Um Requiem no sítio certo

A música levou ao monumento gente que nunca lá tinha ido. E isso é bom!

Foto: Gisela Lima

 

Aviso: o escrevente não percebe nada de música, só gosta.

Feito este aviso, que convém ter sempre presente, vou falar sobre um concerto de música clássica realizado pelo Coral Adágio nos Monumentos Megalíticos de Alcalar, em Portimão, no passado sábado, dia 25, com o tema “Da Pré-História à Lua Nova”.

O programa não poderia ser mais assustador: Um Requiem, que é música para mortos, num monumento funerário com cinco mil anos… e à noite!!! Para descanso de quem esteja a ler, correu tudo bem, embora eu não tivesse ficado muito aborrecido se houvesse pés torcidos e umas quedazinhas, leves, daquela malta que andava literalmente a passear em cima do túmulo enquanto decorria o concerto. Os miúdos (também os havia a assistir) ainda se percebe, mas os graúdos, definitivamente não…

Começando pelo princípio, a mistura música/monumento deu resultado. Estava eu a estacionar quando parou um carro ao pé de mim e os seus ocupantes perguntaram se Alcalar era para ali. Lá lhes expliquei que sim, mas isso demonstrou que a música tinha trazido ao monumento gente que nunca lá tinha ido. E isso é bom.

As pessoas acham que, no Algarve, o tempo está sempre bom. Nesta noite, não foi bem assim – estava um vento friozinho que originou uns telefonemas a pedir abafos, idas até aos carros para ir buscar mantas e, entre alguns espectadores, lamentos pela falta de uns medronhos para o aquecimento.

Estas condições atmosféricas adversas foram salientadas pelo maestro “Tó” Alves (desculpem a familiaridade) que, na apresentação, frisou a dificuldade de aquecimento das vozes, da possibilidade de voarem as partituras e da ousadia de interpretarem um tema tão clássico como o Requiem de Gabriel Fauré. Aproveitou também para informar que a obra tinha sete andamentos e que os agradecimentos (leia-se: aplausos) só deveriam ser dados no fim da obra.

Um parênteses pessoal. Quando eu era um jovem estudante em Lisboa, no início dos anos setenta do século passado, como tínhamos pouco dinheiro, andávamos sempre à procura de borlas. Uma das nossas colegas, mais lisboeta e versada nos mistérios da música, disse-nos que havia uma repartição qualquer que oferecia bilhetes para uma coisa chamada Concerto para Jovens, comentado pelo maestro José Atalaya. Os concertos realizavam-se, salvo erro, aos domingos de manhã, no S. Luís. Era um teatro clássico, cheio de veludos, mas lá fomos intrepidamente assistir ao nosso primeiro concerto de música clássica. Aquilo começou, há uma pausa e nós – que até estávamos a gostar – levantámo-nos entusiasticamente a bater palmas… que foram rareando quando vimos toda a gente a olhar para nós. Enterrámo-nos nas cadeiras e foi aí que aprendemos que não se deve bater palmas entre os andamentos.

Normalmente, nos concertos de música clássica, os espectadores já se conhecem. São quase sempre os mesmos. Neste caso, pelos vistos não era assim, pois provavelmente havia gente que, na mistura música/monumento, vinha pela primeira vez à música (ou chegou atrasada e não ouviu o maestro) e que batia palmas entre os andamentos. Senti-me solidário com eles e fico satisfeito porque, provavelmente, o monumento tinha trazido à música gente não habitual. E isso é bom.

Vamos agora à razão disto tudo: a música. Primeiro, o professor João Rosa sentou-se ao piano e deliciou-nos com quatro prelúdios de Chopin. Depois acompanhou o Coral Adágio na “Cantique de Jean Racine” e no famoso Requiem, ambos de Fauré. Os artistas podem ter pensado que a coisa não correu bem, mas desenganem-se: aquela música, naquele ambiente é inigualável!!! Ainda por cima tudo esteve envolvido por uma luminotecnia (ou, como se diz agora, por um desenho de luz) fantástica, que dava à paisagem, às árvores, ao túmulo pré-histórico, um ambiente, no mínimo, mágico.

Então, quando o coro atacou o último andamento do Requiem, “In Paradisum” e sai um feixe de luz do interior do túmulo, direito ao céu, foi inesquecível.

Que se esqueça o frio que já passou, que fiquem os parabéns a toda a malta envolvida no espetáculo. E se aquelas pedras milenares ficaram insensíveis ao que ali se passou, são mesmo uns calhaus.

 

Fotos: Margarida Santos e Gisela Lima

 



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