«Casa sem pão, todos ralham e ninguém tem razão»: a seca no Algarve em 2024

Não creio que a arrogância, egoísmo e prepotência com que a maioria exige a água, que não cai do céu, sejam agricultores, empresários e cidadãos, sensibilize São Pedro a abrir as torneiras

Quem, por estes dias, chegar ao Algarve achará que a seca que atravessamos, aliás que atinge todo o Mediterrâneo, é algo anormal, que nunca antes ocorrera. Uma praga que se abateu sobre nós e que teima em perdurar.

Para uns, são as alterações climáticas, que agora assacam com as responsabilidades (ou as irresponsabilidades alheias) de tudo e mais alguma coisa, para outros, são os governos que não tomaram medidas, ou os autarcas, como se, no mês em que voltar a chover em abundância, tudo não fique rapidamente esquecido, como sempre aconteceu.

E não creio que a arrogância, egoísmo e prepotência com que a maioria exige a água, que não cai do céu, seja de agricultores, empresários e cidadãos, sensibilize São Pedro a abrir as torneiras.

Mas afinal, porque não chove?

No sul do país e no Algarve, em particular, o clima é mediterrânico, isto é, com verões longos e invernos curtos e precipitação irregular. São já muito poucos os que viveram a terrível seca de 1943-1946, onde se dormia junto aos poços, na ansiedade de ver nascer e conseguir carregar um cântaro de água para casa, no dorso de um burro.

As cisternas haviam secado muito antes e a solução foi aprofundar a maioria dos poços, para que os algarvios não morressem à sede. Mais longe, fica a estiagem de 1929 ou ainda a de 1905-1907, cujas memórias há muito se perderam.

 

Aguadeiro na Praia da Rocha (Bilhete postal ilustrado)

 

Mas o que não falta na história do Algarve são episódios de terríveis secas, que semearam amiúde a miséria e a fome, como a de 1875, que já aqui recordámos, logo renovada em 1878.

Sobre esta última, lavrava a Câmara de Silves, em acta, a 15 de janeiro daquele ano: «os infelizes filhos do Algarve, perseguidos da maior adversidade de que não há memória». Deste tempo, resultou um incremento nas obras públicas (como do caminho de ferro de Faro a Beja), para matar a fome aos algarvios.

No Algarve de antanho, não se vivia, sobrevivia-se às «passinhas do Algarve». Procissões religiosas a rogar por chuva foram a regra e não a exceção, que perduraram século após século, conforme comprovam os registos das confrarias, em qualquer arquivo paroquial. Não obstante, nunca se viveu acima das possibilidades, nunca os equilíbrios da natureza foram postos em causa pelos nossos antepassados.

 

Jornal Folha do Domingo, edição de 21 abril de 1929

 

Com a abertura dos primeiros furos artesianos, a partir da década de 1960, e a descoberta de grandes aquíferos subterrâneos, como o de Querença/Silves, que a expansão da electrificação do mundo rural, após o 25 de Abril de 1974, veio permitir e fomentar, os algarvios esqueceram o valor e a importância de poupar água.

Do ponto de vista agrícola, ainda na década de 1950, construíram-se as primeiras barragens, como o Arade (1956), a Bravura (1959), a que se seguiu, na década de 1990, o Funcho, Odeleite e Beliche, e, já neste século, Odelouca.

Albufeiras que permitiram, através dos perímetros de rega que quase sempre as acompanharam, a transformação da agricultura de sequeiro, pelo regadio, primeiro com os citrinos, agora com as peras abacate, sempre aumentando a área de exploração, expandindo, mais e mais, uma agricultura que dizem «dinâmica», apoiada igualmente por captações subterrâneas. Sem esquecer os relvados nos jardins municipais (vimos alguns secos no último Verão?) ou os campos de golfe.

A juntar a tudo isto, na serra, a arborização que se impunha não se fez ou plantaram-se eucaliptos, decerto, tal como a agricultura, uma floresta «dinâmica», mas ambiental e sustentadamente um desastre.

