Uma viagem ao interior da terra…que foi mar

Descer à Mina é uma fonte quer de singular experiência imersiva, quer de informação acerca de nossa Casa Comum

Mina de Sal Gema de Loulé – Foto: Filipe da Palma | Sul Informação

Da leitura das palavras de Zola em Germinal (1885), de Orwell em O Caminho para Wigan Pier (1937) e de Helena Alves em Mina de S. Domingos – Génese, Formação social e Identidade Mineira (1997), nada é possível de reter na tentativa de estabelecer um paralelo para com a vívida experiência de submersão na Mina de Sal Gema em Loulé.

Numa pequena jaula onde cabem somente sete pessoas, confiamos a vida a Márcio que, com profissional sensibilidade – sabendo ler as marcas nos cabos e sentindo nas mãos o percurso metro a metro, nos faz descer ao interior da Terra. Assim, durante cerca de quatro minutos, submergimos até aos 230 metros de profundidade, sendo que os últimos 30 se situam abaixo do nível do mar.

Durante a descida, desde logo se diluem e desaparecem os referentes do iluminado mundo à superfície, sendo possível experienciar a falta de padrões a que estejamos ancorados.

Pela velocidade da descida, fugazmente iluminados pelos fracos e direcionáveis feixes de luz dos capacetes de proteção, sucedem-se rasgos de matérias e de trabalhos em nós não inscritos. Um mergulho de 230 metros num poço escavado pelo engenho humano revela e expõe à nossa retina um parágrafo da História Maior, do tempo presente até há cerca de 230 milhões de anos.

Suavemente, a jaula assenta em seu destino, as grades abrem-se e passamos para uma galeria que serpenteia por cerca de 40 quilómetros, em dois andares, em linhas paralelas e perpendiculares, ocupando cerca de 240 hectares, sendo que, em vários pontos, se situam abaixo das ruas e vidas da cidade de Loulé.

Tendo tido a oportunidade de já ter descido por quatro vezes ao interior da Mina – sendo que, na sua quase totalidade, fui acompanhado pelo engenheiro Alexandre Andrade, homem que, além de possuir vasto conhecimento geológico e em particular da geologia específica onde nos encontramos, tem a capacidade inata de nos contagiar pelo discurso, relacionando e articulando de forma fluida os elementos geológicos e a história da mina – sempre algo de seminal vivência, algo de espanto, caracteriza cada descida.

 

Fotos: Filipe da Palma | Sul Informação

Passamos do apertado espaço da jaula para vastos corredores escavados em sal. De facto, quer o chão, quer as paredes, quer o tecto são escavados em domo salino.
Com cerca de quatro metros de altura e 10 de largura não se vislumbra uma viga, uma escora que seja, pois a pressão a que o sal foi submetido ao longo de largos milhões de anos e a ausência de humidade tornaram esta matéria bastante consistente.

Foi extraída até 1989 à força de explosivos e hoje através de uma máquina roçadora que procede ao desmonte, através de uma cabeça rotativa, munida de bicos de corte, cuja composição é de aço carbono enriquecido com tungsténio, assemelhando-os, no comportamento, ao dos diamantes industriais.

Por mero acaso, na década de 50 do passado século, num exploratório furo em Campina de Cima (Loulé), que tinha como objetivo descobrir água para aproveitamento de uma quinta agrícola, a água surgiu, porém era salgada…

Trabalhos posteriores vieram a confirmar a existência deste antigo sal que começou a ser explorado em 1966, tendo já decorrido anteriormente todos os preparatórios e necessários estudos que viabilizaram economicamente a exploração, a abertura de dois poços, um de acesso ao interior da mina e outro de extração de minério e de saída em caso de emergência, assim como um necessário túnel de ligação entre os dois.

Um camião carregado de sal, tendo como destino a prevenção e segurança rodoviária ou para uso na alimentação animal (através da sua incorporação nas rações), transporta toneladas de sais minerais, cuja formação data entre 230 000 000 e 150 000 000 de anos.

