A viagem aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral ao Brasil em 1922 e os festejos comemorativos no Algarve

Os jornais da época, regionais e nacionais, deram conta dos festejos efusivos no Algarve

Há cem anos, no dia 17 de Junho de 1922, os portugueses saíram à rua e, em apoteose, festejaram a viagem aérea protagonizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, entre Lisboa e o Rio de Janeiro.

O acontecimento levou o país ao êxtase, abatido que estava por tantas vicissitudes, advindas da participação e consequências da I Grande Guerra (1914 – 1918), das sequelas da terrível Gripe Pneumónica (1918), sem esquecer a convulsão política (bem patente na noite sangrenta, quando, a 19 de outubro de 1921, foram assassinados o primeiro ministro, figuras carismáticas da República, como Machado Santos e o algarvio Carlos da Maia, entre outros).

Se a chegada dos egrégios aviadores aos Penedos de São Pedro e São Paulo, já em território brasileiro, a 18 de abril de 1922, havia galvanizado o país, este entrou numa quase histeria comemorativa com a conclusão da aventura, dois meses depois.

O raid aéreo de Lisboa ao Rio de Janeiro foi como um balão de oxigénio no orgulho patriótico e na moral da nação, como nos dá conta a imprensa de época, desde o início da viagem, a 30 de março, e o seu término, a 17 de junho.

É certo que esta se delongou por 78 dias, tantas foram as contrariedades, num total de 62 horas e 26 minutos de voo, à velocidade média de cerca de 130 km/h.

Para a sua concretização, foram utilizados três hidroaviões Fairey: «Lusitânia», entre Lisboa e os Penedos de São Pedro e São Paulo; o «Pátria», entre a ilha de Fernando de Noronha e aqueles Penedos, onde os aviadores quase perderam a vida; e por fim o «Santa Cruz», com o qual completaram a jornada, no Rio de Janeiro.

A conclusão foi o feliz resultado das invenções daqueles aviadores, como o sextante com horizonte artificial e o corretor de rumos, que constituíram o princípio da navegação aérea científica.

 

Quanto aos protagonistas, Carlos Viegas Gago Coutinho, natural de Belém (Lisboa), onde nasceu a 17 de fevereiro de 1869, com ascendências algarvias, era oficial da marinha e geógrafo, enquanto Artur de Sacadura Freire Cabral, nascido em Celorico da Beira, a 23 de maio de 1881, era capitão-tenente e integrara, entre outras, missões geodésicas e geográficas.

Amigos de longa data, amantes da aviação e acima de tudo aventureiros, haviam ensaiado a expedição a partir de um voo de Lisboa para a Madeira, em 1921.

Refira-se que a naturalidade de Gago Coutinho levantou dúvidas ainda em junho de 1922, de tal forma que o jornal farense «Correio do Sul», na edição de 9 de julho, publicou uma entrevista ao seu pai, José Viegas Gago Coutinho, então com 93 anos de idade, na qual, à questão: «- Afinal onde nasceu o seu filho?», aquele foi perentório: «– Num prédio da Calçada da Ajuda, em Belém. Conheço o prédio e até agora querem lá por uma lápide».

Não obstante, a pergunta foi reiterada: «-Tem então absoluta certeza: Gago Coutinho nasceu em Belém?», a resposta: «-certeza absoluta. A não ser, é claro que meu filho se lembre do seu nascimento melhor do que eu….».

É certo que José Gago Coutinho, ainda que nascido no sítio do Vale, em São Brás de Alportel, fora batizado na Sé, em Faro, como o próprio esclareceu na edição de 18 de junho do mesmo periódico. Contudo, tal não sucedeu com o seu filho, é por isso desprovido de fundamento que o intrépido aviador tenha nascido no Algarve.

Como se mencionou, a imprensa deu amplo destaque à viagem, ainda que os periódicos nacionais, como «O Século», na impossibilidade de publicar as notícias enviadas pelos correspondentes de todas as localidades, se tenha limitado a difundir apenas o topónimo e não a descrição dos festejos.

Já o «Diário de Notícias» inseriu conteúdos descritivos somente nos primeiros dias, como na edição de 20 de junho, alguns dos quais oriundos do Algarve.

 

Assim, em Faro, «às 5 horas teve-se conhecimento da notícia da chegada dos aviadores ao Rio de Janeiro. Imediatamente começaram a estoirar os morteiros e os foguetes, a repicar os sinos de todas as igrejas e a apitar as fábricas. Há grande entusiasmo».

