A história do jornal que nasceu na prisão de Olhão

Por enquanto, o jornal apenas tem sido lido ou pelos reclusos ou pelos familiares, mas um dos objetivos é que salte os muros da prisão

Flávio Gonçalo – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

«Ao despertar do meu sonho/Sozinho e acordado/Enfrentei a realidade/Estava fechado/ Sem dó nem piedade». As palavras são do Fernando, mas também podiam ser do Miguel, que quase cumpriu o sonho de ser um futebolista profissional de topo, do Daniel, do Luís ou do Duarte. Ou ainda do Flávio, o grande dinamizador de uma redação de reclusos que tem escrito “Páginas de Liberdade”, um jornal mensal que nasceu dentro da prisão.

Podem parecer, mas aqueles não são apenas muros feitos de betão.

De um lado, a liberdade; do outro, a solidão, a reclusão, a culpa. E, tantas vezes, o arrependimento.

Há, quando se entra numa prisão, um ambiente diferente: sente-se o peso de saber que ali há pessoas a cumprir uma pena.

Em Olhão, também é assim. São cerca de 60 os reclusos, todos homens. Alexandre Gonçalves, diretor da prisão, vai-nos guiando pelas instalações.

 

Daniel Rafael – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

Num primeiro piso, a parte mais administrativa; no outro, as celas. É por aí que vamos. Entramos por uma porta, aberta por um dos muitos guardas prisionais. Lá ao fundo, uma sala.

Na parede, há um grande painel que comemora o Dia Internacional da Educação nas Prisões, uma das peças chave para a criação do jornal que teve a primeira edição em Outubro. Foi ali, naquele espaço que em tudo se assemelha a uma sala de aula, que um grupo de reclusos, cerca de 10, decidiu que era «tempo de ocupar o nosso tempo».

E assim decidiram, em conjunto com Susana Rodrigues, técnica de RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências Profissionais) e psicóloga na prisão, fundar um jornal, com um nome que fica no ouvido: “Páginas de Liberdade”.

Daniel Rafael chega à sala, senta-se e nem a máscara disfarça o sorriso de passar do papel de entrevistador para entrevistado. É que foi ele, logo na primeira edição, em Outubro, quem entrevistou o diretor do Estabelecimento Prisional.

«Isto é um pouco como saltar o muro da prisão», diz Daniel, questionado sobre como tem sido a experiência de fazer um jornal. «Eu sempre gostei de ler e de escrever e, com este projeto, acabo por conseguir juntar os dois mundos», acrescenta.

Para o seu colega Miguel Costa, a decisão de participar também foi fácil.

«Isto é para o quê mesmo?», questiona mal chega à sala. «Ah, para um jornal!».

 

Miguel Costa – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

A conversa vai fluindo.

«Porquê participar? Eu acho que devemos ser pró-ativos, mesmo enquanto aqui estamos a cumprir a pena», considera.

A sua história de vida é dura: durante anos, foi apontado como uma das promessas do futebol português. Em 1995, sagrou-se mesmo campeão da Europa de sub-16, ao lado de jogadores como Marco Caneira ou Hugo Leal. Fez a formação no FC Porto, rumou ao Marítimo e acabou por ser, na Madeira, detido pela primeira vez.

Saiu, ainda tentou a sorte em clubes como o Olhanense, mas voltou a ser preso. A razão? A mesma das duas vezes: tráfico de droga. «Rodeei-me de pessoas que não devia», resume, amargurado.

No seu discurso, há uma ideia forte: uma exigência que não esconde.

«No fundo, estamos a pagar uma dívida à sociedade e o mínimo que podemos fazer é ganhar competências. Só se fizermos coisas boas é que as pessoas entendem que não somos uns bichos».

Flávio Gonçalo não podia estar mais de acordo.

É ele quem tem assumido a coordenação e fala disso com orgulho. Há alguns anos, já tinha havido um jornal feito ali mesmo, na prisão de Olhão, e Flávio gostou da ideia.

«Essa continuidade cativou-me, tal como a vontade de fazer coisas», conta.

O trabalho foi quase o de uma redação a sério. «Olhe, nós dividimo-nos: uns sabem escrever melhor, outros têm mais jeito para o desenho e ficámos onde mais nos enquadramos», explica.

 

Flávio Gonçalo – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

 

Folheando estas “Páginas de Liberdade”, encontramos um pouco de tudo: há notícias de atividades na prisão, como a visita dos símbolos das Jornadas Mundiais da Juventude, números sobre a adesão dos reclusos ao voto nas Autárquicas, sugestões de leitura, notícias «do mundo cá fora» e uma entrevista por cada edição.

