A transição digital e o crescimento do universo colaborativo

Também o setor empresarial e a responsabilidade corporativa terão de responder às novas exigências do paradigma tecno-digital

A transição digital implica, como sabemos, a existência de infraestruturas de banda larga, a promoção de uma cultura digital disseminada feita de plataformas tecnológicas, redes sociais e sistemas de comunicação interativos, programação e software com acesso livre, start-ups e modelos de negócio abertos.

O universo colaborativo, por sua vez, contempla uma gama muito variada de serviços comuns e partilhados: os consumos colaborativos de recursos ociosos, a produção social pelos pares, os serviços partilhados pelas comunidades de utilizadores, o financiamento participativo, os espaços comuns de criação criativa, a aprendizagem e formação colaborativas, o uso de moedas criativas, entre muitos outros empreendimentos da economia colaborativa.

Esta extensa área da economia de bens comuns partilhados é, por enquanto, uma miragem, pois o capitalismo popular e cognitivo da sociedade do conhecimento está muito longe de ter atingido a sua velocidade de cruzeiro.

O que temos neste momento é o gigantismo capitalista dos grandes conglomerados tecnológicos GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon) e NATU (Netflix, Airbnb, Tesla, Uber) e a corrida desenfreada de pequenas empresas start-up que buscam chegar o mais rapidamente à condição de unicórnios (valorização de mil milhões de dólares) para serem vendidas e fazerem fortuna rapidamente.

Seja como for, a transição digital em curso já provoca a desmaterialização e desintermediação das áreas comercial e institucional/administrativa e o setor da administração pública, em particular, passará por uma profunda reorganização e muitas das suas atividades de rotina transitarão diretamente para os clientes/utilizadores que operam em linha nos dispositivos digitais através de operações e procedimentos colaborativos e cooperativos de partilha.

O mesmo se diga do grande setor da solidariedade social que poderá ser adjudicado por associações com estatutos diversos, do setor do ambiente e da economia circular e, também, o setor da cooperação e desenvolvimento com países terceiros.

A estes setores juntemos duas grandes áreas com marca cosmopolita muito impressiva, a educação e investigação científica e tecnológica e todo o setor das atividades criativas e culturais, já para não falar do trabalho de voluntariado que geralmente acompanha muitas destas atividades.

No plano político-administrativo, sabemos que a economia capitalista convencional socializou os prejuízos e privatizou os benefícios. Agora, com a transição digital, há muito espaço para o crescimento dos bens colaborativos coproduzidos em redes e plataformas distribuídas e em comunidades online e, desta vez, fica apenas por saber qual é a parcela que é interiorizada pelo universo colaborativo no conjunto dos já famosos efeitos externos negativos que o Estado socializou por via do contribuinte e burocratizou por via da administração pública. Esta é, talvez, a interrogação mais pertinente que podemos fazer nesta altura, pois estou seguro de que o universo colaborativo crescerá imparavelmente.

De resto, na retaguarda deste movimento de longo alcance os sinais já aí estão. O Estado Social, por razões de dívida e sustentabilidade financeira, reduzirá cada vez mais o emprego público, substituindo funcionários públicos pela coprodução de serviços e por serviços em regime de outsourcing.

A economia social e solidária (IPSS), devido a uma contração nos subsídios públicos, reduzirá o emprego social e muitas das suas funções serão externalizadas para as comunidades locais do universo colaborativo. A economia privada, devido à automatização e à concorrência dos mercados globais, reduzirá o emprego convencional e externalizará muitas tarefas que passarão a ser oferecidas pela economia outsourcing para onde se transferirão muitos trabalhadores em regime intermitente e de freelance, como é o caso do grande setor das atividades culturais e criativas.

Por sua vez, o movimento start-up irá incubar inúmeros projetos empresariais e muitos ficarão em compasso de espera aguardando uma segunda oportunidade.

A evolução deste universo colaborativo passará por várias fases. Numa primeira fase, nas margens do sistema instituído, sob a forma de responsabilidade social e ambiental, será uma espécie de estaleiro de cuidados intensivos, uma enorme placa giratória por onde circularão os deserdados da sorte, os mais aventureiros, os que estão em compasso de espera e, também, uma boa parte deste nomadismo cosmopolita em busca de novas experiências. Num segundo momento, de forma mais organizada, à medida que os nativos digitais e os empreendedores tecnológicos e sociais assumirem o controlo da situação nas suas próprias mãos, com muito menos economia de estado e muito mais economia partilhada e colaborativa.

Neste contexto, a grande inovação do universo colaborativo é o acréscimo de eficácia e eficiência introduzido pela transformação digital nas áreas habitualmente institucionalizadas e burocratizadas, mas, também, a devolução da responsabilidade social aos cidadãos e à sociedade civil, ou seja, podemos promover a desindustrialização social e reduzir substancialmente as burocracias sociais que vêm do século passado.

Notas Finais

Tudo leva a crer que a transição tecno-digital nos conduzirá a uma sociedade de regimes socio-laborais muito diversos e flexíveis, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime contributivo e colaborativo, sob muitos formatos e condições, se quisermos, uma sociedade onde o individuo se produz a si próprio.

Quer dizer, ao passarmos do emprego para a empregabilidade e do trabalho para a prestação de serviços, estamos, verdadeiramente, a revolucionar o mercado do emprego e do trabalho, isto é, estamos a preparar um campo de cultura onde se cultivam perfis profissionais com o objetivo de aumentar a empregabilidade e não deixar ninguém para trás enquanto procura uma ocupação que corresponda melhor às suas expetativas.

Se formos capazes de entender e praticar esta inovação estrutural no universo laboral e colaborativo estaremos perante uma verdadeira revolução nos mercados e políticas ativas de emprego.

Em primeiro lugar, a atual bipolarização do mundo do trabalho poderá ser desbloqueada, em segundo lugar, os macjobs e o trabalho intermitente serão bem-vindos, em terceiro lugar, as instituições de ensino profissional, técnico e superior, poderão praticar uma política de portas abertas e facilitar o melhor regime de empregabilidade e formação, em quarto lugar, todos estes perfis ocupacionais, uma vez validados pelas autoridades públicas no âmbito de um regime de flexissegurança, garantirão um direito fundamental de proteção social para lá da mera condição laboral em cada momento, finalmente, a revisão do direito fiscal promoverá e facilitará o melhor regime de pluriatividade e plurirrendimento no quadro do trabalho intermitente e do trabalho independente.

Por último, também o setor empresarial e a responsabilidade corporativa terão de responder às novas exigências do paradigma tecno-digital, em especial, no que diz respeito às novas métricas de certificação ESG (responsabilidade ambiental, social e corporativa), onde se incluem as boas práticas de economia circular, os novos regimes de trabalho flexível e as áreas de boa governança corporativa.

 
 

 



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