Comunidades Intermunicipais (CIM), 10 anos depois

Os próximos dez anos serão muito exigentes e a coesão territorial irá assumir contornos, formatos e conteúdos surpreendentes que nós nem sequer imaginamos nesta altura

Em 2023 celebram-se os 10 anos das CIM (12 de Setembro) e os 25 anos do referendo de 1998 sobre a regionalização do Continente (8 de Novembro). Sou favorável ao processo de regionalização enquanto aplicação concreta do princípio mais geral de descentralização política do Estado.

Entretanto, já publicámos uma série de leis que parecem estar alinhadas com esta orientação, a saber:

– As leis nº 10/2003 e nº 11/2003 de 13 de Maio que previam a criação voluntária de associações de municípios de nível sub-regional com fins gerais,

– A lei nº 45/2008 de 27 de Agosto e o D.L nº 68/2008 de 14 de Abril que redesenharam o âmbito territorial das entidades intermunicipais e estabeleceram o quadro institucional que compõe o modelo de governança multinível em Portugal Continental,

– A lei nº 73/2013 de 3 de Setembro que estabelece o regime financeiro das autarquias locais e das entidades intermunicipais e a lei nº75/2013 de 12 de Setembro que estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais e estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico,

– A lei nº 50/2018 de 16 de Agosto que aprova a lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e entidades intermunicipais; trata-se de uma transferência com carácter universal consubstanciada na aprovação de diplomas legais de âmbito setorial relativo a diversas áreas a descentralizar da administração direta e indireta do Estado (estão previstos 21 diplomas de transferência setorial),

– A Resolução do Conselho de Ministros de 17 de Novembro de 2022 determinou o início do processo de transferência e partilha de atribuições dos serviços periféricos da administração direta e indireta do Estado para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR); este processo de transferência e partilha não prejudica a descentralização de competências para as comunidades intermunicipais e áreas metropolitanas.

O processo de descentralização é, em geral, relativamente pacífico, pelo menos no plano político-doutrinário. Porém, no plano técnico e financeiro, o apuramento dos custos diretos e indiretos de cada transferência levanta sempre muitas dúvidas como, de resto, se observa, hoje, com as transferências para as autarquias e as entidades supramunicipais no quadro da lei nº50/2018 de 16 de Agosto.

Mas, porventura mais importante, as transferências de atribuições, competências e recursos para os níveis infranacionais necessitam de ser revistas e reagrupadas num segundo momento, sob pena de estarmos a dispersar despesa pública de baixo retorno ou reprodução duvidosa num país que precisa de acautelar os seus níveis de dívida pública e privada.

Ora, é aqui que entram os níveis regional e sub-regional de administração no quadro de uma governação multiníveis, cuja cooperação e geometria variáveis nos leva a falar de pontos de regionalização e sub-regionalização. Vejamos, então, os principais fatores que condicionam a política regional e o processo de regionalização.

Em primeiro lugar, as grandes transições desta década precisam de mais união orçamental, monetária e de capitais no plano europeu. Sem esta política macroeconómica de natureza federal será sempre difícil ter uma política de coesão pós-alargamento mais robusta capaz de prevenir, em tempo real, as assimetrias territoriais e regionais que se formarão em resultado daquelas transições. Ou seja, sem o apoio desta retaguarda de regionalização supranacional europeia é mais difícil ter uma regionalização infranacional que seja eficaz, eficiente, equitativa e efetiva.

Em segundo lugar, a aplicação diferenciada do princípio da subsidiariedade descendente e ascendente entre níveis de governo e administração determina não apenas uma política regional diferenciada, mas, também, uma metodologia distinta de interpretar, transferir e aplicar a política regional europeia no contexto infranacional. Isto quer dizer que os pontos de regionalização de cada país são bastante diferenciados e, logo, também, o desempenho da política regional europeia e nacional.

Em terceiro lugar, os Programas Operacionais Regionais (POR) são, ou deviam ser, o ponto de encontro de cada política regional, se quisermos, uma meta plataforma de integração e regulação das medidas de política e avaliação do seu impacto em cada CIM e entre CIM; além disso, são, igualmente, lugares de concertação interterritorial e no seu âmbito podem ser desenhadas soluções de delegação de competências e de engenharia financeira para toda a região e suas CIM.

Em quarto lugar, a cooperação intermunicipal é fundamental no planeamento operacional e implementação de bens não transacionáveis, em particular, na oferta agregada de bens públicos e bens comuns, assim como, na procura e concertação de soluções técnicas e de engenharia financeira que associem baixo custo e elevada eficiência operacional e financeira.

Em quinto lugar, a transferência de atribuições e competências só se tornará efetiva se a cooperação institucional e empresarial conseguir concretizar a transferência de valor dos novos bens públicos e comuns para o valor acrescentado regional e o seu sistema de preços, em especial, para as cadeias de valor do sistema produtivo local e regional.

Em sexto lugar, o conjunto de relações aqui referido inscreve-se num quadro de relações de poder da governação multiníveis; não há soluções uniformes para o mosaico da política regional, antes um equilíbrio dinâmico entre o interesse nacional, o interesse regional/sub-regional e o interesse municipal, para lá de todos os interesses setoriais que formam a constelação corporativa regional.

