250 anos de odiosa (in)diferença? A agricultura e a posse da terra

Também no que toca à exploração agrícola e fundiária, o Marquês de Pombal identificou graves problemas e, até, práticas ilícitas

Em artigos anteriores, relembrei que a reforma pombalina de “Restauração do Reino do Algarve” tem como data fundamental o ano de 1773, e por isso assinalam-se, neste ano de 2023, os seus 250 anos.

À semelhança da “odiosa indiferença” aduaneira que existia entre o Reino do Algarve e o Reino de Portugal, que fazia com que a região algarvia fosse tratada como um país estrangeiro, também no que toca à exploração agrícola e fundiária, o Marquês de Pombal identificou graves problemas e, até, práticas ilícitas. Vejamos as suas elucidativas palavras sobre este assunto:

«A Agricultura estava na maior parte reduzida aos termos de ser um impossível: porque sendo na Aritmética Política um axioma certo que nos Países mais felizes e prósperos, é só de cem pessoas uma a que tem meios para viver em abundância; se achava a Lavoura do Algarve necessariamente reduzida a estas centésimas pessoas abastadas. Em razão de que tendo comprado aos necessitados quási todas as terras, tendo-lhas logo emprazado com foros tais, e tão onerosos que excediam as produções delas».

Pombal identificava, neste excerto da Quarta Inspecção Sobre o Comércio Nacional (BNP, Colecção Pombalina, PBA 695), de forma muito clara os dois principais problemas que afectavam o Algarve no que tocava à exploração agrícola: por um lado, o facto de as terras se encontrarem na posse de um reduzido número de proprietários, o que, em períodos pré-industriais, nos quais a riqueza estava alicerçada na posse da terra, fazia destes homens os mais ricos da região; por outro lado, além de deterem a posse da terra, os mesmos proprietários celebravam contratos de acesso e exploração da terra ilícitos, nos quais não respeitavam as taxas de juro estipuladas pela legislação, sobrecarregando assim os lavradores com pensões anuais de tal forma elevadas que se tornavam incomportáveis.

Efectivamente, a análise da distribuição dos rendimentos da população algarvia na década de 1770 permite aferir uma grande desigualdade, com uma parte significativa destes rendimentos nas mãos de uma pequena percentagem da população. Na cidade de Faro, por exemplo, 49,2% da totalidade dos rendimentos pertencia a apenas 5% da totalidade da população activa residente; já em Loulé, 1% dos residentes activos nessa vila concentrava 27,9% dos rendimentos.

Estamos perante índices de desigualdade muito elevados que, por seu turno, se repercutiam numa grande desigualdade social. Observando, de perto, a quem pertencia o grosso dos rendimentos, encontramos a nobreza local – a nobreza que ocupava os cargos da governança da terra e os altos cargos militares –, os homens de negócios mais prósperos – que, como forma de ascensão social, haviam começado a adquirir terras – e também o clero prebendado – isto é, os clérigos que ocupavam altas posições hierárquicas na diocese algarvia. A estes indivíduos somavam-se instituições ou grupos poderosos (como o Cabido, as Misericórdias, os Mosteiros e Conventos, etc.) com propriedades vinculadas.

Além da desigualdade de rendimentos e social, também a celebração de contratos ilícitos para o acesso e exploração da terra minava perigosamente o desenvolvimento da agricultura regional. Não interessa aqui entrar em termos jurídicos específicos, mas esta tipologia de contratos foi descrita, à época, como usurária: a lei em vigor estipulava para os mesmos uma taxa de juro anual de 5%, mas na realidade, os grandes proprietários algarvios cobravam taxas anuais de 10%, ou seja, o dobro.

Rapidamente se tornou claro para Pombal que existia no Reino do Algarve um grupo de senhores “poderosos” – era assim que a eles se referia nas fontes documentais – que concentravam a si a riqueza e não respeitavam as leis do Reino. E rapidamente se teria apercebido, também, que seria muito difícil fazer frente a este grupo, que estava muito mais interessado em manter os seus interesses económicos e status quo do que em contribuir para o bem comum e para uma distribuição mais equitativa dos rendimentos.

Assim, quando ainda na década de 1760 Pombal determina a criação de uma Junta que tinha por objectivo averiguar os contratos fundiários do Reino do Algarve, logo se ergueram contra as vozes dos “poderosos” “Provedores das Mizericordias, Hospitais e Albergarias, Administradores das Capelas, Confrarias, Prelados, e Preladas dos Conventos e Mosteiros situados no Reino do Algarve, e mais pessoas particulares”, inviabilizando o seu funcionamento. E quando a 16 de Janeiro de 1773 a mesma junta foi restituída, novamente um grupo de poder da sociedade algarvia, desta vez o Cabido da Diocese do Algarve – enviou uma representação na qual discutia a natureza jurídica dos contratos. A Junta nunca funcionou, pois, em pleno, e os desígnios pombalinos de combater por essa via os contratos ilícitos e de, assim, fomentar a agricultura algarvia caíram em saco roto.

Numa actualidade em que se erguem clamores a chamar a atenção para uma desigual distribuição da riqueza, concentrada numa pequena percentagem da população mundial – basta, para tal, relembrar Thomas Piketty e a sua obra O Capital no século XXI, na qual refere a cada vez mais elevada concentração da riqueza em 1% da população – não é, de todo, despiciendo relembrar que em períodos anteriores da nossa história já passámos por índices de desigualdade semelhantes, mas que foram progressivamente alterados através da construção do estado social. Estaremos nós a caminhar a passos largos para a sua destruição?

Este artigo é o segundo de uma pequena série que sinalizará os 250 anos das principais medidas do projecto pombalino de “Restauração do Reino do Algarve”. O próximo artigo abordará o tema das pescarias.

 

Autora: Andreia Fidalgo é historiadora e escreve segundo as regras do anterior Acordo Ortográfico

Nota: Este artigo é o segundo de uma pequena série que sinalizará os 250 anos das principais medidas do projecto pombalino de “Restauração do Reino do Algarve”. O próximo artigo abordará o tema da agricultura.

 

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