«Três Mulheres no Beiral» – Um livro feito de palavras que nos alcançam

Começa hoje a viagem «Pelo Mundos dos Livros»

Analita Santos, que é autora e mentora literária, bem como colunista habitual do Sul Informação, estreia-se hoje, nas nossas páginas, nas andanças da crítica literária. Trata-se da nova rubrica que lançamos este sábado e que será mensal, denominada «Pelo Mundos dos Livros». Todos os artigos desta nova rubrica passam a ficar sempre disponíveis numa nova página, a que se pode aceder clicando no banner da secção «Pelo Mundos dos Livros».

 

«Naquela rua não faltavam pessoas e casas a precisar de conserto. Quando tudo aconteceu, já elas estavam nas últimas: Piedade e a casa, periclitando nuns oitenta e tal anos mal contados, sem maquilhagem que disfarçasse as rugas, nem as imperfeições de raiz, nem nenhum dos massacres que o tempo deixava à mostra, esperando a morte como quem aguardava vez numa fila».

É desta forma que se inicia o primeiro capítulo de «Três Mulheres no Beiral», de Susana Piedade, o seu terceiro livro de ficção, finalista do Prémio LeYa em 2021. O romance de estreia na literatura, «As Histórias Que Não Se Contam», chegou também às finais do Prémio LeYa em 2015, levando-nos a acreditar que a paixão de Susana Piedade pela escrita é um amor frutífero, daqueles duradoiros.

Nesta obra, a pena corre poética, sensível e cuidada ao abordar temas delicados como o abandono na velhice, a gentrificação e as complexidades familiares. Conforme escreveu Liev Tolstói, «Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira», e a família desta história tem a infelicidade como madrinha.

Na casa de Piedade — o lar que acompanha as emoções de quem lá vive, num uníssono de solidariedade material («Esvazia-se um quarto, mas não o coração»), com uma degradação evidente à medida que a história avança, sem escapar ao fim trágico —, as mulheres detêm o foco narrativo (o título é disso indicador); os homens são cinzentos, exceto o irreverente, oco e perigoso Eduardo, pelos piores motivos.

José Maria, pai de Eduardo, é outra das personagens masculinas, um homem hesitante, ambíguo, de existência interior vazia; um fugitivo dos problemas. Perde a mulher, os filhos, e vive como se não vivesse, arrastado pela vida. «Qualquer dia descobria a tal paragem nos confins da Areosa e apanhava aquele autocarro para “Sonhos”. Talvez encontrasse por lá os pais, a ex-mulher, os filhos, e fossem todos dar uma volta».

«Três Mulheres no Beiral» é um romance de formação, geracional. Assume a expressão de obra literária ao dar o salto emocional da esfera privada da octogenária Piedade (a matriarca), Madalena (a neta) e Catarina (a bisneta), das vizinhas (a Carlota ou a Agustina), para o plano social da pressão imobiliária, do abandono (literal) na velhice, no papel dos (maus) cuidadores e dos lares com condições não aceitáveis, sem cair na fácil pieguice ou lugar-comum.

«Além disso, não fazia mal nenhum aplicar-lhe um corretivo de vez em quando. Não era pior do que matar os canários um a um com veneno misturado na alpista, porque não suportava lavar a imundície das gaiolas, a chuva de grãos nas escadas e ouvir aquela piadeira irritante a toda a hora. Já bastava a chiadeira das gaivotas, o arrulhar enervante dos pombos nos telhados e a porcaria que faziam. Se pudesse, exterminava-os a todos. Sucedeu Carlota testemunhar o último massacre. O passarinho já morto e a rapariga escondendo o veneno no bolso da bata sem tirar os olhos dela, enquanto decidia se a empurrava das escadas ou não».

É o cenário real da problemática da gentrificação na cidade do Porto, as suas implicações sociais e humanitárias, que espicaçaram Susana Piedade e a inspiraram a gerar esta narrativa ficcional, que, ao partir da especulação imobiliária e da perda de um lar, nos encaminha neste drama familiar e geracional.

Como se de uma tragédia grega se tratasse, há personagens que não fogem ao destino: não poderiam ter outro fim. Mas, neste romance bem estruturado, inspirador, de forte linguagem poética, que surpreende e nos faz desejar ler de lápis na mão (mais no começo, depois dá lugar à robustez da narrativa), com personagens bem esculpidas e um final inesperado (aparentemente), fatídico, «Talvez as casas morressem como as pessoas», há lugar aos recomeços. Porque a vida só tem um caminho, para a frente, e com este pensamento: «Só é tarde quando morremos. Ninguém faz as pazes com uma lápide».

Eis uma escritora portuguesa a conhecer. Um romance que recomendo.

 

 

 

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