A notícia chegou a toda a região via telégrafo e o correspondente de Faro aproveitou para louvar «o pessoal dos correios e telegrafos pelo patriótico interesse em dar conhecimento das notícias do “raid”».

O semanário local «Correio do Sul», na edição de 25 de junho, dá-nos nota que «a cidade viveu um dos mais belos e mais efusivos momentos não só dos últimos tempos, mas talvez de toda a sua vida».

Na verdade, aos três morteiros lançados pelos funcionários dos correios, adicionaram-se mais 101 por parte da comissão central de festas, o repique dos sinos, o silvo das fábricas e as salvas dos barcos de guerra, sem esquecer o «passo-doble» da banda marcial de infantaria nas ruas de Faro e claro «as aclamações do povo».

À noite, toda a cidade convergiu para o Jardim Manuel Bívar, profusamente decorado e iluminado com balões à veneziana, onde atuou a banda de infantaria 4, estalejando de quando em vez fogos de artifício. Muitos edifícios, públicos e privados estavam iluminados. Da doca, e de acordo com o «Algarve», «foram lançados vistosos foguetões».

Os festejos prolongaram-se no dia seguinte, com uma missa campal no campo de S. Francisco, onde o cónego Bentes fez uma «erudita e entusiástica alocução ao feito de Gago Coutinho».

À tarde, ocorreram sessões solenes, entre outras, no Liceu João de Deus e na Escola Comercial Tomás Cabreira.

Foi distribuído um bodo a 50 pobres, «constando de ração de pão, arroz e dinheiro».

 

Semelhante foi o que se viveu em Olhão. A notícia do último raid chegou ali às 13h00, aguardando-se, a partir de então, com ansiedade, o lançamento dos morteiros pela estação telegráfica a anunciar a conclusão da viagem.

Cerca das 17h00, aqueles subiram ao ar e «logo uma alegria doida se apoderou de toda a gente; os sinos repicavam festivamente, os apitos das fábricas e vapores estridulavam com impetuosidade», em suma: «foi um momento de entusiasmo e alegria», lê-se na «Gazeta de Olhão», de 25 de junho.

A vila engalanou-se e vários edifícios foram iluminados. Na manhã seguinte, alvorada pela Filarmónica de Loulé, bodo a 500 pobres, abrilhantado pela mesma banda.

Às 16h00, cortejo onde se incorporavam alunos das escolas, as autoridades locais, bem como a maioria das coletividades de Olhão, com os seus estandartes.

Findo o cortejo, por entre ruas engalanadas com colchas e bandeiras, teve lugar um comício, a partir do edifício da Junta de Freguesia, em cuja janelas se encontravam entrelaçadas as bandeiras de Portugal e do Brasil.

Apesar de convidados os «doutores de Olhão» para discursarem, estes não compareceram, originando uma crítica cáustica daquele jornal.

À noite, teve lugar um concerto musical na Avenida da República, ornamentada com bandeiras e iluminada com 800 tigelinhas a cores, bem como com balões venezianos, o que lhe dava um «aspecto feérico», vários edifícios estavam também iluminados e decorados.

Para a «Gazeta de Olhão», em sinal de «regozijo pela conclusão de tão brilhante e arrojada façanha», a vila «vestiu gala geral n’este dia, poucas vezes vista e tão sincera, tão cheia de entusiasmo».

 

Por sua vez, ali próximo, em São Brás de Alportel, e seguindo agora o «Correio do Sul», conhecida a notícia, estalejaram foguetes e morteiros, repicaram os sinos, percorrendo a filarmónica local as ruas vila, «seguida de muito povo que aclamava delirantemente os dois aviadores, a Pátria e a República».

À noite, queimaram-se muitas barricas de alcatrão, diversos edifícios encontravam-se iluminados, com destaque para o dos CTT, houve ainda fogos soltos. No dia 18 realizou-se uma sessão solene na Câmara, na qual discursou o Dr. Vitorino Passos Pinto, bem como foram lidas poesias patrióticas.

A sala estava vistosamente decorada, com relevo para «os bustos da República e dos dois gloriosos aviadores, obra em barro modelada pela delicada artista D. Rosalina Passos».

