Marta Setúbal (LIVRE): «Pandemia mostrou que o turismo, tal como existe no Algarve, é insustentável»

«No Algarve, falta ativar a população para a participação cívica quotidiana. Falta incluir a população em tudo»

Marta Setúbal, de 36 anos, nascida e residente em Vila Real de Santo António, é arquiteta e investigadora. Estudou em Lisboa e viveu 11 anos em Berlim, estando agora a fazer o seu doutoramento em Arquitetura dos Territórios Metropolitanos Contemporâneos, no ISCTE. É também a cabeça-de-lista do LIVRE às Eleições Legislativas de 30 de Janeiro, pelo círculo do Algarve.

Com esta entrevista, prossegue a série de entrevistas que o Sul Informação está a publicar, com todos os cabeças-de-lista de todas as forças políticas que se candidatam pelo círculo eleitoral do distrito de Faro.

A todos, e numa lógica de igualdade de oportunidades, foi enviado, atempadamente, um mesmo questionário com 12 perguntas.

As respostas são, naturalmente, diversas, como ficará claro ao longo dos próximos dias, com a publicação de todas as entrevistas.

 

Sul Informação – Quais são as prioridades da sua força política para a próxima legislatura para o Algarve?

Marta Setúbal – Sustentabilidade ambiental/ecológica: Combater (e preparar a região para) a escassez hídrica, aprofundada pelas alterações climáticas, e pensar o território de uma forma integrada.
Sustentabilidade económica: Criar diversidade económica, fomentando a economia local, solidária e colaborativa e apoiando a criação de cooperativas e de empresas com maior participação dos trabalhadores nas decisões, que garantam o desenvolvimento ecológico e sustentável.
É essencial quebrar a dependência do turismo e o desemprego sazonal, transformando o Algarve numa região economicamente mais resiliente.
Sustentabilidade social: Garantir habitação digna capaz de servir como base para uma vida livre.
Planear uma rede de transportes abrangente e inclusiva, para permitir acesso a Trabalho, Saúde, Educação e Cultura, dentro da região e em ligação às regiões vizinhas.
Pensar as necessidades básicas numa lógica de proximidade.

SI – O que levou a que aceitasse ser cabeça de lista pelo partido ou força política que representa?

MS – No LIVRE, os cabeças-de-lista são escolhidos através de eleições primárias abertas, nas quais todos os membros, apoiantes e simpatizantes do partido podem votar, ao invés de serem indicados pela direção partidária, como acontece nos outros partidos.
Esta é uma das formas em que o LIVRE pratica internamente aquilo em que acredita, com o objetivo de aproximar a política das pessoas, incentivando-as a participarem nos processos de decisão.
Estas eleições aconteceram inesperadamente e, com todos os processos que existem dentro do LIVRE (primárias abertas, um programa construído colaborativamente, um congresso obrigatório pré-eleições para aprovar o programa, etc.), uma grande parte dos camaradas do Algarve decidiram, em conjunto, candidatar-se às primárias, para mostrar que o Algarve está bem LIVRE, comprometendo-se a aceitar a ordem escolhida por quem votou.
Fiquei em primeiro lugar e, por isso, calhou-me a mim assumir esse papel. Não tinha como não aceitar.
Qualquer um de nós o teria feito, com a certeza de ter todo o resto da lista a apoiar no dia-a-dia até às eleições – e mais além.

SI – Quais são as expetativas e objetivos da sua força política em relação a estas Eleições Legislativas?

MS – O LIVRE deseja que estas eleições sejam muito participadas, que as pessoas entendam que o LIVRE é a alternativa verdadeiramente sustentável para a sociedade e que – por isso – votem LIVRE.
A cada crise por que passamos fica mais claro que é urgente espalhar a mensagem do modelo de desenvolvimento integrado que o LIVRE defende: por uma sociedade profundamente democrática, igualitária e ecológica.

SI – O que falta fazer no Algarve?

