Pela terra da «Civilização do Barro»

O fotógrafo Filipe da Palma foi até Santa Catarina da Fonte do Bispo em busca de uma arte milenar, que nos desvenda aqui, em belas imagens e emotivo texto

Foto: Filipe da Palma ©

Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.
Génesis 2:7

 

Telha antiga, provavelmente de época islâmica, descoberta pelo autor no Algarve – Foto: Filipe da Palma ©

 

DECLARAÇÃO DE INTERESSES

Desde moço de tenra idade que nutro um fascínio por trabalhos em terra, barro, argila, cerâmicas, portanto.

Somente há pouco tempo me dediquei a uma tentativa de, atrevidamente, teorizar acerca de tal encanto, podendo hoje escrever que tal foi, não espoletado, mas agravado por um presente de meu tio Diamantino.

Sabendo do meu gosto por História, em particular pela Arqueologia, ofereceu-me uns cacos em cerâmica e umas peças um pouco maiores, que correspondiam a telhas, cujo aparecimento sobre a terra se devia ao ter passado com a grelha do tractor para preparar o chão para o pão que se havia de semear.

Grossas telhas, sob a terra? Sinais de vida antiga cujas fundações desapareceram da vista … a curiosidade havia sido instilada e de enxada lá me dirigi para trabalhos exploratórios de onde resultaram a descoberta de mais alguns cacos e algumas telhas quase inteiras.

Uma, porém, destacava-se do espólio reunido, pois, para além de se encontrar quase completa, estava decorada com serpenteantes e digitados motivos, percorrendo todo o comprimento.

Na altura, um pouco mais tarde, na posse de tal telha, dirigi-me a uns primos que se encontravam em Silves, a dirigir e em escavações no poço-cisterna, hoje integrado no Museu de Silves. Após uma breve visita aos trabalhos que decorriam, apresento a peça e indago acerca de sua possível antiguidade, ao que me é informado que tal, muito provavelmente, corresponderia ao período de ocupação árabe da península.

Uma telha, uma simples telha com centenas de anos, que se encontrava sob uma película de terra, em cuja produção alguém se havia dado ao trabalho de decorar passando três serpenteantes dedos.

Em minhas palmas um testemunho tangível de antiga Obra Humana, que anónimas mãos tiveram necessidade de inscrever a necessidade de beleza ou de algo para lá do meu entendimento.

Uma poética existência de um objecto utilitário mas singularmente belo, modelado por há muito desaparecidas mãos humanas, que havia retornado ao seu ponto de origem, porém ainda cristalizado em sua metamorfose.

 

 

TERRA, ÁGUA, AR E FOGO

Ao longo de uma estreita faixa situada entre o alvo e calcário barrocal e a negra e xistosa serra, uma vermelha faixa de argila aflora no território. Nesta, a antiga presença do ser humano: quer como elemento condicionado pelo meio, quer como elemento cuja capacidade de racionalidade lhe permitiu agir sobre a matéria onde assenta seus pés e o seu olhar se espraia.

De uma veneranda antiguidade, o ser humano criou – retirando à natureza de onde emergira, a necessária matéria – um mundo à sua medida.

Nunca compreenderemos o seminal momento – talvez como término de um processo – em que mãos, dirigidas pelo pensamento, mergulharam na terra humidificada, anteriormente subtraída a uma nacarada artéria, a uma veia do solo, à paisagem, e modelaram o universo a si contíguo.

Quantas anteriores e vãs tentativas, decepções, fracassos, naufrágios estiveram presentes no decurso da História; quantas e quais as imprevisibilidades aleatórias que concorreram e se conjugaram de maneira perfeita no processo; de modo a que pela primeira vez o ser humano tenha conseguido modelar a terra à sua imagem e semelhança, que tenha conseguido de forma exequível dominado o processo estabelecendo uma fiável metodologia edificante da matéria dúctil?

Não posso deixar de associar ao momento em que utilitariamente o ser humano compreende as vastas ligações entre matérias disponíveis e num acto – a par de outros – inaugural concebe uma poética da Criação.

Com a terra, com a capacidade de a modelar por sua arte e engenho, o ser humano dá um colossal salto evolutivo, transpondo uma etapa mais no sentido de afastamento das pré-existentes condições.

Retirar as várias terras da barreira ou do solo, posteriormente moídas, adicionando-se-lhes água para a tornar matéria edificável do sonho, dando-lhe forma e posteriormente cozida em fornos com genesíacas temperaturas.

Na posse do conhecimento, a matéria onde vive torna-se chão, paredes e telhado.

 

Tendo-me deslocado, por diversas vezes ao longo de anos, a Santa Catarina da Fonte do Bispo, para registar em imagem o elaborar da telha, tijolo burro e ladrilho, tenho tido oportunidade de encetar conversas com quem lá trabalha.

De um passado ainda recente, a nascente de Santa Catarina da Fonte do Bispo e a poente já no concelho de São Brás de Alportel, o número de telheiros na região ultrapassaria as duas dezenas, laborando os homens somente de Março a Outubro, empregando umas centenas de pessoas que uma vez terminada a época para outras sazonais ocupações se dirigiam.

Na anterior, mas seguramente não a última vez a que um telheiro me dirigi (Ladrilhos e Telha Santa Catarina – Alberto Rocha) para completar um pouco mais o corpo de trabalho que sobre esta manufactura/indústria recaiu aconteceu em pleno Verão. Entrei numa ampla superfície coberta, onde corpos que se encontram na “pedra”, desde a manhã até ao fim do dia de trabalho, davam forma e corpo aos ladrilhos, hoje referenciados como de Santa Catarina.

