmente, na I Liga, mas também na II.

E tudo começou… pelo andebol.

«Eu era mais do andebol e jogava muito bem, mas deu-me um vaipe e pensei que o futebol é que era giro. Fui treinar nos juvenis no Braga, comecei com 15 anos, e tive logo jeito», conta.

 

 

Foto: Diogo Inácio

 

Não é caso único no mundo do futebol, mas é sempre engraçado. Apesar de ter feito toda a carreira como defesa esquerdo, Vilaça começou numa posição bem diferente: avançado.

«Estávamos naquela época de captação. Para defesa esquerdo, ninguém levantou a mão e, então, decidi levantar eu. Treinei sete minutos e fiquei logo selecionado. No dia seguinte, já era um treino só com os escolhidos: comecei como defesa esquerdo nos juvenis e nunca mais deixei a posição», diz.

As histórias vão sendo contadas ao ritmo de uma tábua de enchidos e copos de vinho. Os anos em Braga, confessa, foram essenciais – desde a formação, às temporadas já como sénior em que subiu à I Liga pela primeira vez.

Mas Faro é indissociável da história de vida deste antigo defesa esquerdo.

António Medeiros, então treinador do Farense, precisava de um lateral e lembrou-se de Vilaça. O jovem jogador pensou: «porque não?». Sinal de que a escolha não podia ter sido mais acertada é que, logo no jogo de apresentação, o atleta conquistou o São Luís.

«Era a minha estreia: faço uma jogada, ganho um penálti e o treinador tira-me para as palmas. A bancada agarrou-me logo ali», diz, orgulhoso.

Nessa primeira temporada, o Farense ficou a um passo de subir à I Liga. «O [Fernando] Barata, que era o presidente, mudou o treinador porque achava que já tínhamos subido e deu mau resultado», conta.

Não subiram nesse ano, mas, na época a seguir – 1982/1983 -, viria o ponto alto da carreira de Manuel Vilaça. É ele próprio que o admite.

«Fomos campeões nacionais da II Liga. Foi uma coisa do outro mundo ser campeão do Farense. É, assim, um apogeu. A massa associativa, aqui em Faro, gostava de mim e nunca tive problemas. Eu era muito poucas vezes substituído. Empenhava-me sempre e punha a minha capacidade física no jogo. Mas sem nunca ser expulso!», diz, entre risos.

Entre as muitas memórias em Faro, o antigo atleta recorda também Hristo Mladenov, treinador húngaro, que, apesar de uma zanga posterior que o levou a deixar o clube, descreve como «um tipo fantástico».

«Houve uma vez… Fomos jogar na II Divisão no campo do Vasco da Gama de Sines. Nós éramos a melhor equipa, mas eles começaram a dar uma luta terrível. O extremo que estava à minha frente, meu colega, era o Cheira e estava a esconder-se. A jogar a medo. Chamei-lhe os nomes todos, começou-se a entusiasmar e eu e ele partimos o jogo todo», conta.

Em Faro, jogou com muita gente: Mészáros (guarda-redes húngaro que também passou pelo Sporting), Jorge Jesus, Manuel Cajuda, José Rafael, Skoda, Carlos Alhinho… Tudo nomes que marcaram o futebol português nesses anos 80.

De muitos, ainda se mantém amigo: Cajuda, Skoda, Zé Rafael, mas também Paulo Campos – médio brasileiro que passou por Benfica e Farense – , Jorge Martins ou Rogério Valério. A lista nunca mais acaba.

«O Jesus ainda agora esteve aí [em Faro] e uma das condições que pôs foi que só ia jantar se me convidassem», conta, a rir.

Pretexto perfeito para virar a conversa para outra das paixões de Vilaça: a cozinha. Aliás, em Faro, talvez esta seja uma faceta tão conhecida como a de futebolista.

Durante décadas, foi dono de um restaurante na baixa. O gosto pelos tachos já vinha dos tempos da bola.

«Eu pendurei as botas aos 32 anos e é toda uma nova vida. Eu tinha jeito para a cozinha, já gostava, e decidi abrir um restaurante», conta.

De 1989 a 2002, o “Vilaça” esteve de portas abertas, na Rua de São Pedro. Dali, ainda esteve mais oito anos aberto, mas noutra localização, perto do Consulado do Brasil.

 

Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

 

Por lá, passaram milhares de clientes, alguns de renome, como Jorge Palma, Pedro Abrunhosa e Maria João Pires.

«Durante 24 anos, fiz as Semanas Académicas do Algarve e dava de comer a toda a gente da organização: artistas, técnicos, tudo», relembra.

«Toda a gente me conhece como o jogador que tinha o restaurante», acrescenta, sorridente.

Apesar de minhoto – com um sotaque que não engana -, o Algarve faz parte da vida de Vilaça, que se recorda bem de como foi chegar a Faro.

«O que me cativou logo foi um clima a que não estava habituado… Em Braga, chovia meses consecutivos. Chego aqui e, em Dezembro, estou na praia com a minha mulher e dois dos meus três filhos [a terceira, nasceria mais tarde, já em Faro]. Então, pensei: nunca mais saio daqui», diz.

Daí que, quando foi obrigado a deixar o Algarve por alguns anos (saiu do Farense em 1984 para Penafiel) «custou muito».

«De tal forma, que voltei logo em em 1987 para jogar no Louletano», acrescenta, prontamente.

E mágoas, ao longo de tantos anos como profissional, não as houve? Apesar de não responder diretamente, o antigo defesa esquerdo conta duas histórias.

A primeira: quando esteve perto de assinar por um grande: o FC Porto, no caso.

«Em 1977, sou chamado à seleção para o Torneio de Toulon, faço quatro jogos e marco um golo. Quando venho da seleção, o FC Porto interessa-se por mim. O Pedroto era o treinador na altura, mas o Braga entendeu que ainda não devia sair. Estive quase a dar o salto», relembra.

A outra: quando esteve quase a emigrar. «Fui fazer um treino ao Red Star Paris, que estava na II Divisão francesa. Eles estavam interessados, mas o Braga também não me deixou», diz.

Ao lembrar-se destas duas histórias, Vilaça recorda-se também a amizade que tinha com Fernando Gomes, o bibota com quem jogou em Toulon, e falecido em Novembro de 2022.

Pega no telemóvel: «tenho aqui uma mensagem dele que ainda não consegui apagar».

A conversa dirige-se para o final, com o antigo jogador a falar ainda da oportunidade que teve para assumir o comando técnico de um clube – o Aljustrelense – que acabou por recusar.

«Eu fiz o curso de treinador, uma equipa ainda me veio buscar, mas eu não quis ir: não havia autoestrada, tinha aqui a família. Refugiei-me na vida que já tinha, muito estável», diz.

Despedimo-nos já o relógio marca a hora de jantar. É sintomático: à porta de saída, está mais um cliente da Adega do Amável que reconhece o antigo jogador.

«Olha o Vilaça», diz. «Olá! Tudo bem?», responde, o ex-atleta.

Depois do cumprimento de despedida, ainda regressa para uma última conversa com o mestre João que já não ouvimos. Aposto que foi sobre o Farense.

 

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