MS – No Algarve, falta ativar a população para a participação cívica quotidiana. Falta incluir a população em tudo: nos processos de decisão, nas fases de conceptualização, desenvolvimento e concretização de propostas e também no usufruto dos projetos em si.
Por um lado, o trabalho sazonal e a grande concentração no turismo não ajudam a esta participação: no Verão, grande parte dos trabalhadores não tem disponibilidade; os eventos culturais são não só pensados para turistas, como também acontecem quando a população local está mais ocupada. Isto cria uma dificuldade à população algarvia em organizar-se regularmente, em criar associações e mantê-las no dia-a-dia, porque chega uma altura do ano em que ninguém tem tempo.
Por outro lado, é extremamente necessário combater o afastamento e a desilusão que grande parte das pessoas sente em relação à política e aos políticos.
Nisto, os partidos têm a maior responsabilidade: são eles a causa principal desta desilusão.
O LIVRE não só se propõe fazer política de forma diferente, transparente, partilhada e participada (longe de tacticismos, politiquices e jogos de poder), como também pratica internamente esta forma de fazer política.
Aproximamos os nossos membros e apoiantes de todas as decisões e abrimos os nossos documentos, processos e reuniões a toda a gente.
Para além disto, o LIVRE apresenta, no seu programa, todo um capítulo sobre Democracia, com uma série de medidas para aprofundar a democracia e a cidadania, e todo um outro capítulo sobre Combate à Corrupção: acreditamos que a política deve ser transparente e a informação deve estar facilmente acessível a todos os cidadãos, para que estes possam escrutinar quem elegem.
É com mais pessoas e com mais democracia que se combate a corrupção e os abusos de poder. A democracia e o Algarve só ficam a ganhar se as pessoas algarvias participarem mais.
Provavelmente, é o que falta para caminharmos em direcção a uma região verdadeiramente sustentável de todos os pontos de vista.

SI – A Saúde é um setor deficitário no Algarve e no país. Que medidas preconiza para resolver os problemas da Saúde no Algarve?

MS – 1 – Dar atenção à Saúde Mental: é urgente, por um lado, concretizar a implementação do Programa Nacional de Saúde Mental e é urgente, por outro, desmistificar as doenças mentais e formar as pessoas para a importância de um bem-estar físico e mental. Temos de nos sentir bem connosco. Só assim conseguimos prosperar.
2 – promover uma Saúde mais próxima e mais humana, através de um serviço menos centralizado e mais espalhado pelo território, com bons meios de diagnóstico, com uma resposta adequada a situações urgentes e que nos conheça e nos saiba aconselhar.
3 – Saúde no quotidiano: É preciso compreender a Saúde como algo muito mais abrangente do que hospitais, centros de saúde e mero tratamento de doenças.
É preciso prevenir o aparecimento de doenças e integrar a saúde no quotidiano da população: educar para a saúde, promover uma boa condição física e uma alimentação saudável, trabalhar saudavelmente, ter tempo para descontrair, conhecer pessoas e lugares, aprender, pensar… tudo isto tem implicações na nossa Saúde, física e mental.
4 – colmatar a falta de profissionais de saúde: É preciso dignificar e promover a permanência dos profissionais no Serviço Nacional de Saúde.
Isto pode ser feito de muitas maneiras, nomeadamente com uma melhoria da situação contratual, mas também é imprescindível atuar a um nível mais humano, por exemplo, favorecendo o trabalho em equipas fixas e estáveis ou implementando políticas de prevenção da própria saúde mental dos profissionais de saúde.

SI – E quanto ao Hospital Central do Algarve? Quando deve avançar e porquê?

MS – O Hospital Central do Algarve é parte de uma rede muito mais abrangente de estruturas do SNS e estas devem ser pensadas em conjunto, da forma mais sustentável.
Assim como a Saúde de proximidade deve ser reforçada, para que sejam evitados a tempo problemas maiores e para que não tenham que existir muitas deslocações a um hospital central, também é importante este Hospital Central existir, porque incluirá funções que não podem ser distribuídas por toda a região de forma sustentável.
É, por isto, imprescindível que se planeie o quanto antes a melhor forma, o melhor lugar e o melhor tempo para o Hospital Central do Algarve, incluindo neste planeamento as contribuições de toda a comunidade de utilizadores do SNS: tanto utentes como profissionais da Saúde.

SI – O Governo anterior avançou com a Descentralização de Competências para os Municípios. Que balanço faz desse processo?

MS – Como na maior parte das situações, é extremamente relevante a forma como é efetuada a Descentralização de Competências para os Municípios e as circunstâncias específicas de cada Município.
Em alguns sítios, o processo ainda está a começar e é, por isso, difícil avaliar se a estrutura organizativa autárquica é capaz de se adaptar em tempo útil às novas responsabilidades e se existem, efetivamente, verbas adequadas para tal.
Para municípios mais estáveis, a descentralização de competências é uma oportunidade para demonstrar capacidade em gerir diretamente algumas das estruturas mais relevantes para a população, nomeadamente a educação e a saúde.
Por princípio, devemos operar politicamente na menor escala capaz de gerir o serviço público eficazmente.
Para tal decorrer da melhor forma, é necessário apostar fortemente na capacitação das autarquias e nas pessoas que, no dia-a-dia, lidam com os problemas locais e garantir que o município dispõe das verbas necessárias à boa gestão daquilo sobre o qual assume responsabilidade.
A descentralização tem de ser vista na perspetiva de uma progressiva delegação de poderes aos níveis mais locais e num fortalecimento de uma democracia empenhada em promover a participação cidadã.