Podemos assim dizer que, desde a década de 1980, ainda que com sustos aqui ou acolá, como em 2005, só para dar um exemplo, o precioso líquido não falta nas torneiras, de tal forma que atingimos o ridículo de a maioria da população considerar a chuva como «mau tempo».

Se é certo que a água não deixou de correr nas nossas casas, os aquíferos junto à costa foram ficando impróprios, isto é salinizados. O equilíbrio, que sempre houve entre a água doce e a salgada, perdeu-se com a extração da primeira e a intrusão da segunda pelo subsolo adentro. Face ao problema, a região avançou com a construção de barragens na década de 1990, como se referiu.

 

Barragem de Odelouca no Verão passado – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Todavia, a construção de albufeiras tem grandes impactes na natureza, não só nos vales/cursos dos rios, na fauna ou na flora, como na costa. Ao contrário do que muitos insinuam, alguns mesmo com responsabilidades políticas, a água transportada pelos rios e ribeiras não se «perde» para o mar, este é o seu percurso natural.

Como se o direito que os humanos têm ao precioso líquido fosse superior ao dos restantes animais e plantas que compõem a natureza…

As barragens, entre outros impactes negativos, impedem os sedimentos de atingirem o oceano e, sem eles, o mar irá, mais cedo ou tarde, invadir as praias e marginais, para recuperar as areias aí depositadas no passado, obviamente destruindo a ocupação humana nesses locais.

Por outro lado, todo o ecossistema marinho é afetado, É que, no mar, a seca também se faz sentir e, pela ausência de alimento (os sedimentos transportados pelos rios), os peixes não são atraídos à costa.

As intervenções do Homem na natureza têm, nas últimas décadas, vindo a destruir o equilíbrio que esta apresentava, agora ainda agravado pelas alterações climáticas. Secas, inundações, ondas de calor ou de frio, não são fenómenos novos, mas, o que antes era algo muito raro, vai tornar-se cada vez mais frequente.

A floração anormal das plantas em dezembro e janeiro, ou várias vezes no ano, como se tem vindo a verificar, é algo que nos deveria por em reflexão. Há aves que começaram a nidificar no Outono, ainda em dezembro viram-se perdizes com perdigotos, enquanto os répteis deixaram de hibernar.

As elevadas temperaturas que se têm registado nos últimos invernos, são disso responsáveis. As alterações climáticas são bem patentes, não há como ignorá-las, apesar da maioria ainda o fazer.

 

Bilhete Postal ilustrado

 

Posto isto, como mitigar a seca?

Ao contrário do que pulula nas redes sociais, não existem soluções fáceis e, por todas as variantes que referimos, não podemos resolver o problema, ignorando os impactes das barragens, das alterações climáticas, ou mesmo da dessalinização.

Esta última apresenta vários inconvenientes, desde logo a salmoura que acaba por ser rejeitada para o mar, onde, em águas pouco agitadas como as algarvias, terá tendência para se acumular, pela maior densidade que apresenta.

No caso do Algarve, não é um problema menor, além de que o custo de produção é elevadíssimo, basta multiplicarmos a nossa fatura atual por 10. Estamos dispostos e temos condições económicas para pagar por mês, pelo serviço de abastecimento de água, entre 200 a 300 euros?

Trazer água do norte (Minho) para o sul, não se afigura solução, até porque o clima mais seco vai estender-se à Estremadura. E basta lembrar os inúmeros transvases que existem hoje em dia em Espanha, os quais não impedem a situação de seca que todo o Levante atravessa, mais grave que a que por ora vivemos.

Quanto ao Alqueva, como se nos apresenta atualmente, em pleno armazenamento, é exceção e não a regra para os próximos anos, já que o clima também será seco no Alentejo e em Espanha, não tenhamos ilusões.

 

Tirar água do poço, Fontainhas, Albufeira (Bilhete postal ilustrado)

 

Então o que podemos fazer?

Poupar água! Todos nós temos que ter consciência dessa necessidade quando abrirmos a torneira. Onde está a grande campanha de sensibilização para os algarvios e turistas que nos visitam?

