O Contrato de Ulisses

Procure o pacto que mais se ajuste às suas necessidades e partilhe-o com um amigo ou familiar de pulso forte

Sempre que a agenda se aproxima das últimas páginas, nasce em mim aquela certeza: «para o ano é que é!».

Por que razão não assumi o controlo e fruí, como gostaria, dos trezentos e sessenta e cinco dias em contagem decrescente, é algo que não compreendo. Se seguisse o conselho de Ludmila Ulitskaya, «Escreva diários para não se esquecer da sua vida.», teria uma melhor perceção de como foram os dias e meses vencidos, e esta crónica rumaria noutra direção.

Partilho agora consigo aquela que poderá ser, além da escrita de um diário, a minha solução e, quem sabe, talvez também a sua, para que 2024 seja «aquele ano».

Após a Guerra de Troia, de regresso a Ítaca, Ulisses sabia que o barco passaria pelas Sirenum Scopuli, as ilhas das sereias que seduziam os marinheiros com o seu canto irresistível, desviando-os da rota em direção aos rochedos mortais e ao afogamento certo.

Ulisses definiu, então, uma estratégia para resistir, literalmente, ao canto da sereia. Sabia que os seus ouvidos não resistiriam à tentação e traçou um plano para que o seu «eu futuro» ultrapassasse aquela provação. Ordenou à tripulação que o amarrasse e prendesse com firmeza ao mastro do navio e que não o retirassem de lá, por mais que gritasse ou suplicasse pela liberdade.

Depois, pediu aos marinheiros que tapassem os seus ouvidos com cera de abelha, para não serem seduzidos pelo encanto das sereias, não escutarem os seus clamores e que só o desamarrassem quando o barco estivesse bem longe do perigo. Ulisses sabia que, naquele momento futuro, não estaria em condições de tomar as melhores decisões e que, assim, com este plano, garantiria a passagem segura pela tentação das sereias.

As decisões tomadas livremente num determinado momento e que nos condicionam no futuro são conhecidas como «contrato de Ulisses» e têm como pressuposto o reconhecimento do funcionamento do nosso cérebro.

O cérebro deseja a recompensa imediata e, como no poema de Fernando Pessoa, «Vivem em nós inúmeros», nem sempre de acordo em relação ao melhor para o nosso futuro. Por isso, aplicar o contrato de Ulisses e, de preferência, com testemunhas, é um bom caminho para que o novo ano fique mais próximo do que deseja alcançar.

Vejamos alguns exemplos práticos. Para quem deseja perder peso, a solução é evitar comprar bolachas, chocolates e afins quando vai ao supermercado. Assim, quando estiver em casa e sentir a fúria do açúcar, não terá como cair na tentação de contribuir para o aumento do peso na balança.

O mesmo se aplica ao fumar. Quando terminar o último maço de cigarros, não compre outro. Decida que quer ser não fumador e dê ao organismo a nicotina que o vicia sob a forma de pastilhas elásticas, adesivos ou rebuçados. O tempo fará o resto.

Se quer começar a frequentar um ginásio, contrate os serviços de um personal trainer ou combine ir com um amigo. O compromisso de ter alguém à sua espera, além do investimento financeiro, será um bom companheiro na conquista da boa forma física. Comigo, resultou.

Mas tenha a consciência de que somos feitos de desejos antagónicos a curto e longo prazo, de razão e emoção. Os desejos e as paixões humanas são difíceis de ignorar, e a nossa capacidade de negociar com diferentes versões de nós é impressionante.

Por isso, procure o pacto que mais se ajuste às suas necessidades e partilhe-o com um amigo ou familiar de pulso forte. Vencer as batalhas neuronais não é fácil. Até o grande guerreiro Ulisses o sabia.

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Se deseja conhecer mais sobre o funcionamento do cérebro humano, sugiro-lhe que leia «Incógnito, Como o inconsciente comanda as nossas vidas», de David Eagleman, publicado pela Lua de Papel, a fonte que inspirou a escrita desta crónica.

 

Autora: Analita Alves dos Santos é autora e mentora literária

 

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