Há um algarvio que já faz voar a animação pelo mundo

Fly Moustache nasceu em 2022 e já emprega alunos licenciados na Universidade do Algarve

João Carrilho – Foto: Mariana Carriço | Sul Informação

Quando começou, já havia um caminho feito em Portugal no mundo da animação, mas que, até hoje, «é muito pequeno». Não há talento português para que se invista nessa área? É o público nacional que não se interessa por esse tipo de trabalho? João Carrilho acredita que o grande problema está «na falta de investimento», mas nem isso o impediu de querer começar a traçar um percurso no país e na região que o viu nascer.

Tem 34 anos, viveu quatro anos no estrangeiro e, em 2022, criou a Fly Moustache, uma empresa sediada em Faro, que trabalha com artistas multiculturais com experiência em séries e filmes de animação premiados, distribuídos mundialmente por redes como a BBC e o Cartoon Network.

Se comparar Portugal com o resto do mundo no panorama da animação nos coloca num lugar muito inferior, o mesmo acontece quando se compara o Algarve com o resto do país, mas nem isso fez João acreditar que não é possível vingar aqui.

Começou sozinho. Nunca tinha tido uma empresa, mas hoje, no seu estúdio incubado no CRIA (Divisão de Empreendedorismo e Transferência de Tecnologia da Universidade do Algarve), trabalha com mais quatro jovens que, tal como ele, decidiram seguir esta área, alguns até já eram premiados. 

Na sua opinião, há em Portugal (e no Algarve) muitos jovens com capacidade para desenvolver bons projetos.

«A ideia de fazer este estúdio foi também para utilizar esta fábrica de talentos que temos aqui na Universidade do Algarve, que é um dos únicos cursos de animação que existe em Portugal», diz João Carrilho ao Sul Informação, questionando o facto de, mesmo nestes cursos, ainda se «apontar muito para o cinema» e pouco para «coisas mais comerciais».

Não desvalorizando a importância que o cinema tem, João acredita que, quando se está a formar pessoas para entrar no mercado de trabalho, se deve «pensar na indústria».

Apesar de também trabalhar com profissionais experientes em projetos exteriores ao seu estúdio, João Carrilho acredita que é importante «ir buscar talentos» e dar oportunidade «a estes jovens que estão a começar».

«É triste ver muita gente com potencial a sair desta escola e a não ter oportunidades. Jovens que têm de estudar ainda mais ou, simplesmente, são obrigados a mudar de área», diz.

 

João Carrilho com parte da sua equipa – Foto: Mariana Carriço | Sul Informação

 

O percurso de João neste mundo começou a ser traçado no Ensino Secundário, quando estudou Artes na Escola Tomás Cabreira, em Faro.

«Quando terminei não sabia muito bem o que queria fazer e tinha duas opções: ir para Lisboa, para Belas Artes, ou para Artes Visuais e Multimédia, em Évora», conta.

A segunda opção acabou por ser o seu destino – e se no Ensino Secundário era «um aluno mediano», na Universidade começou a interessar-se «muito por tudo o que envolvia a arte e a multimédia».

A animação surgiu durante o percurso, quando tropeçou num concurso de vídeo e decidiu participar.

«A história é engraçada porque já não havia vagas para o workshop, mas o professor deixou-me fazer parte e aprender a técnica básica do 2D. Comecei por fazer um filme, muito amador, mas isso foi a semente para depois continuar. No terceiro ano do curso, havia uma disciplina só de animação e eu disse aos meus pais que queria fazer só essa disciplina».

A ideia não foi bem aceite, mas João, «um pouco à socapa», decidiu faltar às restantes aulas e dedicar-se a 100% ao filme que tinha de fazer para a cadeira de animação.

Baseado numa notícia do Alentejo, nasceu “Adolfo, o rapaz galinha”, aquele que foi o passaporte para depois entrar na Academia da RTP.

«O projeto correu muito bem, mas chumbei o ano e o que aconteceu foi que, depois, quanto estava a fazer as disciplinas às quais tinha faltado, apareceu a Academia RTP. Candidatei-me com a proposta de fazer uma série do “Adolfo, o rapaz galinha”», conta ao nosso jornal.

A proposta acabou por ser aprovada e lá foi João para o Porto, durante nove meses, para tornar o Adolfo «numa espécie de short film» que acabou por passar em festivais e durante a pandemia, no E-escola.

O começo de um caminho para a entrada no mercado de trabalho parecia traçado, mas depois «veio uma travessia no deserto».

