Aljezur não esquece os tempos em que «assistia ao vivo» à II Guerra Mundial

Há 80 anos, durante a II Guerra Mundial, despenhou-se um avião alemão na ponta da Atalaia, na costa de Aljezur, provocando a morte aos seus sete tripulantes

Imagem da capa da 1ª edição

Os mais velhos ainda se lembram de ver, a partir das arribas, praias e até campos de Aljezur, os combates aéreos ou no mar, entre aviões e barcos alemães e dos Aliados, durante a II Guerra Mundial.

Oficialmente, Portugal não participou na guerra, já que a posição oficial do governo de então, presidido por Salazar, era de neutralidade. Mas a guerra chegou cá e a ponta ocidental do Algarve e do país viveu-a de forma muito intensa.

Foi para recordar um desses episódios, acontecido há 80 anos, no dia 9 de Julho de 1943, que o investigador José Augusto Rodrigues lançou, em 2004, a primeira edição do livro «A Batalha de Aljezur». Agora foi a vez de apresentar a 5ª edição da obra, que, ao longo dos anos e em resultado do aprofundar das investigações, passou das 150 páginas originais para as atuais 280.

Pela primeira vez, o livro é lançado através de uma editora, a Âncora, depois de, nas quatro edições anteriores, ter sido responsabilidade da Junta de Freguesia de Aljezur. Uma mudança que permitirá, por exemplo, que o livro passe a estar disponível quer em livrarias em todo o país, quer no site da editora Âncora.

Mas de que episódio se está a falar? Do caso do avião alemão Focke-Wulf 200 C-4 Condor que se despenhou no topo da arriba no litoral de Aljezur, perto da ponta da Atalaia, depois de atingido por tiros de aviões ingleses que escoltavam um comboio naval aliado. Todos os sete tripulantes do Focke-Wulf morreram.

Os corpos dos malogrados aviadores alemães foram recolhidos pelas autoridades de Aljezur, tendo sido sepultados no cemitério da vila, depois de um funeral com pompa e circunstância. Portugal era oficialmente neutro…mas não muito.

 

 

Todos os pormenores deste caso são contados no livro «A Batalha de Aljezur», com recurso a depoimentos, documentos da época, fotografias coevas. Mas há ainda outras histórias, como a do caça norte-americano Airacobra P-400, pilotado pelo primeiro-tenente Richard Savoy, que teve de aterrar de emergência perto do Rogil, também no concelho de Aljezur, em Junho de 1943.

Ou ainda, as histórias de espionagem, sendo a mais famosa a do chefe do farol do Cabo de São Vicente, que, munido de um rádio fornecido pelos alemães, espiava a favor deles, comunicando-lhes os movimentos dos navios aliados que por ali passavam, naquela que era (e é) uma das mais movimentadas e estratégicas rotas marítimas mundiais.

Aliás, terá sido esse faroleiro espião a avisar os germânicos da passagem do comboio de navios que depois o Focke-Wulf irá tentar afundar, com os três aviões da sua esquadrilha de combate.

Há igualmente a história do Consolidated Catalina, um hidroavião inglês, que quase se despenhou sobre Sagres e acabou por explodir sobre o mar, na baía do Tonel. Dos seus tripulantes, só dois corpos foram recuperados e ainda hoje estão sepultados no cemitério de Sagres: os sargentos da RAF (Royal Air Force) Gilbert Orton e George Gibson.

Na apresentação da 5ª edição do livro, na sede da Junta de Freguesia de Aljezur, o autor José Augusto Rodrigues referiu a presença, entre o público que enchia a sala, do coronel António Novais Henrique e de Ernesto Silva, que «assistiram, quando eram crianças, aos combates ao largo de Aljezur». Era como «assistir ao vivo à guerra», recordou Ernesto Silva, em conversa com o Sul Informação.

Aliás, foi o avô desta testemunha, o cabo Vitorino Cuco, comandante da Guarda Fiscal de Aljezur, quem coordenou a recolha dos corpos dos aviadores alemães mortos na queda do Focke-Wulf na ponta da Atalaia. Por essa triste tarefa, que desempenhou com dignidade, Vitorino Cuco veio a ser um dos quatro aljezurenses a quem o governo alemão agraciou, em Dezembro de 1943, com a Cruz de Mérito da Ordem da Águia Alemã.

Também esta história está contada no livro de José Augusto Rodrigues.

 

 

Antes da sessão de lançamento da obra, tinha tido lugar uma conferência de dois especialistas nas ocorrências que se deram em Portugal mas ligadas às I e II Guerras Mundiais: o capitão-de-mar-e-guerra e professor da Escola Naval Augusto Alves Salgado e Carlos Guerreiro, jornalista, bloguista e escritor, autor do livro e blogue «Aterrem em Portugal».

