250 anos de odiosa (in)diferença?

Nos 250 anos transcorridos entre a sede reformista de Pombal e a actualidade, terá realmente o Algarve superado a “odiosa diferença”?

Carta Corográfica do Reino do Algarve, c. 1770-1780?. Disponível em https://purl.pt/26082

Provavelmente, poucos saberão que o ano de 2023 é ocasião de celebração histórica no Algarve. Há exactamente 250 anos, e logo a partir de Janeiro de 1773, o então designado Reino do Algarve foi alvo de uma série de reformas económicas e político-administrativas, que redefiniriam a sua história de forma absolutamente decisiva, deixando marcas no território que perduram até aos dias de hoje.

Passado o ímpeto alusivo à Expansão Marítima (séculos XV e XVI), época em que o Algarve deteve inegável interesse geoestratégico, seguiram-se quase duas centúrias de depressão económica e de quase total desinteresse e abandono da região algarvia por parte da Coroa Portuguesa.

No século XVII e durante grande parte do século XVIII, encontramos uma região ruralizada, economicamente deprimida e politicamente esquecida, totalmente remetida à sua condição periférica no Reino de Portugal.

Quando, a 1 de Novembro de 1755, a terra tremeu violentamente, no que ficaria conhecido como o grande terramoto de Lisboa, também o Algarve sofreu perdas humanas e materiais inestimáveis que agravaram uma situação já de si precária. O epicentro ao largo de Sagres não só fez a terra tremer, como fustigou a região com um tsunami devastador, que atingiu de forma particularmente gravosa o Barlavento algarvio.

Foi esta catástrofe que, em grande medida, potenciou Sebastião José de Carvalho e Melo como o homem de força do governo de D. José, que soube tomar as rédeas e reerguer a capital arruinada.

No rescaldo, e num exercício puro de reforço da soberania por intermédio de um reconhecimento mais amplo e informado do território português, o então futuro Marquês de Pombal fez chegar aos párocos de todas as paróquias do Reino, em 1758, um amplo questionário que inquiria sobre os estragos produzidos pelo terramoto, mas também sobre a geografia, a demografia, a história e as condições económicas e administrativas de cada um desses territórios.

Certamente não teriam sido indiferentes ao ministro os relatos que lhe chegaram das paróquias algarvias, mas o que verdadeiramente pareceu ter captado o seu interesse foram as descrições elogiosas que o Conde de Lippe teria feito da região, após a sua passagem por aí em 1764, chegando mesmo o marechal-general do exército português a designá-la como um “pedaço de Paraíso terrestre”.

Tornou-se, então, primordial averiguar as causas da decadência daquele “pedaço de Paraíso”, ao qual Portugal devia os seus “gloriosíssimos descobrimentos”.

Encomendados vários relatórios de diagnóstico aos agentes da Coroa no território, foi rapidamente perceptível que o Reino do Algarve necessitava de um plano de reforma que incidisse nos mais diversos sectores e simultaneamente cumprisse a função de reforçar a presença, a soberania e o poder da Coroa num território amplamente esquecido e negligenciado durante séculos.

A este plano de reforma deu-se a designação, na época, de “Restauração do Reino do Algarve”, e, não obstante algumas medidas terem sido tomadas logo na década de 1760, as principais e mais relevantes datam todas de 1773, cumprindo no presente ano de 2023 os 250 anos.

Atentemos nessas medidas, dividindo-as por área de actuação:

A) Agricultura e propriedade fundiária: por alvará de 16 de Janeiro de 1773, reinstituía-se a Junta para averiguação dos censos e foros usurários do Reino do Algarve, através da qual se procurou fazer frente a um dos mais gravosos problemas da região, isto é, a concentração da propriedade fundiária – e, consequentemente, de quase toda a riqueza – nas mãos de uns poucos senhorios, que a exploravam através de contratos ilícitos de censos e foros usurários contrários à lei em vigor.

B) Pescarias: por provisão de 13 de Janeiro de 1773, reduziam-se os direitos do pescado a duas dízimas – inclusivamente do pescado seco e salgado que poderia transitar dentro do Reino sem pagar mais imposto ou portagem –, e aumentava-se para o dobro os direitos pagos pelo pescado que fosse exportado fresco para fora do Reino, com o intuito de incrementar a produção e exportação de peixe seco e salgado, diminuir a exportação de peixe fresco – que era explorada na costa algarvia sotaventina, sobretudo, por espanhóis – e, também, pôr termo ao contrabando de pescado.
A 15 de Janeiro constituía-se a Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, a última das companhias monopolistas pombalinas, que garantia o controlo e intervenção do Estado sobre os peixes privilegiados, a corvina e o atum, os mais lucrativos, reservando aos restantes o comércio livre.