Dito isto, e tendo presente que vamos celebrar os 25 anos do referendo à regionalização e os 50 anos do 25 de Abril, a minha perspetiva vai para uma aproximação mais procedimental e pedagógica do processo político de regionalização que, ao longo dos próximos dois anos, poderia seguir os seguintes passos:

– Concluir o processo em curso de transferência de atribuições e competências previsto pela lei nº50/2018, sem prejuízo de ajustamentos posteriores.

– Ensaiar a experiência da sub-regionalização com as CIM, caminhando e praticando um federalismo autárquico de 2º grau, tendo em vista a oferta agregada de bens públicos, comuns e colaborativos (BCC), a gestão agrupada multiprodutos e a melhor organização das redes de extensão empresarial regionais.

– Encetar uma reforma da administração pública regional, no sentido da formação de um conselho executivo regional e do reforço programático do Programa Operacional Regional (POR), na sequência da RCM de 17 de Novembro de 2022; a esta luz, proceder a uma nova divisão do trabalho com as CIM através de um reagrupamento de atribuições e competências que, por via de delegação, cooperação e contratualização, podem ser estabelecidas com as mesmas CIM.

– Por último, e feito o balanço da sub-regionalização, coloquemos, então, à discussão pública se se justifica dar o passo seguinte, avaliando se há condições objetivas para cumprir o princípio geral da regionalização administrativa, isto é, fazer mais e melhor com menos.

Notas Finais

No final, e seja qual for a repartição de competências entre a União Europeia, os Estados membros e as entidades subnacionais, estamos obrigados, por causa do PRR e do Acordo de Parceria 2030, a estabelecer um maior diálogo regional entre as CCDR, as CIM e as Câmaras Municipais (CM) que poderá assumir a forma de um contrato de desenvolvimento territorial para as CIM como, de resto, já aconteceu anteriormente com os pactos territoriais, aparentemente sem muito sucesso.

No plano político-institucional, o ecossistema político regional pode seguir três formulações: uma CCDR, com um presidente eleito, direta ou indiretamente, um conselho executivo regional e um conselho consultivo regional (a regionalização minimalista), uma Regionalização Intermunicipalista com uma estrutura de missão executiva e uma Assembleia Intermunicipal, uma Autarquia Regional, com um governo eleito e uma Assembleia Regional (a regionalização administrativa).

Deixo aqui uma proposta transitória de sistema operativo para o nível regional que me parece compatível com qualquer daquelas soluções:

– Formar um Conselho Executivo Regional presidido pelo presidente da CCDR e materializar uma nova arquitetura dos serviços regionais com base numa plataforma analítica territorial de base digital sediada na CCDR,

– Com base nas orientações de política de ordenamento e planeamento e do Programa Operacional Regional, formalizar um contrato de delegação de competências da administração central e local para as capitais sub-regionais das CIM no âmbito da lei-quadro nº50/2018 e da RCM de 17 de Novembro de 2022;

– Esta delegação de competências abriria a porta a um Contrato de Desenvolvimento Territorial em cada CIM e a um nível de subvenções CIM, tendo em vista dar cumprimento à lei-quadro de transferência de competências e ao DL nº 102/2018 de 29 de Novembro e nomeando, para o efeito, uma estrutura de missão ou administração dedicada em cada CIM;

– Criar em cada NUTS II um polo de inovação digital, uma escola de artes e tecnologias e uma associação de jovens empresários com a missão de apoiar a transformação digital da sociedade, promover a literacia digital dos cidadãos e formar uma geração de jovens empreendedores da era digital.

Os próximos dez anos serão muito exigentes e a coesão territorial irá assumir contornos, formatos e conteúdos surpreendentes que nós nem sequer imaginamos nesta altura.

Por isso mesmo, o espírito que preside à formação do Acordo de Parceria deverá estar bem presente no plano da governação multiníveis e, muito em especial, na cooperação territorial descentralizada. Quero crer que o diálogo regional CCDR/CIM/CM pode frutificar no quadro do PRR e do Acordo de Parceria ou PT 2030.

Penso, mesmo, que deveria, desde já, ser criado um Conselho Estratégico Regional nesse âmbito com o propósito de desenhar cenários de desenvolvimento e nesse contexto esboçar os compromissos regionais, sub-regionais e intermunicipais mais indicados.

Mais uma vez, trata-se de fazer convergir atribuições e competências e nesse alinhamento preparar uma regionalização funcionalista e pragmática de pequenos passos, mas participada e muito escrutinada. Se tudo for feito às claras, a regionalização irá acontecendo, naturalmente, ao longo da década sem grandes sobressaltos.

Finalmente, e em jeito de aviso, se a nova despesa pública regional e sub-regional não interagir positivamente com o sistema produtivo local e regional, transferindo valor dos bens não transacionáveis para o sistema de preços, todo o edifício regional em construção poderá, a médio prazo, ser posto em causa e colapsar por falta de consolidação estratégica, produtiva e financeira.

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

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