SI – Um futuro Governo deverá avançar com a Regionalização? Porquê ou porque não?

MS – Sim, sem qualquer dúvida. É um processo que está na Constituição e representa uma escala de decisão intermédia, entre o poder local municipal e o âmbito nacional, que é extremamente necessária para uma coesão territorial.
Este nível regional deve ser votado e escrutinado de perto, permitindo aproximar a população das decisões tomadas a esta escala, muitas vezes ignorada.
As CCDR, que funcionam mais ou menos à escala das regiões propostas, têm os seus representantes escolhidos exclusivamente pelos presidentes de Câmara, deixando os cidadãos de fora desta decisão, dando lugar a possíveis jogos de interesses e – ainda – barrando a participação a atores fora do interesse dos dois partidos do centro, que detêm as presidências de quase todas as Câmaras Municipais – sendo, por isso, os únicos a decidir.
O LIVRE propõe, no seu programa, “Regionalizar com eleição direta, sendo que o processo de regionalização deve ser sujeito a referendo” (proposta 18.7, capítulo “Democracia”).
Enquanto o processo de regionalização não avança, o LIVRE propõe “Reorganizar e coordenar os serviços desconcentrados a partir das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, integrando as funções que hoje já detêm – planeamento regional, ordenamento do território, ambiente e gestão de fundos estruturais – com as de educação, cultura e economia, incluindo a agricultura” (proposta 9.3, capítulo “Coesão Territorial, Transportes e Mobilidade”).

SI – Na Assembleia da República, têm-se sucedido as resoluções para acabar com as portagens na Via do Infante ou, pelo menos, para introduzir descontos significativos. O que pensa deste tema e que soluções preconiza?

MS – Há a questão, desde o início, de a Via do Infante ter sido construída com dinheiros europeus e não ser suposto ter portagens.
Para quem se move dentro do Algarve, é difícil 1) não ter carro e 2) tendo carro, não usar a Via do Infante, a não ser que tenha todo o tempo para viajar na EN125, que foi sendo tornada cada vez mais lenta, precisamente para canalizar o trânsito para a Via do Infante, na altura grátis.
O pensamento sobre a mobilidade no Algarve não deve estar, no entanto, concentrado nas portagens da Via do Infante, mas sim no sistema de mobilidade sustentável que queremos para a região (incluindo na ligação com as outras regiões do país e também de Espanha) e que inclua uma rede de transportes públicos coletivos e de transportes individuais suaves.
É necessário pensar também o uso do carro e o que queremos dele, sendo que o ideal seria ter um sistema de transportes tão eficiente e eficaz, que tornasse o uso do carro dispensável e até indesejável.
Para isso, é essencial concretizar a atual empreitada de modernização da Linha Ferroviária do Algarve.
Sabemos que isso, por si só, não chega: no que toca ao transporte ferroviário, esta região tem sido merecedora de muito pouca atenção por parte dos poderes centrais, chegando-se ao ponto de ser mais rápido chegar a Londres de avião, partindo de Faro, do que fazer o trajeto entre Vila Real de Santo António e Lagos de comboio.
A longo prazo, a Linha do Algarve terá de receber não só os novos comboios, entretanto já encomendados, mas também terá de ser equacionada a ligação internacional a Sevilha.
Se a isto somarmos a correção de parte do traçado, poderemos ter ganhos de tempo que tornem o comboio como um meio a ter em conta no dia a dia dos algarvios, sendo naturalmente necessária a articulação com os diferentes meios de transporte já existentes.
Enquanto não o temos, a Via do Infante deve ser livre de portagens, pelo menos para quem trabalha e/ou vive no Algarve, de forma a não ser injusta para com as pessoas. No entanto, é uma situação que terá sempre de ser vista como temporária.

SI – No início da atual crise da pandemia, o Governo anunciou um plano específico para o Algarve, que nunca chegou a ser concretizado. O que precisa o Turismo do Algarve para recuperar da pandemia?