C) Comércio: a lei de 4 de Fevereiro de 1773 colocaria fim à “odiosa diferença” entre os reinos de Portugal e do Algarve, acabando com a discriminação aduaneira que se fazia sentir na região, repercutida numa multiplicidade de direitos e portagens pagos pelos produtos que daí saíam para o restante reino, como se de uma região estrangeira se tratasse.
O objectivo seria, portanto, permitir a prossecução de uma política de livre troca interna, abrindo espaço para que outros homens de negócios de origem portuguesa e algarvia conseguissem competir com os homens de negócios ingleses instalados na região.

D) Reorganização político-administrativa da rede municipal: o alvará de 16 de Janeiro de 1773 elevou Lagoa e Monchique a vila, e estes dois novos concelhos passaram a repartir entre si parte do território que até então pertencera ao vasto e empobrecido concelho de Silves.
Simultaneamente, o concelho de Vila Nova de Portimão passou a incorporar a então extinta vila de Alvor e ficou destinada à primeira a sede do novo bispado, num projecto que pretendia dividir a diocese algarvia e que nunca se veio a concretizar.
A 17 de Dezembro deste mesmo ano decretou-se a fundação de Vila Real de Santo António, no extremo oriental da região, o que resultaria na criação desse novo concelho e na extinção do concelho de Cacela, em 1775. Esta vila iluminista erigida de raiz só seria inaugurada a 13 de Maio de 1776.

Os alcances das reformas económicas pombalinas foram quase nulos e não se verificou, num mais longo prazo, o tão almejado desenvolvimento económico do Reino do Algarve.

No entanto, no que respeita à reorganização político-administrativa, as reformas pombalinas produziram resultados duradouros, com a criação de três novos concelhos – Lagoa, Monchique e Vila Real de Santo António – e a extinção de dois – Alvor e Cacela – tendo contribuído de forma decisiva para redesenhar a rede municipal algarvia como hoje a conhecemos.

Se tivéssemos de resumir a actuação reformista pombalina de há precisamente 250 anos, muito facilmente poderíamos dizer que pretendeu então extinguir a “odiosa diferença” entre o Reino do Algarve e o Reino de Portugal. Uma odiosa diferença que resultou precisamente da indiferença e do esquecimento a que a região ficou votada durante duas centúrias, contribuindo para o seu isolamento e decadência económica e para o desenvolvimento de uma sociedade liderada por um pequeno grupo de homens poderosos a cujos interesses foi muito difícil o poder central fazer frente.

Ademais, cumpre salientar que foi notório o esforço que naquele ano de 1773 se fez no sentido de se pensar a região algarvia no seu todo, de forma homogénea, considerando várias áreas estratégicas de actuação e respeitando a sua identidade particular mediante a criação de um projecto de “Restauração” único e de contornos muitos específicos que não poderia ser reproduzido em mais parte nenhuma do território português. Uma visão concertada e estratégica do centro para a periferia que raramente vemos acontecer nos dias de hoje…

Passado o impulso “restaurador” do século das luzes, será lídimo questionar: o que veio após o fim da “odiosa diferença”? Nos 250 anos transcorridos entre a sede reformista de Pombal e a actualidade, terá realmente o Algarve superado a “odiosa diferença”? Ou terá continuado a ser alvo de uma odiosa (in)diferença, que se reflecte na forma como ainda, nos dias que correm, as suas legítimas reivindicações são sucessivamente negligenciadas? Um tema para reflectir e debater…

 

Nota: Este artigo pretende abrir uma pequena série que sinalizará os 250 anos das principais medidas do projecto pombalino de “Restauração do Reino do Algarve”. O próximo artigo abordará o tema do comércio.

 

Autora: Andreia Fidalgo é historiadora e escreve segundo as regras do anterior Acordo Ortográfico

 

 

Leia mais um pouco!
 
Uma região forte precisa de uma imprensa forte e, nos dias que correm, a imprensa depende dos seus leitores. Disponibilizamos todos os conteúdos do Sul Infomação gratuitamente, porque acreditamos que não é com barreiras que se aproxima o público do jornalismo responsável e de qualidade. Por isso, o seu contributo é essencial.  
Contribua aqui!

 



Comentários

pub