Ambos deram uma visão do que se passou no mar português (ou sobre ele) e que, tantas vezes, acabava por ter repercussões em terra: combates navais e aéreos, afundamentos de navios por submarinos e aviões alemães.

Augusto Alves Salgado, que investiga a I Guerra Mundial, salientou que o que mais lhe interessa é «a parte humana, a história das pessoas que estiveram envolvidas nisto».

E revelou que, mesmo depois de anos e anos de investigação, ainda vão aparecendo pormenores novos. Em 2017, quando foi apresentada em Sagres a sua investigação sobre o afundamento por um submarino alemão, no mesmo dia de 1917, de quatro navios aliados, «na sessão apareceu a neta de um senhor que andava no rebocador Galgo», uma das poucas e mal armadas embarcações portuguesas que patrulhavam a costa algarvia durante a I Grande Guerra.

Por seu lado, o algarvio Carlos Guerreiro, há anos a viver em Lisboa, onde fez o mestrado sobre os náufragos salvos na costa portuguesa durante a II Guerra Mundial, autor do livro «Aterrem em Portugal», que Alves Salgado apontou como «a bíblia de todos estes acontecimentos ao longo da nossa costa», recordou que, logo a partir de 1941, começou a haver casos de aviões a cair no Algarve. «Eram sobretudo aviões em trânsito», entre França ou Inglaterra e bases no Mediterrâneo ou no Norte de África.

O investigador recordou que «quase todos esses aviadores estrangeiros que passavam por cá têm uma recordação porreira de Portugal: a comida e a bebida».

Carlos Guerreiro acrescentou que o período de Maio a Julho de 1943 foi «muito quente nesta zona da costa», tendo havido inúmeros afundamentos de navios aliados, por submarinos ou aviões alemães.

Foi nesse período, a 30 de Maio de 1943, que se dá um dos episódios mais estranhos: há umas bombas inglesas que caem em terra e matam duas vacas em Vila do Bispo. O proprietário dos animais reclama e, meses mais tarde, é indemnizado pelos ingleses.

É também nessa período «muito quente» que acontece a queda do Focke-Wulf na costa de Aljezur, com a consequente morte dos seus sete tripulantes.

 

Uma das medalhas e diploma assinado pelo Füher, patente na exposição na JF Aljezur

 

José Augusto Rodrigues, autor do livro que se dedica sobretudo a este episódio, admite que chamar «batalha» ao que aconteceu em 9 de Julho de 1943 poderá ser um exagero. Mas essa liberdade criativa não ensombra o trabalho de recolha e investigação que tem vindo a fazer, desde há 20 anos, ele que até nasceu a 9 de Julho de 1950, ou seja, precisamente sete anos depois do despenhamento do avião alemão.

Além da conferência e do lançamento da 5ª edição do livro, o 80º aniversário da queda do avião germânico foi ainda assinalado com uma exposição, que apresenta, por exemplo, peças e fragmentos do aparelho, recolhidas na zona da Ponta da Atalaia. São testemunhos que estão agora à guarda da Associação de Defesa do Património Histórico e Arqueológico de Aljezur (ADPHAA), mas que podem ser vistos no átrio da Junta de Freguesia.

O programa incluiu também, no dia seguinte, uma visita aos cemitérios de Aljezur e de Sagres, onde estão sepultados aviadores alemães e ingleses, respetivamente.

O objetivo das comemorações foi assinalar um triste episódio da II Guerra Mundial que teve muita repercussão na Aljezur de há 80 anos e que ainda hoje perdura na memória das gentes locais.

«Não estamos aqui a idolatrar nenhum regime ou ideologia, apenas a recordar o que se passou há 80 anos», sublinhou José Maria Rosa, presidente da ADPHAA.

Ou, como disse José Gonçalves, presidente da Câmara Municipal de Aljezur, também presente na sessão: «o passado não se esquece, conta-se, relembra-se. É bom que a memória exista, com o devido enquadramento histórico. Há princípios que não se deve esquecer e um deles é o humanitário, dando apoio aos que morrem numa guerra. Esse é um gesto muito importante que aconteceu aqui em Aljezur há 80 anos».

António Baptista Lopes, editor da Âncora, defendeu, por seu lado, que «a memória é extremamente importante», até porque «os países e as comunidades são construídas ao longo dos tempos, de muitas camadas de memória».

No Algarve, a 5ª edição do livro «A Batalha de Aljezur» pode ser comprada na Livraria Internacional/Livros da Ria Formosa, em Lagos, na Elifalma, em Portimão, e, em breve, nas livrarias Bertrand.

 

Leia mais um pouco!
 
Uma região forte precisa de uma imprensa forte e, nos dias que correm, a imprensa depende dos seus leitores. Disponibilizamos todos os conteúdos do Sul Infomação gratuitamente, porque acreditamos que não é com barreiras que se aproxima o público do jornalismo responsável e de qualidade. Por isso, o seu contributo é essencial.  
Contribua aqui!

 



Comentários

pub