Mértola terá um hammam que também é uma casa cor-de-rosa

A intervenção significa um investimento que «ronda um milhão de euros»

O interior do hammam – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Na vila de Mértola dos tempos islâmicos, há um milénio, deverão ter existido banhos mouros ou hammam no largo principal. Mas, ao longo de décadas de escavações arqueológicas nesta localidade alentejana, tais estruturas nunca foram descobertas.

É uma carência que será agora resolvida, com a abertura, prevista para Outubro próximo, do hammam instalado na Casa Cor-de-Rosa, que foi alvo de obras de requalificação num projeto da responsabilidade da Câmara Municipal de Mértola.

Rosinda Pimenta, vice-presidente da autarquia, em entrevista ao Sul Informação, explicou que a intervenção passou não só por «reabilitar um edifício degradado do centro histórico de Mértola», mas também «trazer para o centro histórico novas funcionalidades e novas atratividades».

O autor do projeto de reabilitação da Casa Cor-de-Rosa, incluindo a instalação do hammam, de uma casa de chá e de um jardim aromático, bem como do design de interiores e da conceção de peças decorativas e utilitárias, é o arquiteto José Alberto Alegria, especialista em arquitetura e construção em terra.

Esta Casa Cor-de-Rosa tem uma história curiosa: era a residência de um rico comerciante mertolense do início do século XX, antepassado da família Allen Gomes, com o rés-do-chão então ocupado por armazém e celeiro e o piso superior destinado a habitação, à qual se acedia por uma escadaria.

O piso térreo dará agora lugar aos banhos mouros, ou hammam, pensados para acolher um máximo de seis a oito pessoas de cada vez e dotados de todas as áreas tradicionais dos banhos públicos, que eram lugares de purificação, higiene e sociabilidade e que agora serão relançados como um espaço de saúde, bem-estar e cultura.

A par do hammam, haverá, no primeiro andar, uma Casa de Chá, prevendo-se que o espaço seja animado com uma programação cultural própria, com tertúlias, exposições, conversas e, claro, degustações de sabores do Mediterrâneo.

 

A vice presidente Rosinda Pimenta – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Ao todo, a intervenção significa um investimento que, segundo Rosinda Pimenta, «ronda um milhão de euros», dos quais 800 mil para as obras na casa e 200 mil euros para o design de interiores, equipamento, criação do site, entre outros aspetos.

A vice-presidente da Câmara de Mértola explicou que este local foi objeto de «duas candidaturas: uma para a recuperação e reabilitação do edifício em si e outra para a dinamização e capacitação do hammam, ou seja, para tudo aquilo que é design de interiores, formação de profissionais que vão trabalhar aqui, comunicação, site, etc».

Tudo se está assim a conjugar para que o Hammam & Casa de Chá de Mértola possam abrir em Outubro próximo. «Já fechámos a equipa que estará a trabalhar no hammam, depois de um processo de identificação de pessoas que tivessem competências na área da saúde, estética ou massagens, que já tivessem formação profissional nessas áreas, que fossem do território e estivessem disponíveis para colaborar com o projeto», acrescentou Rosinda Pimenta.

Através de uma parceria com a Escola Halal de Córdoba, em Espanha, foi dada «formação específica» à equipa. Durante o corrente mês de Agosto, «temos aulas práticas, com o hammam em pleno funcionamento com o ritual todo».

A autarca anunciou igualmente, na sua entrevista ao Sul Informação, que «estamos também a fechar o menu da Casa de Chá e a estabilizar a equipa que irá trabalhar aí», bem como «a definir o programa cultural e a preparar o site».

«Há pequenos trabalhos de acabamentos no edifício, que ainda estão por realizar, coisas muito pontuais, mas estamos mais concentrados na dinâmica do hammam», concluiu.

 

À entrada da Casa Cor-de-Rosa, na visita no âmbito do Festival Terras sem Sombra – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

O projeto do Hammam & Casa de Chá de Mértola foi visitado recentemente pelos participantes do Festival Terras sem Sombra. Foi uma visita às obras e às instalações numa tarde de muito calor, guiada pelo arquiteto José Alberto Alegria, responsável pelo projeto de recuperação e restauro da casa e adaptação a novas funções, mas também pela decoração do seu interior.

Nesta visita especial, além do arquiteto, esteve também presente, embora de modo virtual, a antropóloga Maria Cardeira da Silva, que explicou que um «hammam é um equipamento que tem evoluído com as sociedades». Ou seja, os banhos «não ficaram estáticos, foram-se adaptando às necessidades das populações».

Partindo da ideia da «água como elemento purificador» e do hammam como «espaço de purificação», vertidos nos preceitos do Corão, nos dias atuais, sublinhou Maria Cardeira da Silva, «os hammams de bairro são locais muito movimentados, locais onde as mulheres se encontram». «Antes das redes sociais, eram um dos polos da “rádio medina”», brincou a antropóloga.

