Os fogos do Pinhal Interior, cinco anos depois

Quantas mais irão arder nesse fogo do esquecimento?

Já passaram cinco anos sobre os fogos devastadores do Pinhal Interior. Apagados os fogos, a comunicação social tomou conta da ocorrência, desta vez no que diz respeito ao apuramento de responsabilidades civis e criminais, em relação ao combate aos incêndios e aos ilícitos criminais aí praticados posteriormente em matéria de reconstrução do património destruído.

Entretanto, não sabemos quase nada sobre os resultados do Programa de Revitalização do Pinhal Interior, do Laboratório Colaborativo para o Pinhal Interior, da Unidade de Missão de Valorização do Interior, e de outros tantos programas e subprogramas de coesão territorial e desenvolvimento rural do interior.

Já escrevi em outros artigos (Público, 7 fevereiro 2018 e Observador, 11 março 2018) que somos um país bipolar de longa data, que a desertificação e o abandono atravessaram todo o século XX quando o provincianismo da nossa pequena burguesia rural se casou, por muitos e bons anos, com a burguesia urbana das cinturas industriais de Lisboa e do Porto.

Começou aí a emigração para dentro e para fora, para os bairros de lata cá dentro e os bairros de lata lá fora. Começou aí o estigma social acerca dos denominados labregos. O abandono das nossas aldeias tem, portanto, seis ou sete décadas de penosa construção, pelo menos.

A tragédia dos fogos de 2017 e o grande espetáculo das televisões (e dos drones) que lhe está associado revelou-nos o país oculto que a nossa incompetência e a nossa vergonha tinham relegado para o grande baú do esquecimento e da invisibilidade. A tragédia dos fogos e as imagens de alta-definição captadas pelos drones devolveram-nos a dignidade daqueles corpos quebrados pelo tempo e o sofrimento.

Infelizmente, as nossas aldeias só existem por que ardem. A invisibilidade dos territórios do interior profundo permite quase tudo, mesmo o abandono quase total como agora se comprova. “Como não existem” não há sobre eles qualquer exercício de inteligibilidade, chega-se lá quase sempre em estado de emergência e à beira do abismo como agora aconteceu.

Infelizmente, perante esse grande espetáculo dos meios de comunicação, a visibilidade da tragédia só tem paralelo com a invisibilidade do abandono. A intrusão é de tal ordem que ficamos com a sensação de que o incêndio deflagrou várias vezes.

Num país bipolar de longa data, quase tudo depende do Estado Central ou do Estado local. Dito de outro modo, há muita coisa que tem de permanecer na invisibilidade porque simplesmente não há recursos para tudo. E os que permanecem na invisibilidade são aqueles que não perturbam a pacatez do sistema clientelar e corporativo já estabelecido.

O interior do país não faz parte desse sistema clientelar ou faz parte apenas marginalmente para “calar” algum barão local com a voz mais grossa e, portanto, também, com mais acesso e visibilidade política.

Infelizmente, os incêndios com esta dimensão têm o grave incómodo de trazer à tona da água os “vivos-mortos” do nosso esquecimento. A sua longa invisibilidade, que só os incêndios perturbam, oculta uma morte há muito anunciada. É um silêncio ruidoso, cínico e cobarde, que se esconde atrás de inúmeras cortinas de proteção. Assim, o poder central espera poder “gerir com mais racionalidade” os seus recursos escassos.

Segundo a sua lógica, sem visibilidade é mais fácil gerir recursos escassos e distribuir prebendas logo de seguida, por aqueles que têm maior visibilidade. Ou seja, os territórios também se abatem, porque estes territórios foram silenciosamente e pacientemente desterritorializados.

Infelizmente, este é apenas mais um episódio porque a convergência das alterações climáticas, das alterações demográficas e das monoculturas agroindustriais e florestais preparam o caminho do abandono para que estes territórios sejam “finalmente capturados” sem que, para tal, seja necessário preparar a sua privatização.

Infelizmente, num país tão pequeno, onde todos os territórios, mesmo os mais remotos, têm sinais distintivos e recursos expectantes, é um crime de lesa-pátria não fazer um exercício de inteligibilidade sobre esses sinais e recursos, trazendo-os para a luz do dia, lançando-os no espaço público regional e nacional, conferindo-lhes a visibilidade que é necessária e tudo isto em “clima de perfeita normalidade”.

Lamentavelmente, o universo liliputiano dos nossos pequenos municípios do interior é um terreno difícil para a formação de comunidades de autogoverno mais fortes e musculadas. Tenho, não obstante, a esperança do bom senso e o bom senso da esperança diz-me que a criação das “comunidades intermunicipais”, colocadas entre os níveis local e regional, é um excelente pretexto para reconsiderar toda a política territorial de valorização do interior; que a triangulação destas comunidades com os politécnicos/universidades e as associações empresariais é um bom exercício de inteligibilidade territorial; que os contratos territoriais CIM/NUTS III são um bom instrumento de programação e planeamento; que um ator-rede e uma governança dedicada são dois fatores imprescindíveis para um bom desempenho, pois só há competência se houver permanência.

Quanto ao resto, caro leitor, pergunte pelos resultados do Programa de Revitalização do Pinhal Interior, do Laboratório Colaborativo para o Pinhal Interior, pela Unidade de Missão de Valorização do Interior, e por outros tantos programas e subprogramas de coesão territorial e desenvolvimento rural do interior. O fogo devolve-nos as aldeias esquecidas do nosso rural mais remoto e profundo em todo o seu esplendor. Soubemos, agora, que as aldeias existiam porque arderam.

E quantas mais irão arder nesse fogo do esquecimento?

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

 



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