A nossa liberdade, entre o sensor e o censor

«E se por causa da nossa pegada digital, o caçador furtivo que é o sensor despertar, também, a malevolência de um espírito censor?»

Agora que se fala tanto em inteligência artificial, em manifestos e proclamações públicas que pedem a suspensão da investigação fundamental nesta área, em falta de regulação político-administrativa nesta matéria e até em ameaças à segurança nacional a propósito do 5G, regressamos ao tema da governação algorítmica e a um lado menos virtuoso dessa governação que tem a ver com a nossa pegada digital nos vários dispositivos tecnológicos.

E se por causa da nossa pegada digital, o caçador furtivo que é o sensor despertar, também, a malevolência de um espírito censor?

No grande mercado da informação, o chamado Big Data, os abusos de posição dominante dos grandes operadores e os défices de regulação política da governação algorítmica podem transportar-nos para uma servidão voluntária agravada, para um nível elevado de condicionalidade e conformidade no plano das liberdades públicas e dos direitos individuais de cidadania e privacidade.

No plano operacional, os indivíduos são agregados temporários de dados brutos, quantificáveis e sucessivamente reconfigurados a uma escala industrial, se quisermos, uma espécie de coisificação dos indivíduos onde não interessa o contexto, a singularidade e a significação desses dados.

Quando falamos de Big Data estamos perante uma espécie de modelo extrativista em que os cidadãos internautas, utilizadores de redes e plataformas, são produtores e fornecedores de uma gigantesca massa de informação pessoal, muita dela subliminar, que tem tanto de benignidade como de toxicidade.

Somos, pois, agregados temporários de dados brutos e é aqui que a adição digital convertida em servidão voluntária é extremamente perigosa, sobretudo num momento em que os movimentos populistas e os regimes iliberais, juntos na grande irmandade das redes sociais, tentam condicionar os nossos pensamentos e comportamentos.

Ou seja, nos procedimentos de cálculo de um qualquer mestre-algoritmo somos reduzidos a simples correlações estatísticas que expressam padrões de comportamento, sucessivamente reconfiguradas por uma massa imensa de dados permanentemente atualizados e recolhidos pelo exército de caçadores furtivos, os sensores.

A sociedade algorítmica é, portanto, uma sociedade que se anuncia como altamente paradoxal com inúmeros conflitos políticos e sociais no interior da nova estratificação social em formação. A governação algorítmica, na sua exuberância matemática, transforma os algoritmos em próteses cognitivas, que provocam não apenas a exteriorização do saber, mas, também, a proletarização de algumas /muitas classes profissionais e intelectuais no futuro próximo.

Porém, no plano cognitivo, os nossos duplos algorítmicos também podem ser muito úteis se os soubermos manipular em nosso benefício, por exemplo, na criação de inteligência artificial e assistentes inteligentes para tarefas que nos libertem da nossa condição mais servil e desumana.

Num registo mais conservador, o dos limites bioéticos e biopolíticos, constatamos que a sociedade política não tem sido capaz de delimitar os termos do debate público onde a discussão sobre a sociedade algorítmica deve ocorrer.

Por um lado, parece adquirido, teremos mais economia das plataformas, o regresso dos bens comuns, a emergência da economia colaborativa e serviços mais personalizados do chamado quarto setor. Por outro lado, porém, estamos sem um argumento ou guião para esta trajetória de ciência-ficção aonde nos leva a inteligência artificial, o transumanismo e o pós-humanismo.

Nesta trajetória assaltam-nos algumas dúvidas sistemáticas:

– Vamos continuar a ser os idiotas úteis dos grandes conglomerados tecnológicos, colocando a nossa pegada digital à sua inteira disposição?

– Vamos ser, cada vez mais, um mero algoritmo orgânico à disposição dos algoritmos inorgânicos de serviço?

– Vamos manter os níveis de adição digital e continuar a acreditar que temos acesso direto à realidade e à verdade, sem qualquer tipo de intermediação ou representação política?

– Vamos inventar ou produzir a nossa identidade digital, convertê-la num ativo pessoal e pô-la a render no nosso universo real e material?

Além disso, no quadro da grande transformação digital em curso há um aspeto que é muito perturbador e que coloca em rota de colisão a governação da coisa pública e a governança da sociedade algorítmica.

Na linha da desintermediação institucional e de um certo determinismo tecnológico, o discurso tecno-digital emergente diz-nos que o Governo é uma indústria ineficaz, as instituições em geral são caras e preguiçosas e a democracia é cada vez mais desajeitada para lidar com a governação algorítmica das máquinas inteligentes.

Nesta sequência, os algoritmos tanto podem ser uma guarda pretoriana de um candidato a ditador, um Big Brother, como a guarda avançada de um capitalismo global e predador como, ainda, uma rede distribuída de proximidade ao serviço de uma sociedade mais igual e democrática.

Ao ser tudo isto, o algoritmo e a máquina inteligente revelam aquilo que nós já sabíamos, isto é, a sua funcionalidade instrumental ao serviço de múltiplas causas, mas, também, de partidos únicos e homens de aparelho, que, geralmente, desprezam os limites da política e as responsabilidades públicas que lhe são inerentes, como, aliás, é hoje público e notório.

Isto significa que estão em marcha alterações culturais e civilizacionais de grande amplitude que apenas aguardam uma oportunidade para explodir à superfície.

Eis algumas dessas questões finais que aqui deixo para reflexão:

– Que democracia política vamos reabrir para lá dos algoritmos, dos modelos matemáticos e das máquinas inteligentes da sociedade algorítmica?

– Que humanismo vamos reabrir para lá da sociedade dos algoritmos e o que fazer com a nossa minúscula ilha de consciência na transição para outros universos de sentido e de estados mentais, transumanistas e pós-humanistas?

– No grande mercado da informação, do Big Data e do cloud computing, como é que o pensamento e a ação política regulam, regulamentam e supervisionam as novas corporações do algoritmo, do Big Data e das máquinas inteligentes?

– No capitalismo de vigilância, para onde caminhamos rapidamente, a guerra das inteligências – natural, racional, emocional, artificial – vai empurrar-nos para a outra margem, ou seja, para novas variedades do algoritmo bioquímico da espécie humana.

Já não há qualquer dúvida, a inteligência artificial e as máquinas inteligentes vão apropriar-se do sistema operativo da condição humana. Estamos cada vez mais próximos da linha vermelha que separa algoritmos orgânicos e inorgânicos. Entre o sensor e o censor a condição humana está cada vez mais ameaçada e em regime de liberdade condicional.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

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