Iniciativas ténues foi o que houve até agora, enquanto os consumos continuam a aumentar, como aconteceu em Janeiro, em comparação com o mesmo mês de 2023.

Nem os autarcas conseguiram chegar a acordo em relação ao aumento dos preços da água, algo que só peca por tardio, mais preocupados com o seu futuro político do que com a sustentabilidade da região.

Poderemos recorrer às procissões religiosas, como fizeram os nossos antepassados, mas o sucesso será, decerto, relativo.

Reflorestar a serra, com espécies adaptadas ao novo clima (em 2070, segundo os modelos climáticos, já não haverá sobreiros abaixo do rio Tejo), devia ser a prioridade número um dos decisores políticos. A qual ninguém, mas ninguém mesmo, prioriza. Claro, não prevê obras faraónicas e da serra só nos lembramos no Verão:  é que, reflorestada e cuidada, lá acabariam também os incêndios.

Só com uma serra arborizada se poderá tornar o clima mais húmido e reter a água na manta morta, de uma forma natural, ao invés de aquela se precipitar pelos vales e ribeiras. Mas nada disto é novo, basta lembrarmos as publicações do Prof. Manuel Gomes Guerreiro nos anos de 1950, ou de outros jovens técnicos nos primeiros Congressos do Algarve.

Alguns destes últimos, enveredaram por carreiras políticas e agora, não obstante se encontrarem reformados e bem pagos (pensão e subvenções), dedicam-se à agricultura e ao protagonismo, defendendo o indefensável.

Tenhamos presente que não estamos em 1980, defendendo soluções que então fariam a diferença, mas que hoje, à luz do conhecimento atual e das alterações climáticas, são reprováveis a vários níveis, como a construção de barragens.

Mas podemos usar já as águas residuais tratadas, com a sua recolha em veículos acoplados de cisternas nas ETAR e transporte, por exemplo, para rega dos jardins públicos.

 

Plantação de pêras abacate em terreno de antigo pomar de sequeiro – Foto: Aurélio Nuno Cabrita

 

Em suma…

A seca no Algarve sempre foi normal e agora será ainda mais frequente.

Anormal é agricultores e engenheiros agrónomos insistirem e perdoem-me a metáfora, em «cultivar arroz em terrenos de sequeiro», aumentando consecutivamente as áreas de regadio.

Socorremo-nos de novo da sabedoria popular: «quem não tem dinheiro, não tem vícios». Não podemos continuar a criar uma agricultura insustentável, sob pena de, hoje ou amanhã, perdermos tudo, ou seja, o que nunca deveríamos ter plantado, e colocar em causa ainda mais o equilíbrio ambiental da região.

O Algarve precisa de uma agricultura forte mas sustentável. Surreal é também o cidadão comum usar e abusar inconscientemente, do precioso líquido como se o tivéssemos em abundância.

Que a seca seja uma oportunidade para aprendermos a viver com aquilo que temos, poupando ao máximo, no dia a dia, um recurso cada vez mais escasso e promovendo uma agricultura, jardins e campos de golfe sustentáveis e viáveis neste território.

«Casa sem pão, todos ralham e ninguém tem razão»: nenhum outro provérbio se adequa melhor à situação em que vivemos.

Não temos o direito de destruir o Algarve, pela ganância de alguns e inconsciência de outros, transformando-o «numa terra queimada». Que estes anos de seca nos façam refletir e agir na defesa de uma região sustentável, ambiental, social e economicamente, que temos o dever e obrigação de legar às gerações vindouras.

Por fim, não podemos deixar de lembrar que as grandes secas sempre terminaram com cheias colossais e desta vez não será exceção. A grande cheia do Guadiana em 1876, ou em Silves no ano seguinte, ou tantas outras em Tavira, são disso exemplo.

Ah sim, lá virá a «necessidade», perdoem-me a ironia, de construir a barragem do Alportel, a norte de Tavira…. até a dessalinizadora parece situar-se no leito de cheia da ribeira de Quarteira… Já que não nos preparamos para a seca, que o façamos para a cheia.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

 

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