A verticalidade corporal é mantida ao longo do dia de trabalho e as mãos, extraindo argila a um monte a si contíguo, trabalham na horizontal, dispondo-a numa forma, a gavieira, que se encontra na “pedra”.

Movimentos rápidos de vai e vem, dispõem e acamam sabiamente a nacarada matéria, preenchendo a totalidade do espaço vazio.

Gestos rápidos e maquinais, o suor que cai na obra, temperando-a de esforço humano.

 

Peça a peça a obra é produzida. O ladrilho, uma vez passado pelas mãos de quem lhes dá forma, passa para as mãos de quem os dispõe na eira para secagem, um interminável e diário ir e vir e cuidadosamente dispor, num flectir de corpo, dentro de invisíveis linhas.

Se ao final de um dia de trabalho, forem produzidas mil e duzentas peças, para somente uma pessoa na respectiva pedra, multipliquem-se por esse número todos os pequenos, mas necessários gestos, desde o dar forma e substância ao alinhado dispor na eira (outra pessoa); uma vez achado o número poderá multiplicar-se o mesmo por três a quatro pedras, onde mais três a quatro equipas produzem.

Antes, num passado ainda vivo na memória, todo o processo era manual, desde o arrancar da matéria-prima do ventre da terra passando por todas as fases em que tais elementos (telha, ladrilho e tijolo burro) são depositados no interior do camião que tanto os poderá levar para um ponto na região ou a milhares de quilómetros.
Se antes a área do telheiro se encontrava descoberta, à mercê dos elementos, hoje é totalmente coberta, permitindo desta forma laborar o ano inteiro.

Uma vez dispostos na eira, secam os ladrilhos ao ar, sendo assim retirado o excesso de humidade. Estando desta maneira dispostos o tempo necessário, cerca de dois dias, por diversas vezes terão de ser batidos com uma superfície plana de madeira, pois as pontas dos mesmos têm a tendência de virar para cima.

 

Uma vez que a obra (tijolo burro, ladrilho e telha) se encontre devidamente depurada do excesso de humidade é cuidadosamente acondicionada (cuja disposição obedece a uma massa/peso por ordem decrescente do solo para o cimo do forno) na câmara superior do forno cujo corpo é constituído por uma outra câmara inferior destinada à queima e situada abaixo do nível do solo.

Um fogo continuamente alimentado durante um dia e mais o que for necessário, coze e consolida toda a obra.

Sempre um homem presente, revezando-se em turnos, a alimentar pela boca a imensa fornalha que por vezes mostra sua língua ao fotógrafo.

Da esmagadora maioria dos homens com quem partilhei alguns dias, deles absorvendo os gestos e as palavras, sei que desde tenra idade começaram a trabalhar nesta indústria, ainda crianças, durante as férias escolares de Verão.

Na memória dos presentes que agora trabalham, existem ainda vívidos relatos, testemunhados na segunda pessoa, de tempos em que o músculo estava presente em todo o processo, bem diferente dos dias de hoje em que muitas das fases se encontram coadjuvadas pela maquinaria que veio tornar mais fácil e rápida a produção.

Apesar de máquinas terem sido introduzidas em várias partes do longo processo, nomeadamente na extracção, trituração e moagem, o manual está presente nas etapas que contribuem para que cada peça seja individual, apesar da produção ser aparentemente homogénea.

 

 

A Obra espalhada pela eira a secar, ou já disposta após cozida, somente na aparência geral é igual; mínimas mas enriquecedoras singularidades afloram à visão quando observadas de perto, constituindo-se em factor que valoriza a aplicação dos elementos.

Todo o processo, todos os trabalhos a si necessários – mesmo que hoje auxiliados por máquinas – exigem de quem o desempenha não só um contínuo esforço físico – um comprometimento entre a rudeza da actividade que exige o músculo – mas igualmente depende de um conjunto de subtilezas exigidas pela fragilidade da matéria com que se trabalha.

À vol d’oiseau, a uma primeira impressão, a ideia poderá ser contrária, mas o sábio entender que as várias argilas se encontram prontas para serem intervencionadas; o encher da forma, acauteladamente, não deixando de preencher todo o espaço; o cuidadoso dispor de cada peça na eira; o meticuloso dispor das peças no forno; a sensibilidade com que os mestres do forno analisam pela cor, pelo fumo a cozedura da obra faz-me reflectir na existência de uma empírica e fina sensibilidade com que cada trabalhador tem de agir para com a matéria, e em que à falta da mesma corresponderá necessariamente um mau trabalho.

Foto: Filipe da Palma ©

 

Escrevendo o que me dá na telha:

-Ter a possibilidade de habitar uma edificação onde chão, paredes e tecto sejam expressão de um viver consciente de e nos elementos, é singular experiência.

Por unanimidade foi aprovada, após apresentação na sessão ordinária da assembleia municipal de Tavira do dia 30 de Setembro do corrente ano, a recomendação, referente ao registo no inventário nacional do património cultural imaterial do processo de fabrico da cerâmica de Santa Catarina da Fonte do Bispo.

 

Neste mundo de plástico e de ruído, quero ser de barro e de silêncio.
Eduardo Galeano

 

Fotos: Filipe da Palma ©

 

Nota 1 – a expressão presente no título é da autoria de Orlando Ribeiro in Geografia e Civilização

Autor: Filipe da Palma é fotógrafo e tem documentado, através do seu trabalho, os aspetos mais originais da arquitetura vernacular do Algarve, bem como inventariado em imagens o património imaterial algarvio. É autor do livro «Platibandas do Algarve».

 

 



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