Manuel Brito, um homem felizmente perigoso

Honrar o Manel, como sempre acontece com os visionários e os homens assim felizmente perigosos, não é chorá-lo. É dar continuidade ao seu labor

Os livros são provavelmente uma das invenções mais perigosas da História.

Ancorando a palavra, até aí etérea, e sujeita às subtilezas, inflexões e caprichos da oralidade e da memória que a suportava, transmitida de geração em geração, foram os livros, nos seus mais variados suportes e formatos, que lançaram e consolidaram a construção de um verdadeiro legado intelectual da Humanidade.

Foi, e é, através deles, que ainda hoje partilhamos ideias formuladas há milhares de anos, constituindo autênticas ferramentas de memória, conhecimento, pensamento e elevação intelectual e cultural. Não é à toa que, desde muito cedo, são perseguidos (muito mais do que os seus autores), proscritos, queimados, amaldiçoados, censurados, saneados ou, como mais recentemente está tão em voga, “purgados” de linguagem e ideias ofensivas, em consonância com a moral puritana contemporânea.

Manuel Brito que, recente e tão inesperadamente nos deixou, era, entre muitas outras coisas, um homem de livros, de leituras, de Cultura, amante do rasgo, do inconformismo, e desse perigo iminente que cada livro contém. E se a morte tem o condão de apanhar a vida muitas vezes desprevenida, não pode nada contra o legado de um homem.

E o Manel deixa um legado.

Nesse legado, destaco a Sul, Sol e Sal, editora algarvia, do Algarve e do Algarve para o mundo. Foi apelidada, por um colega do mundo editorial, como a “editora com o nome mais bonito de sempre”. Concretização de um sonho, de valorização da cultura e do património algarvio, projectando um Algarve diferente do mais habitual, de recreio estival para turistas, onde estrangeiros e nacionais se assumem como forasteiros por igual.

Frágil como todos os sonhos, sempre à distância de um acordar, a Sul, Sol e Sal trilhou um caminho singular. Arrisco dizer, com algum grau de segurança, que o Manuel Brito não se revia integralmente nas ideias e palavras de todos os “seus” autores. Mas o seu objectivo não era, não foi nunca, o de criar uma caixa de ressonância para as suas convicções ou opiniões. Pretendia, ao invés, criar um espaço de debate plural, fazendo questão de trazer a terreiro todas as pessoas a cuja voz reconhecia valor, e nas quais reconhecia potenciais contributos para essa reflexão mais ampla sobre e a partir do Algarve, enquanto microcosmo e enquanto região de um país e de todo um mundo.

É assim que a essa tertúlia foram chamados nomes tão diversos, nos seus tempos, percursos ou “estatutos” (aspecto nada despiciendo, numa região que tanto vive de penachos e aparências), como Romero Magalhães, António Rosa Mendes, Andreia Fidalgo, José Castanheira ou Carla Vieira, entre vários outros, nos quais tenho a felicidade de me incluir.

E é aqui que esta história se cruza com este espaço virtual, do Sul Informação, assim como é neste ponto que assino a minha dívida de gratidão para com o Manel.

Atento às crónicas que por aqui iam sendo publicadas, graças ao idêntico espírito de amor pela massa crítica e pela pluralidade, da Elisabete Rodrigues, há uns anos o Manel desafiou-me para escrever para a Sul, Sol e Sal.

Acho que para todos os autores – seja do que for – é sempre surpreendente saber que se é lido, e por quem se é lido. Neste caso, sem excepção e com acréscimo de espanto pela aposta determinada. Assim, o primeiro de muitos projectos falados a concretizar-se foi então, em 2021, a edição d’ A doce melodia de um coro de mudos, livro que reuniu 10 anos de crónicas publicadas no Sul Informação.

Os restantes, sempre discutidos em encontros nos quais os livros eram presença constante, em cima da mesa, na mão e principalmente, na conversa e no coração, foram entretanto interrompidos pela sua súbita partida.

A sua generosidade, dinamismo, entusiasmo e inconformismo farão muita falta ao Algarve, que fica bem mais pobre. Mas honrar o Manel, como sempre acontece com os visionários e os homens assim felizmente perigosos, não é chorá-lo. É dar continuidade ao seu labor.

O futuro da Sul, Sol e Sal ninguém o pode adivinhar. Mas parece-me que a sua semente, plantada em cada um dos seus autores, não deixará de dar frutos.

Perante o Manel, é essa a nossa grande dívida.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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