As plataformas digitais, uma nova cartografia dos territórios

Um bom governo dos territórios está obrigado a cruzar e partilhar bases de dados de várias origens, a testar a sua interoperabilidade

Uma parte significativa da transição digital irá passar pela formação de plataformas, que usarão algoritmos dedicados, que desenvolverão aplicativos específicos, que os utentes descarregarão nos seus smartphones de última geração, que usarão para realizar as suas múltiplas transações, comerciais, financeiras, pessoais, etc.

Estou, desta forma, a sugerir que a gramática convencional de fazer território dá lugar a uma outra gramática menos convencional e mais virtual de desenhar a cartografia do território.

O modo convencional, como sabemos, tem uma determinada georreferenciação ou cartografia territorial, se quisermos, um padrão de mobilidade mais fixo, mas, também, um modo de sociabilidade e comunicação mais físico e presencial, se quisermos, uma geografia mais sentimental.

O modo algorítmico ou digital tem uma georreferenciação diferente, um padrão-fluxo e uma cartografia mais móvel, bem como uma sociabilidade e comunicação mais intangíveis e virtuais.

No modo convencional os cidadãos iam ter com os serviços que estavam fisicamente estabelecidos nos locais de residência de acordo com uma certa geografia urbana.

Nesses trajetos, os percursos são familiares: o quiosque, a casa de jogo, o café, a loja, o serviço público, a agência bancária, o mercado, o posto dos CTT, a farmácia, a livraria, a biblioteca, o consultório, o restaurante, a ,galeria, a sala de conferência, entre muitos outros locais.

No modo digital, e em muitos casos, são os serviços que vêm ter connosco, em linha e no terminal do nosso smartphone: o jornal online, o jogo online, as compras online, as encomendas online, o e-government e e-banking, o ensino à distância, a refeição takeaway uberizada, o teletrabalho e a telemedicina, as visitas digitais aos museus e galerias, o e-book, os eventos nas redes sociais, os webinares, entre outros. Parece que o fixo virou fluxo.

Nestes percursos, o espaço privado e o espaço público sofrem profundas alterações, mas aqui a imaginação não tem limites, em especial para a arquitetura dos anéis do espaço urbano, do perímetro urbano ao espaço periurbano e suburbano e ao mundo rural envolvente.

Por outro lado, se observarmos os dois modos de ocupação do território pelo prisma das três inteligências (racional, emocional e artificial), verificaremos que a inteligência emocional sai claramente perdedora quando passamos do modo convencional para o modo digital.

Ora, é a inteligência emocional que melhor consubstancia quer a ocupação do território e a nossa relação com a natureza, quer a provisão sentimental para a comunicação e a sociabilidade humanas. Esta constatação é plena de consequências quando olhamos a política de ordenamento e o planeamento urbanístico das grandes cidades, pois na mesma cidade teremos dois universos significantes e uma dupla cartografia em profunda interação. Como se fossem duas cidades na mesma cidade.

O universo dos problemas materiais e tangíveis que precisam de ser digitalizados e virtualizados (a virtualização da realidade) e o universo dos imaginários virtuais (o realismo virtual) que aguarda para ser convertido em realidade tangível e material em comunidades reais.

Nesta cidade a duas velocidades, há muitas geografias em jogo e outras tantas questões em aberto: como evoluem as respetivas cartografias territoriais e as representações do espaço público, como se acomodam os espaços ditos verdes, qual é a adequação da arquitetura urbana a esta dupla velocidade e como se distribui o nosso padrão de mobilidade nesse contexto?

 

A arquitetura das duas cartografias do território

Como sabemos, no modo convencional, a cidade está verticalizada, o poder está centralizado e domina a cidade. O universo que prevalece é o universo dos equipamentos, infraestruturas e serviços públicos, ou seja, o universo das autoridades públicas.

No modo digital e algorítmico, o código domina a cidade, a cidade está mais horizontalizada, as plataformas colaborativas partilham o poder, um poder mais lateral, interpares, que dispensa, em certas condições, a intermediação das autoridades públicas.

Não falamos de cidade dual, mas de plataformas públicas, privadas e cooperativas que procuram, ainda, uma base colaborativa de entendimento. Quando alcançarem esse objetivo teremos, seguramente, uma outra cartografia, um outro padrão de mobilidade, um outro território espaço-público, uma outra gramática dos territórios.