Após a reunião, cuja ata foi assinada por toda a assistência, teve lugar um cortejo cívico, que ao som do hino nacional percorreu as ruas da vila, no qual se incorporou toda a sociedade local.

No dia seguinte, segundo o Diário de Notícias, o vereador Lopes Rosa recebeu na Fonte do Bispo, das mãos do pai do «sábio aviador», um retrato de Gago Coutinho «para a Câmara Municipal de Alportel».

Já o sambrasense António Martins Sancho ofereceu, nessa noite, um jantar aos pobres da Casa da Caridade local.

Em Loulé, as celebrações não divergiram. Conhecida a notícia às 16h40, subiram ao ar foguetes e morteiros, repicando festivamente todos os sinos. Pouco depois saíram as filarmónicas Artistas de Minerva e União Marçal Pacheco, as quais percorreram as ruas acompanhadas de «inúmeras pessoas de todas as classes, que entusiasticamente aclamavam os aviadores, a pátria, a república, etc. tendo todo o comércio fechado as portas».

Em muitas janelas viam-se bandeiras nacionais e algumas do Brasil. À noite edifícios iluminados e concerto na Praça da República, pela Artistas de Minerva. No outro dia, sessão de homenagem no cine-teatro, às 15h00, com discursos patrióticos de várias personalidades.

 

Na Roma algarvia, Tavira, a notícia chegou às 16h30, a partir de Vila Real de Santo António, que a recebera do Cabo Submarino.

Imediatamente, os edifícios públicos hastearam a bandeira nacional, repicando os sinos festivamente e, de acordo com o DN, «foram queimados muitos foguetes e morteiros».

À noite, foi organizada uma marcha luminosa, acompanhada pela filarmónica local 1º de Janeiro.

Na cidade, vários oradores dissertaram sobre o momento festivo, a partir do edifício dos correios, câmara, quartel, residência do cônsul de Espanha, associação comercial e escola Jara, sendo todos os discursos, de acordo com o «Correio do Sul», «calorosamente aplaudidos».

Os nomes dos aviadores, de Portugal, do Brasil, República, marinha e exército foram «constantemente vitoriados e vivamente aclamados».

Não muito longe, na Fuzeta, repetiram-se os foguetes e morteiros e à «noite o Grupo Musical Fuzetense 22 de Maio percorreu as ruas tocando o hino e indo cumprimentar a capitania do porto, onde foi oferecido um copo de água», registou o DN.

Já em Vila Real de Santo António, conhecida a boa nova, «de todos os pontos subiam ao ar grande número de foguetes e morteiros. Os sinos repicaram e as “sirenes” das fábricas e dos barcos surtos no Guadiana, ouviram-se durante uma hora», conforme reportou o jornal «Folha de Alte».

Das janelas da Câmara houve discursos, tal como à noite no Grémio e na Sociedade Democrática. Todos os edifícios públicos, sociedade e alguns particulares foram iluminados.

Nessa noite, a filarmónica local percorreu as ruas da vila, «acompanhada de muito povo que victoriava os heróicos aeronautas, a Pátria, a República, etc.», lê-se no mesmo quinzenário.

 

 

A Barlavento, em Portimão, a novidade, de acordo com o DN, «causou grande contentamento na população», houve iluminação e música num coreto armado no cais.

Para o correspondente do «Correio do Sul», viam-se nos rostos de alguns portimonenses «sinaes da maior felicidade e lágrimas de orgulho».

A Câmara iluminou a fachada, juntamente com edifícios particulares, sendo durante a noite lançados muitos foguetes e morteiros.

Já na Mexilhoeira Grande, «queimaram-se foguetes, e os sinos repicaram durante horas», percorrendo as ruas um grupo musical.

Na antiga capital do Algarve, em Silves, o telegrama chegou cerca das 16h30 e logo «correu por toda a cidade um alvoroço intenso de alegria, queimando-se muitos foguetes, e saindo para a rua muitos dos habitantes», lê-se no «Voz do Sul», de 18 de junho.

Às 18h00, a banda musical silvense iniciou a arruada, em manifestação, entoando o hino nacional pela cidade, vindo esta a terminar junto à Praça do Município.

À noite, diversas manifestações de regozijo, queimando-se fogos de artifício, bem como foguetes e morteiros.

Na cidade, a 11 de junho, uma comissão já havia agendado os festejos para os dias 25 e 26 do mesmo mês. Os quais contaram com a presença do governador civil e consistiram numa sessão solene nos paços do concelho, jogos florais e de futebol, sarau de música, baile, iluminações noturnas, etc.

