Jornalismo livre de violência

Por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, que se assinala hoje, dia 3 de Maio, o Artigo 37 elaborou este texto que, no Algarve, é publicado no Sul Informação

Qual é pior, o futebol ou a política? É uma boa pergunta, se o assunto for a atividade mais ameaçadora para jornalistas. A resposta é: depende. Do período de tempo considerado e da avaliação do desfecho dos casos reportados em Artigo 37, uma plataforma cívica de denúncia de abusos praticados sobre jornalistas em Portugal.

O número de registos, que não esgota a totalidade de casos relativos às 12 categorias de ameaças, indica que o problema começou nos políticos e passou para os dirigentes desportivos e os seus adeptos.

Os estádios de futebol e outros locais de prática desportiva (como o futsal) tornaram-se perigosos para jornalistas. Os ataques são feitos por desconhecidos, que insultam, batem e fogem, como aconteceu a um repórter fotográfico de O Jogo, que levou um pontapé na cabeça num dos elevadores do Estádio Municipal de Braga, no final de um jogo entre a equipa local e o Futebol Clube de Arouca, em fevereiro de 2023.

Uma situação idêntica ocorreu com um repórter de imagem da SIC Notícias, maltratado por adeptos no exterior do Estádio da Luz, em Lisboa, após o jogo entre o Benfica e o Futebol Clube do Porto, em abril de 2023.

Outro repórter da TVI foi insultado e agredido à saída do Estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães, no final do jogo entre o Vitória de Guimarães e o Hajduk Split, em agosto de 2023. O agressor, identificado com a equipa croata, foi detido no local.

Noutros casos, os agressores são figuras conhecidas. Um deles é o empresário Pedro Pinho, ligado ao Futebol Clube do Porto, que agrediu e danificou material de filmagens de um operador de câmara da TVI, dentro do Estádio do Dragão, depois de um jogo entre a equipa portista e o Moreirense, em abril de 2021.

Em agosto de 2022, Pedro Pinho foi condenado, com pena suspensa de dois anos, pelos crimes de dano com violência e de atentado à liberdade de imprensa. O Tribunal de Guimarães não considerou provada a acusação de ofensa à integridade física qualificada.

Os vários mundos do futebol, incluindo o mediático, tornaram-se hostis para jornalistas. Os clubes banalizam a violência de adeptos e dirigentes. As estruturas do futebol confundem os interesses comerciais com a obrigação deontológica dos jornalistas de reportarem com independência.

O ambiente de trabalho promove comportamentos intimidatórios, como respostas agressivas e ofensas verbais, normaliza tentativas de controlar as entrevistas e outros conteúdos informativos e discriciona a restrição de acesso a espaços desportivos.

Este clima muito negativo convergiu nas ameaças contra o jornalista desportivo Rui Santos, depois de comentários feitos na CNN Portugal sobre as expulsões (22) de Sérgio Conceição, treinador do Futebol Clube do Porto.

Os jornalistas do Porto Canal demarcaram-se do conteúdo de um artigo publicado no website da estação, que identificava o nome da mulher de Rui Santos e do restaurante do qual é proprietária, num ambíguo convite a ações de retaliação contra a família e a propriedade.

Rui Santos apresentou uma queixa-crime e os jornalistas do Porto Canal, unidos num comunicado conjunto, mostraram uma corajosa atitude de denúncia e repúdio de práticas na redação, como a sobreposição de cargos entre a direção de comunicação e a direção de informação, que violam direitos e deveres dos jornalistas e são sancionadas eticamente e punidas legalmente.

A violência contra jornalistas desportivos motivou reações de condenação dos agressores e de proteção e reparação com as vítimas. Essa união aproximou as estruturas representativas e os reguladores da classe – Sindicato dos Jornalistas, Associação dos Jornalistas de Desporto, Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas – mas não parece suficiente para modificar uma retórica anti media e uma cultura anti jornalística que circula online e offline, potenciando a escalada da violência.

A resistência não existe quando as ameaças vêm da política. Em 2021, o caso mais sonante contra a liberdade de imprensa e o incitamento ao ódio aconteceu em janeiro, durante um jantar-comício da candidatura de André Ventura à Presidência da República. Vários jornalistas foram insultados dentro do restaurante onde mais de 100 apoiantes estavam reunidos e as queixas referiam contato físico e vidros partidos nos carros.

O então mandatário nacional e diretor de campanha, hoje secretário-geral do partido e deputado, Rui Paulo Sousa, proferiu a frase incendiária enquanto os jornalistas montavam os seus tripés e câmaras: “os nossos adversários estão lá fora, mas alguns estão cá dentro”.

Em Dezembro de 2021, o Ministério Público arquivou o inquérito. “Não se logrou identificar de quem partiram os dizeres ameaçadores contra os jornalistas”, conclui o despacho do MP.

O mesmo destino teve a “torrente de ameaças e abuso online”, referida na Plataforma para a Proteção dos Jornalistas do Conselho da Europa, contra os jornalistas da SIC autores da reportagem de investigação A Grande Ilusão sobre a extrema-direita em Portugal e na Europa, em janeiro de 2021.

Quase dois anos depois, em março de 2023, o Estado Português respondeu, através de carta enviada pela Representação Permanente junto do Conselho da Europa. As autoridades portuguesas são alheias ao incidente e qualquer pessoa que se sentir lesada tem o direito de apresentar queixa, transmite o Embaixador.

Qual é o problema de alguém com responsabilidades públicas, como o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, chamar “perfeito imbecil” a um jornalista cuja pergunta (endereçada não ao próprio, mas a um jogador do FCP) ele rotulou, no mesmo post de Facebook, escrito em setembro de 2022, como “uma provocação abjeta”?

Ou um desconhecido agredir fisicamente a jornalista que fazia a cobertura da Queima das Fitas 2022 para o Notícias de Coimbra?

Ou alguém da bancada insultar a chutar uma bola contra uma colaboradora do Vozes do Futsal Portalegre, danificando o equipamento que usava para entrevistar um dos intervenientes do jogo?

Primeiro: desde 2018, o artigo 132.º do Código Penal considera como um crime público “as agressões a jornalistas no exercício das suas funções ou por causa delas”.

Segundo: a intimidação de jornalistas diminui o escrutínio dos poderes e, nessa medida, enfraquece a qualidade da democracia e da vida cívica. A especial proteção de que gozam os jornalistas visa, justamente, salvaguardar esse interesse maior que integra a noção de “bem público”.

Terceiro: é preciso mesmo explicar porquê?

 

Autores:
Carla Baptista
Carlos Camponez
Luís Santos
Pedro Jerónimo
Pelo Artigo37.pt

 

Nota:
Por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, que se assinala hoje, dia 3 de Maio, o Artigo 37, uma organização independente de jornalistas e académicos, elaborou um texto especialmente vocacionado para distribuir pelos meios de comunicação regionais, onde faz um balanço sobre as violações ao direito de informar, se informar e ser informados previstos na Constituição da República Portuguesa. No Algarve, este artigo é publicado no Sul Informação.

O Artigo 37 tem como único objetivo ajudar a cumprir o artigo 3º do Código Deontológico dos Jornalistas que diz: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos”.

Nascido de uma parceria NOVA FCSH e a NOVA School of Law, o Artigo 37 conta com o apoio do Sindicato dos Jornalistas e dispõe de um espaço online para denunciar restrições à liberdade de informação em Portugal, com espaço para a resposta dos denunciados que pretendam exercer esse direito.

 

 

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