José Alberto Alegria, que conhece profundamente a realidade do Norte de África, nomeadamente de Marrocos, onde já viveu e ainda hoje tem casa, corroborou esta ideia: «nos hammams das mulheres e nos dos homens, sempre houve muito má língua, conversa sobre negócios, filhos e filhas para casar».

O arquiteto, por seu lado, explicou e mostrou as ideias que estiveram subjacentes à recuperação da Casa Cor-de-Rosa, salientando o «respeito pelo edifício», tentando descobrir «quais as suas mais valias, mas também quais são as suas patologias».

Um dos elementos arquitetónicos respeitados nesta recuperação foi a «cobertura de quatro águas, lindíssima, mas que teve de ser refeita», mantendo «o aproveitamento integral das águas pluvais para a cisterna monumental». Aliás, acrescentou José Alegria, «todo esse sistema de aproveitamento de águas foi mantido e respeitado». Um aspeto que respeita o passado, mas também o futuro, ao promover um uso racional da água.

 

O arquiteto José Alegria, no “seu” hammam – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Outro elemento que se manteve são «as madeiras desta casa», que «são todas excelentes». Na cozinha, por seu lado, foram mantidos e restaurados o «pano de chaminé e o armário fabuloso». Foi «tudo escorado, para ser reabilitado. Até os azulejos da cozinha foram reabilitados».

No jardim, «reconstruímos de raiz o pavilhão», utilizando «adobes prensados estabilizados, à exceção da cúpula, que é terra cozida», ambas técnicas «dentro dos princípios da arquitetura mediterrânica».

Os pavimentos interiores, respeitando o que a casa já tinha, usam mosaico hidráulico, ladrilho tradicional e madeira. No hammam, as coberturas são em abóbada e cúpula, feitas à mão, e os azulejos verdes vieram de Fez, em Marrocos.

Mas o mais interessante na zona do hammam é o revestimento das paredes, feito em tadlakt, «uma técnica de revestimento de paredes específica dos banhos árabes, que estava perdida», como explicou José Alberto Alegria durante a visita do grupo do Festival Terras sem Sombra.

«Em Marraquexe, durante 40 anos, dois arquitetos pesquisaram, fizeram experiências e descobriram a fórmula» do tadlakt, que o arquiteto português já tem usado em muitos dos seus projetos no Algarve.

No fundo, explicou, «é uma cal pura, misturada com pigmentos naturais e com clara de ovo. Aquilo está 10 dias a amaciar, depois são postos na parede cerca de 3 milímetros daquela pasta e esse revestimento é polido com uns seixos muito finos, estando sempre a aspergir-se com água com sabão natural. Por fricção, aquilo que era mole torna-se duro. Deixa-se estar um mês e depois encera-se com cera de abelhas. É um isolante».

 

O caldarium ou piscina de água quente do hammam – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Na segunda candidatura a fundos europeus, a Câmara de Mértola também contratou o design de interiores, pelo que o arquiteto Alegria acabou igualmente por «desenhar móveis e adereços», para o conjunto do Hammam & Casa de Chá. Curioso é que, como explicou aos visitantes, «para o hammam, os móveis foram feitos no Algarve por um carpinteiro natural de Mértola».

Recuperar técnicas que terão sido usadas pelos habitantes de Mértola islâmica é, no fundo, promover um regresso às origens. Mas José Alberto Alegria salienta ainda a importância de «criar escola». «Hoje em dia, é sempre muito difícil arranjar quem saiba fazer estas cúpulas», explicou, apontando para os diversos tipos de cúpulas usados para coroar as salas do hammam. E foi o próprio arquiteto que ensinou a técnica aos homens que aqui trabalharam.

Depois de quatro anos de intervenções na Casa Cor-de-Rosa, todos esperam agora que o Hammam & Casa de Chá abram, para ser mais um ponto de atração ao dispor do crescente número de turistas que procuram Mértola para conhecer o seu rico património histórico, a sua gastronomia, e ainda a sua riqueza ambiental em grande parte devido à presença marcante do rio Guadiana.

O projeto Hammam & Casa de Chá de Mértola é financiado pelo Alentejo 2020, na sua componente de reabilitação, e pelo Turismo de Portugal, na sua componente de animação.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação e José Alberto Alegria | Darquiterra

 

Durante as obras de recuperação, o subsolo da casa, a quase quatro metros de profundidade, revelou um verdadeiro tesouro: foram descobertas quatro enormes estátuas romanas, sem cabeça, que teriam sido atiradas para uma lixeira e usadas como entulho. As estátuas foram retiradas do local, depois de recolhidos todos os elementos pela equipa do Campo Arqueológico de Mértola, e agora serão musealizadas num outro edifício que a Câmara adquiriu, também no centro histórico da vila.

 

 

 



Comentários

pub