Apesar de ser novidade, o jornal já recebeu uma menção honrosa da Associação Portuguesa de Educação nas Prisões, no âmbito do Dia Internacional da Educação nas Prisões, uma distinção que deu ainda mais alento aos reclusos.

«Isto é uma coisa nova, que nunca tínhamos feito, e que nos está a cativar mesmo muito», garante Flávio, que também faz questão de mostrar a nova tatuagem que fez, numa recente saída, de precária.

«Um amigo meu morreu e é uma maneira de o homenagear», conta.

Tal como Miguel, Flávio está detido pela segunda vez. «Na primeira vez, foi por assalto à mão armada, agora por furto», diz.

Esse tempo, esses erros, não o impedem de já pensar no que será a vida longe das grades da prisão.

«Quando sair daqui, vou-me dedicar ao mar, aos meus viveiros, mas o certo é que este jornal tem sido uma excelente experiência. Quem diz que não se faz nada na prisão, é mentira. Só não faz quem não quer, quem não se deseja enquadrar na sociedade», considera.

Em todo este processo, há um nome que se repete: Susana Rodrigues.

É ela a técnica de RVCC (além de psicóloga) que, em conjunto com o Centro Protocolar da Justiça (CPJ), ajudou a montar o jornal. Os reclusos não a esquecem. Nem ela, deles.

«Costumo dizer que, apesar de nunca ter pensado trabalhar num Estabelecimento Prisional, esta tem sido uma experiência muito gratificante. Estas pessoas são mais do que apenas o crime que cometeram», diz, ao Sul Informação. 

O seu trabalho passa por permitir o acesso aos computadores, que não existem na prisão, e por ajudar em tudo o que for preciso.

«Eles sugerem temas, eu faço pesquisas em casa e levo-lhes para depois trabalharem a partir daí. Posso dizer que eles têm aderido muito bem às atividades. Os reclusos diziam-me que tinham falta de mais qualquer coisa para se ocuparem e tem sido ótimo», considera.

É dessa necessidade que fala Duarte Ruivo, detido por tráfico de droga. «Como isto é uma atividade positiva, cativou-me logo desde o início. Passamos o tempo e torna-se engraçado até ao nível do convívio», diz.

Desde que foi preso – e também por influência do jornal -, Duarte descobriu uma nova paixão: a leitura, atividade que o tem «ajudado muito».

Logo na primeira edição do “Páginas de Liberdade”, é dele uma sugestão de livro: “Hotel Magestic”, de J. G. Farrel, autor que venceu Man Booker Prize, em 2010.

O romance passa-se em 1919, tem a I Guerra Mundial como cenário e é recomendado por Duarte Ruivo, especialmente «pelo seu desfecho inesperado».

«Lá fora, não tinha grande tempo para ler, mas, cá dentro, foi-me cativando. Ler jornais era algo que fazia, de vez em quando, mas é um gosto que ficou reforçado. A verdade é  que estes projetos ajudam à reinserção e abrem-nos os horizontes», diz, sorridente.

 

Alexandre Gonçalves – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

Alexandre Gonçalves vai ouvindo todos os depoimentos. Diretor do Estabelecimento Prisional, conhece bem os reclusos e fala num projeto que quase serve «de tábua de salvação».

«Eles estão em processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências – o tal RVCC – e viram aqui uma oportunidade para dar asas às suas ideias e preparar, ao fim e ao cabo, a sua própria reintegração na sociedade», explica.

Esse é mesmo o grande objetivo de qualquer atividade que se faça dentro da uma prisão.

«O que nós queremos é que nunca voltem a entrar e que tenham uma vida digna. A privação da liberdade é daquelas coisas que só conhecemos quando perdemos», diz.

Por enquanto, o jornal apenas tem sido lido pelos reclusos ou pelos familiares, mas um dos objetivos é que salte os muros da prisão, tão difíceis de derrubar em todos os sentidos.

«Todos os que participamos, é tudo boa gente. Todas as nossas histórias são engraçadas: convivemos, discutimos ideias, partilhamos coisas. Isto ficará para sempre marcado. Vamos sempre ser o grupozinho que fez o jornal», diz Flávio, já quase em fim de conversa.

 

Estabelecimento Prisional de Olhão – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

Por momentos, saímos da sala para tirar uma foto num dos corredores.

Flávio segura em duas das edições do jornal – uma em cada mão. Regressados, explica que não quer falar sobre as próximas edições. «O segredo é a alma do negócio», afirma, entre risos.

Despedimo-nos com uma frase forte: «este jornal é uma mensagem para o exterior também», diz o jovem recluso.

Talvez os muros, um dia, sejam só isso mesmo: pedaços de betão.

 

 



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