No plano da tecnologia digital, as plataformas, os algoritmos e os aplicativos criarão duas realidades distintas, mas complementares: as atividades in situ de presença física direta e as atividades ex situ de controlo e monitorização à distância. Como é obvio, os planos de ação executiva compreenderão sempre as duas atividades em dosagem variada de acordo com o respetivo planeamento.

Num plano mais substantivo, porém, a realidade in situ é um espaço cognitivo onde a comunidade local ainda tem alguma capacidade de observação-ação e, portanto, de diálogo e comunicação. Essa capacidade pode reduzir-se ou alterar-se a partir do momento em que os novos dispositivos digitais tomam conta da ocorrência e começa a monitorização ex situ.

A partir desse momento a linguagem do alfabeto das comunidades humanas dará, progressivamente, lugar à linguagem codificada da inteligência artificial (a internet dos objetos).

Doravante, deixaremos de ser um cidadão freguês membro de uma comunidade local para ser um cidadão codificado, uma password, um número de conta ou uma notificação numerada. Mas podemos sempre discutir o problema local num chat criado para o efeito e ouvir, mesmo, a comunidade mundial sobre o assunto. Espero apenas que não seja uma chatice.

 

Um novo contencioso de responsabilidade pública

A nova trajetória digital está longe de ser pacífica e linear, uma vez que nesta transição surgem muitas patologias e, também, um novo contencioso de responsabilidade pública. O cálculo algorítmico depende, desde logo, da quantidade e qualidade dos dados que recebe.

Ora, se estes dependem dos critérios do programador, também dependem da atitude e comportamento do utente/consumidor (que pode viciar a informação prestada), da sua literacia digital, do comportamento dos concorrentes, da atenção dos reguladores e o papel das autoridades públicas.

É bom não esquecer, nesta trajetória, que, por exemplo, a criação de falsos perfis engana facilmente os algoritmos que os classificam e promovem. As plataformas usam, com frequência, os sistemas GPS, a georreferenciação e critérios muito comuns (mais rápido, mais curto e mais barato), mas há outros critérios que podem ser, igualmente, utilizados (mais seguro, mais ecológico, mais estético) e as circunstâncias concretas do território em causa podem determinar uma colisão entre estes critérios.

Não devemos esquecer que os algoritmos, ao fazerem cálculo abstrato e descontextualizado, transformam o modo como ocupamos o território, isto é, promovem uma desregulação do território e interagem com e contra os modos tradicionais de ocupar o território.

Neste contexto, não admira que cresça a margem de erro e o contencioso de responsabilidade que lhe corresponde, pois nesta trajetória digital aumenta bastante o número de atores em presença.

Está em causa o interesse egoísta da plataforma, a sua discrição, os critérios do programador e a sofisticação do cálculo, o comportamento dos concorrentes, o escrutínio das comunidades (profissionais, média, científicas), as deliberações do regulador e das autoridades políticas, os dados produzidos pelos utentes (a sua rastreabilidade), o grau de literacia do utilizador.

A argumentação das plataformas é muito ardilosa e cria por vezes a ilusão de que o cálculo é meramente procedimental e, portanto, neutro. Quer dizer, os operadores programadores escondem-se atrás do algoritmo como se o algoritmo existisse para lá do criador programador. Ora, sabemos bem que os critérios do algoritmo são, antes de mais, escolhas políticas da plataforma e estas podem sempre causar segregação e discriminação.

No final, há quase sempre uma grande desigualdade, de facto e de direito, entre os argumentos do operador da plataforma e a incultura digital do utilizador comum.

 

Nota Final

Um bom governo dos territórios está, portanto, obrigado a cruzar e partilhar bases de dados de várias origens, a testar a sua interoperabilidade, pois, se tal não acontecer, ocorrerá um défice de conhecimento e não há cálculo algorítmico que seja capaz de corrigir essa discriminação ou lacuna nas políticas públicas de intervenção.

Além disso, uma boa cobertura digital é determinante para um território possuir uma relevante produção e colheita de dados acerca da sua própria condição. Se assim não for, as discriminações podem multiplicar-se.

Na aparência, a lógica das plataformas é uma lógica sem solo, todavia, sem uma boa infraestrutura de rede de telecomunicações no terreno, os algoritmos vão permanecer adormecidos, assim como os utilizadores que sofrem de iliteracia digital.

No final, e no mínimo, para que seja possível passar do modo convencional para o modo digital, precisamos de ter uma boa cobertura do território e uma boa literacia digital dos utilizadores.

 

 



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