Armação de Pêra também solenizou o momento, tendo para o efeito criado uma comissão organizadora, composta por «Patrício, Gomes, Simão», enquanto na sede de freguesia, em Alcantarilha, «a povoação está em festa. Os sinos repicam e no ar estalam centenas de foguetes», noticiou o DN.

Por sua vez, em Lagoa, e segundo o mesmo diário, «vai grande entusiasmo (…). A notícia foi recebida com salvas de morteiros e girândolas de foguetes».

Na Sociedade Ateneu, «foi servida uma taça de Champagne, erguendo-se vivas a Sacadura e Coutinho, á Pátria, á República e ao Chefe de Estado», preparando-se mais iniciativas para os dias seguintes.

Em Lagos, a novidade chegou às 16h45 e logo o coração dos lacobrigenses «pulsou com maior vehemencia, como os de todos os verdadeiros portugueses», lê-se no «Correio do Sul».

Nas janelas da Estação Telegráfica, foram colocadas várias bandeiras, assim como na capitania do porto, tal como em outros edifícios públicos e particulares.

A maioria do comércio encerrou as portas, à exceção das mercearias, motivando uma reprimenda do correspondente.

Pelas 21h00, a cidade foi percorrida por uma marcha «aux flambeaux», acompanhada pela banda do regimento de infantaria 33, tendo os soldados formado «alas com archotes imprimindo um aspecto um tanto atraente».

Depois e encontrando-se já agendado um espetáculo a favor dos Padrões da Grande Guerra no Cine-Teatro Ideal, o mesmo ganhou outra solenidade com o momento prazenteiro que se vivia, onde pontuaram discursos, apresentação de fitas cinematográficas, representação do drama «A Pátria», exercícios de esgrima, entre outros.

Os albufeirenses também celebraram o acontecimento. Assim, a 19 de junho, a Câmara de Albufeira efetuou uma sessão solene numa sala da autarquia, onde discursou o presidente, o juiz e o chefe de secretaria.

No mesmo dia, numa outra sala dos paços do concelho foi distribuído um bodo aos pobres.

Já à noite, teve lugar uma «marcha aux flambeaux», acompanhada pela filarmónica de Paderne, que também assistira à sessão solene, lê-se no «Correio do Sul», de 2 de julho.

Segundo «O Século» houve ainda festejos em São Bartolomeu de Messines, Monchique, Aljezur e Marmelete, tal como em Alte, e em praticamente todas as localidades algarvias e do país, acrescentamos nós.

 

Se é certo que a memória destas celebrações se perdeu na voragem do tempo, houve autarquias que homenagearam os aviadores na toponímia, perdurando até hoje.

Por exemplo, S. Brás de Alportel atribuiu-os logo a 8 maio de 1922, seguindo-se Silves, que o fez em São Bartolomeu de Messines, a 30 do mesmo mês, e Loulé, a 21 de Junho. Já em Lagos, eles foram descerrados aquando do cinquentenário da viagem em 1972.

Sacadura Cabral perdeu a vida a 15 de novembro de 1924, no Mar do Norte, ao comando de um avião, quando já traçara um novo projeto, a circum-navegação pelo ar.

Gago Coutinho faleceu a 18 de fevereiro de 1959 e, por não ter hostilizado o Estado Novo, ao contrário de Sarmento Beires (um outro pródigo aviador que viajou, juntamente com Brito Pais, em 1924, até Macau, injustamente ostracizado e esquecido), recebeu as honrarias do regime.

Em 1963, o seu nome foi atribuído ao aeroporto de Lourenço Marques, hoje Maputo, em Moçambique, que o manteve até à independência.

Volvido um século da épica viagem, efusivamente celebrada no Algarve, um grupo de algarvios promoveu uma campanha para que o nome de Gago Coutinho fosse atribuído ao Aeroporto Internacional de Faro, como homenagem ao egrégio aviador com pais algarvios, que, juntamente com Sacadura Cabral, escreveu o nome de Portugal na história da navegação aérea mundial há 100 anos, uma justa homenagem.

E a atribuição desse nome foi mesmo aprovada em Conselho de Ministros esta quarta-feira, como o Sul Informação noticiou.

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições manteve-se a ortografia da época.

 
 

 



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