Sais formados num tempo remoto, em que a disposição da terra firme era muito diferente. Originadas pela ruptura do supercontinente Pangeia, surgiram duas grandes massas continentais, nomeadamente a Laurásia, a norte, e Gondwana, a sul, separadas por um quase interior Mar de Tétis, que, nas suas extremidades, era de pouca profundidade.

Assim, num sistema de relativa baixa profundidade, através da forte evaporação das águas, sais minerais foram-se precipitando/depositando e agregando ao longo do tempo, ano após ano; posteriormente, calcários igualmente se depositaram sobre tais camadas de sal, selando e formando um diapiro com cerca de 1000 metros de espessura, em cujo corpo foram exercidas magnas pressões, levando a uma deformação em direção à superfície.

Para se ter uma ideia acerca da dimensão sobre a qual aqui se escreve: para uma existente e montada capacidade de extração de 100 toneladas por hora, calcula-se que exista uma reserva mineral para mais de 3000 anos de exploração.

 

Fotos: Filipe da Palma | Sul Informação

Ter a oportunidade de integrar uma visita organizada pela Tech Salt SA é ter oportunidade não de ler um livro geológico, um fascículo da Origem, mas de nele mergulhar.

Atualmente, foi criado um percurso com cerca de mil e trezentos metros, ao longo do qual, guias especializados nos contextualizam no espaço, na escala do tempo, nas mutações ocorridas pelo pulsar do planeta.

Imerso em sal, o corpo, através dos olhos, agarra-se às dimensões, às linhas criadas pelas tectónicas forças, às cores que permeiam camadas correspondendo à deposição quer do sal, quer dos sedimentos, ao longo do Tempo.

O tempo é de Descoberta e as importantes informações debitadas por quem nos guia a visita têm dificuldade de em nós permanecer perante o singular desconhecido que nos entra pela visão.

Do espaço da oficina, onde as máquinas necessárias à industria extrativa são montadas (descem às peças pelo elevador) e reparadas; das obsoletas máquinas transformadas em peças museológicas, que permanecem em nichos abertos por onde não compensava o esforço da extração; do percurso pedestre por galerias onde, por vezes, aflora alguma humidade criando salinas estalactites; dos padrões criados pelos movimentos tectónicos nas segmentadas linhas de sal e deposição de sedimentos; das variações de cor que, por contaminação de argilas e outros minerais, enriquecem a sombria paleta, dos padrões criados pela máquina de desmonte na massa de sal, muito há para ver.

Já tendo passado por diversos proprietários, apesar da menor importância comercial extrativa – nos dias de hoje, somente providencia sal para uso rodoviário e para uso nas rações animais – a mina ganhou uma nova valência no âmbito de providenciar uma segura experiência geológica imersiva.

Como ponto de curiosidade, apesar da quase total ausência de humidade e da temperatura se manter nuns amenos 23 graus Celsius, há a diária necessidade de se transportar cinco vezes ao dia, em camião cisterna, milhares de litros de água saturada de sal para tanques de decantação de uma salina situada em Faro (pois que a mesma, vertida em terra, a tornaria estéril).

Ainda antes da existência da mina, numa das passadas sondagens efetuadas, esta atravessou um lençol freático, não tendo sido depois devidamente selada e estancada.

Em 2009, durante trabalhos de exploraçã,o houve um toque com essa antiga sondagem, resultando daí a passagem de água do lençol freático para dentro da mina.

Há, pois, um necessário e dispendioso trabalho por parte da empresa em reunir e direcionar cuidadosamente tal volume de água, saturada de sal, para a superfície.

Descer à Mina, ter a oportunidade de descer à Mina, é uma fonte quer de singular experiência imersiva, em que cada corpo absorve e reage de acordo com a individualidade de cada pessoa, mas igualmente é fonte enriquecedora de informação acerca de nossa Casa Comum, em que se constitui o nosso planeta, o nosso continente, o nosso pais, a nossa região.

 

Fotos: Filipe da Palma | Sul Informação

 

Se quiser visitar a Mina de Sal Gema, clique aqui

 

 

 



Comentários

pub