«Eu pensei “agora realizei uma curta, vão-me chamar para coisas”. Mas não. Nada. Zero. Voltei, acabei o meu curso em Évora, e, ao mesmo tempo, continuava a fazer trabalhos de design, como rótulos de comida e coisas assim, que não tinham nada a ver com o que eu queria».

Esteve quase a desistir, mas o envio de portfólio para um estúdio na Irlanda voltou a “iluminar-lhe” o caminho.

«Fui selecionado. Lembro-me de telefonar à minha mãe e dizer “acho que vou para Belfast”. Foi aí que eu comecei a trabalhar a sério nas séries de animação, com uma equipa de 30 pessoas ou mais. Uma indústria que não há em Portugal», conta.

De Belfast foi para Estugarda, e depois para Dublin. Trabalhou em séries para a BBC, Netflix, entre outras. A nível profissional, sentia-se realizado, mas o desejo de voltar era constante.

 

João no escritório da Fly Moustache – Foto: Mariana Carriço | Sul Informação

 

«Quando trabalhava na Irlanda e na Alemanha, onde também havia mais portugueses, muitas vezes pensávamos que era giro abrir um estúdio em Portugal, deixarmos de ser emigrantes, mas a ideia era muito platónica. Com a pandemia, eu voltei para Portugal, mas continuava a trabalhar para fora e muitas vezes me pediam para fazer uma equipa. Foi aí que a ideia de fazer um estúdio se concretizou», conta.

Felizmente, a experiência e currículo abriram-lhe portas e trabalho é o que não tem faltado, mas os clientes são, na sua maioria, estrangeiros.

«Os orçamentos dos clientes nacionais são muito baixos para sustentar o estúdio e é por isso que, se calhar, não existe uma indústria e, muitas vezes, não existe essa cultura de animação em Portugal. Quem contrata, muitas vezes, não tem essa perceção do trabalho que dá, quão caro é, e o tempo que demora a fazer».

O empresário algarvio não desmente que a nomeação de João Gonzalez aos Óscares de animação (o primeiro realizador português a conseguir alcançar esse patamar) é «muito boa e dá visibilidade», mas diz que «ainda é muito cedo para perceber qual será a influência».

«Pode dar notoriedade, mas até que ponto isso vai dar mais fundos? Ou mais credibilidade para os nossos projetos?», questiona, referindo que a indústria comercial vai continuar a ficar em segundo plano e o pouco financiamento vai continuar a ser uma realidade.

«As estratégias dos estúdios vêm do financiamento do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], e o que o ICA pode dar é baixíssimo comparado com a França, Irlanda, Alemanha, ou Espanha. É difícil quando não há dinheiro. E o que eu não percebo é como é que o Governo não consegue ver o potencial que a animação tem, principalmente com a indústria dos videojogos, agora com os streamers e com tudo, a quantidade de conteúdos de animação que existem, o interesse das pessoas em ver animação, seja para adultos, seja para crianças… esta área está a crescer e há muitos incentivos lá fora para esta indústria, mas o nosso Governo está de olhos tapados», comenta.

Em relação ao Algarve e ao «potencial da região» no mundo da animação, João diz que tem trabalhado a aproximação às entidades para aumentar o financiamento e alertar para a importância da área, mas «é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo e o preconceito do Algarve é que nós só sabemos fazer férias, mas não é verdade», frisa.

Na sua entrevista ao Sul Informação, João diz que , mesmo assim, «já se nota uma mudança», nomeadamente com entidades culturais que têm surgido, como o Associação de Músicos ou o Loulé Criativo, e que, ele próprio, tem tentado fazer um caminho nesse sentido.

«Eu não posso chegar aqui e dizer “olha, faço animações”, tenho de mostrar o que é, dar a conhecer. O que falta no Algarve é conexão. Como é que é possível, às vezes, terem filmes independente sobre animação no Cineclube de Faro, e nenhum aluno da Universidade do Algarve vai ver o filme? Ou seja, existem as instituições, existem os clubes de cinema, mas não existe conexão. Parece que remam em sentidos opostos, e nós queremos muito fazer essa ligação», revela João Carrilho.

«O lado bom é que há sempre abertura», reforça. Em breve, pode mesmo haver novidades de trabalhos com a Câmara de Faro.

Quanto ao futuro, João diz que quer «ver o estúdio crescer» e com ele fazer também crescer os jovens com quem trabalha.

«Trabalhar para o mínimo não é comigo. As pessoas, às vezes, parece que ficam contentes com pouco, e o que eu sinto, em animação, é isso. Mas acho que nós temos que elevar a fasquia para depois competir com os de lá de fora», remata.

 

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