MS – A pandemia mostrou-nos – sem qualquer sombra para dúvidas! – que o turismo, da forma como é praticado no Algarve, é insustentável.
Não só o Turismo tem de se tornar mais sustentável em si, como a economia do Algarve, no geral, tem de deixar de depender só dele.
Em relação ao Turismo, recuperar da pandemia tem de ser tornando o Turismo mais sustentável. E isto não significa limitá-lo a “turismo de natureza”.
É preciso repensar toda a lógica do Turismo no Algarve – e ter em mente que o turismo também ele está a mudar no mundo. Ter uma região inteira dependente de um tipo de turismo de massas, ainda por cima concentrado em muito poucos meses do ano, é tudo menos sustentável.
Por isso, há várias linhas de ação possíveis: diversificar o tipo de turismo; espalhar o turismo pelo ano todo; conectar um pouco mais o turismo aos contextos locais; pensar em estruturas turísticas muito mais descentralizadas, tendencialmente mais pequenas e misturadas com as comunidades locais, as quais também podem usufruir destas estruturas turísticas; pensar o turismo em ligação com a cultura e o património cultural; sair da praia, em direção ao Barrocal ou à Serra, cada um com as suas especificidades, etc…
Quanto mais cedo estruturarmos o turismo da região para ser sustentável, mais resilientes estaremos no caso de existir uma nova pandemia ou outro qualquer acontecimento que feche a região ao Mundo.
Mas, acima de tudo, é urgente diversificar a economia da região, para que esta não dependa exclusivamente do turismo!
O LIVRE propõe, para isso: fomentar uma economia local, solidária e colaborativa, apoiando a criação de cooperativas e de empresas autogeridas pelos trabalhadores que garantam um desenvolvimento ecológico e sustentável; promovendo o comércio local, aplicando uma lógica de compra descentralizada do Estado, que deve passar a comprar nos mercados locais; apoiando o desenvolvimento económico de base social, criando na legislação portuguesa o conceito e reconhecimento de empresa social como aquela que tem como objetivo responder a um problema social e/ou ambiental; apoiando, também, o microempreendedorismo, através da criação de um regime de contabilidade fiscal mais leve, que permita ao microempreendedor aliviar custos; finalmente, criando um grande programa de Formação Empresarial, focado nos vários quadros das empresas, em especial na gestão executiva e intermédia.
Sem a formação adequada não é possível modernizar a economia.

SI – No caso de questões mais fraturantes, como a regionalização, as portagens na Via do Infante e a saúde, entre outras, se for eleito, votará na AR de acordo com a sua convicção, mesmo que vá contra as orientações do seu partido?

MS – Não. A votação será de acordo com aquilo que o partido decide. Agora: as decisões no LIVRE são tomadas pelo conjunto das pessoas que compõem o partido e não por uma direção.
Isto significa que há toda a abertura para, aquando deste tipo de decisões, discutir internamente a questão até ao fim.
Por outro lado, também o LIVRE é um partido da ciência, procurando informar as suas decisões em estudos científicos.
Do partido, como um coletivo, sairá a resposta mais coerente e cientificamente sustentada.
Nestes casos, os camaradas do Núcleo Territorial do Algarve são levados em grande consideração na sua explicação sobre estas matérias, uma vez que são as pessoas mais próximas da região e que, por isso, mais bem a conhecem.
Se, ainda assim, o partido chegar à conclusão de que os camaradas do Algarve não têm razão, será muito provavelmente por questões de natureza científica.
No caso dos temas “fraturantes” que refere, não me parece haver qualquer diferença entre a posição do partido e as minhas convicções.
Pessoalmente, penso que uma pessoa eleita pelo LIVRE deve assumir a sua responsabilidade de charneira entre o partido e o resto da sociedade. Foi eleita por todos os membros, apoiantes e simpatizantes para representar o partido.
No caso – muito raro – de haver uma divergência, a pessoa deputada pelo LIVRE deve votar de acordo com as orientações desse coletivo, podendo sempre fazer uma declaração de voto a dizer que o voto não representa a sua posição pessoal.

SI – Quer acrescentar mais algum tema ou questão?

MS – Sim. Uma vez que falamos de eleições, o LIVRE propõe uma reforma do sistema eleitoral, através da criação de um círculo de compensação, para o tornar mais justo e efetivamente representativo da diversidade política existente no território.
Um partido como o LIVRE precisa de cerca de três vezes mais votos por deputado eleito do que partidos como PS ou PSD.
Isto acontece porque, nos círculos mais pequenos (Faro incluído), grande parte dos votos é desperdiçado (por exemplo, o círculo de Portalegre só elege 2 deputados: normalmente, 1 do PS e 1 do PSD; todos os votos em todos os outros partidos não são representados).
O LIVRE propõe, assim, juntar os votos “desperdiçados” de todos os círculos num grande bolo (chamado Círculo de Compensação), para que estes também se traduzam em deputados eleitos.
Para completar esta medida, o LIVRE propõe ainda que as listas apresentadas pelos partidos sejam semi-abertas, dando a oportunidade de os eleitores, ao votar, escolherem, não só o partido que querem que os represente, como também a ordem dos candidatos dessa lista.

 



Comentários

pub