Modelo-silo, transição digital e gestão do território

A principal tarefa do próximo futuro não é a defesa da corporação, mas o incentivo à cooperação, ou seja, realizar a quadratura do círculo

No final desta década, em 2030, como estarão a economia regional e o mundo rural do Alto Minho, de Trás-os-Montes, do Alto Douro, da Beira Litoral e da Beira Interior, do Ribatejo, do Alto Alentejo ou do Algarve, para mencionar apenas algumas?

O panorama geral é conhecido. Temos instrumentos financeiros substanciais (subvenções e empréstimos) para uma década, grandes transformações estruturais em perspetiva, riscos globais cada vez mais intensos e frequentes, uma transição geracional e uma sucessão empresarial absolutamente imprescindíveis, todavia, não conhecemos uma política regional digna desse nome com a correspondente regionalização funcional dos instrumentos de política dos vários programas temáticos operacionais, nem temos uma estratégia administrativa para a digitalização dos territórios que, finalmente, ponha termo ao modelo-silo, corporativo e vertical, que remete as regiões e as comunidades locais para uma condição de representação subserviente, e tudo isto apesar da consagração constitucional das regiões administrativas.

Como vamos, então, abordar a economia destes territórios? Vamos deixar estas pequenas economias e estes universos rurais ao sabor dos avisos de concurso, mais ou menos aleatórios, que não comunicam entre si para efeitos de planeamento e administração territoriais, vamos perder os efeitos externos positivos dos investimentos e sofrer/protestar apenas por causa dos efeitos externos negativos, vamos deixar ao acaso a interligação entre os investimentos diretamente produtivos e as ações integradas de base territorial, vamos subestimar a introdução das TIC nas nossas explorações agrícolas, redes de extensão rural e formação profissional, associações empresariais e profissionais, enfim, qual o papel que vamos pedir às instituições de ensino superior, aos centros de investigação e aos laboratórios no desenvolvimento da economia regional e rural?

Em todos os casos, julgo ser nosso dever reduzir ao mínimo a imprevisibilidade da trajetória para não ficarmos à mercê de episódios acidentais e ocorrências fortuitas; por isso, julgo fundamental conceber uma estrutura de missão, que seja capaz de ligar as pontas e gerar economias de rede e aglomeração nas conexões entre as sub-regiões e as comunidades intermunicipais. Vejamos alguns dos aspetos mais relevantes desta longa transição.

Existem motivos para estarmos moderadamente otimistas

Não obstante as debilidades estruturais graves que se arrastam no tempo, existem, desta vez, motivos para estar moderadamente otimista na década que agora começa:

– Temos um país cada vez mais pequeno devido às redes digitais de comunicação,
– Temos um país bem servido de vias de comunicação e rede logística,
– Temos muitas instituições de ensino superior espalhadas pelo país,
– Temos muitos centros tecnológicos e laboratórios associados no interior do país,
– Temos imensas estruturas municipais e associativas espalhadas pelo país,
– Temos uma grande variedade de microclimas, mosaicos e amenidades paisagísticas,
– Temos meios financeiros muito substanciais para a década,
– Temos uma mobilidade/ nomadismo digital crescente e modos de vida mais simples.

O hibridismo do espaço rural e os mercados de futuro

Um dos grandes trunfos para a década é o hibridismo do espaço rural, um híbrido de produção, consumo e conservação, que não só alarga os mercados de futuro como a tipologia de agriculturas AAA (agricultura, ambiente, alimentação) e a gama de produtos oferecida. Os mercados de futuro serão um mix cada vez mais complexo de tecnologia, ecologia e economia com uma oferta conjunta de bens e serviços cada vez mais diversificada. Senão, vejamos:

– Os mercados dos produtos limpos e de proximidade,
– Os mercados do sequestro do carbono,
– Os mercados da produção de água,
– Os mercados da biodiversidade e dos serviços de ecossistema,
– Os mercados das amenidades e das artes da paisagem,
– Os mercados dos 4R, reduzir, reciclar, reparar e reutilizar, uma nova economia circular,
– Os mercados de nicho e denominação de origem,
– Os mercados sociocomunitários de institutional food,
– Os mercados da mitigação, adaptação e compensação,
– Os mercados dos alimentos funcionais ao serviço da saúde pública,
– Os mercados da micro geração energética, de poupança, eficiência e diversificação,
– Os mercados da prevenção, contingência, segurança e rastreabilidade dos produtos,
– Os mercados da regeneração e da renaturalização dos recursos e ecossistemas.

Neste enquadramento, as comunidades inteligentes, apoiadas em plataformas digitais colaborativas, podem acolher muitas start up e oferecer uma gama variada de serviços de rede em diversas áreas ligadas entre si, por exemplo:

– Os serviços ligados à agriculturas de precisão e aos modos intensivos de produção,
– Os serviços ligados às agriculturas de nicho, denominações e indicações geográficas,
– Os serviços ligados à logística dos circuitos curtos e mercados locais,
– Os serviços ligados à economia circular, bioeconomia e ecossistemas,
– Os serviços ligados às bioenergias e redes energéticas,
– Os serviços ambulatórios ao domicílio e os programas de envelhecimento ativo,
– Os serviços de reabilitação e restauro do património natural e construído,
– Os serviços de produção de conteúdos para eventos criativos e culturais,
– Os serviços técnicos e tecnológicos ligados aos ambientes inteligentes e gestão SIG.

A regionalização funcional da política de coesão territorial

O desenvolvimento dos territórios necessita de uma base institucional consolidada que só poderá resultar de uma articulação eficaz entre os níveis regional (CCDR), intermunicipal (CIM) e municipal (CM).

Entre as medidas mais relevantes para a regionalização funcional da política de coesão territorial, damos destaque às seguintes:

>>O Polo de inovação digital
O polo terá as competências do banco de dados regional, o acolhimento da estrutura de start up regional e o respetivo espaço de coworking.

>>O programa de ação digital regional
O polo conduzirá o programa de literacia digital, o programa de lojas municipais do cidadão, o lançamento de serviços à distância.

>>A estrutura de gestão dos programas de investimento das CIM
A CIM coordenará os projetos financiados por fundos europeus e outros programas de captação de investimento (em aplicação da Lei nº50/2018 de 16 agosto e do DL nº102/2018 de 29 novembro) em articulação com o ICEP e o IAPMEI.

>>O Laboratório colaborativo regional de apoio à economia verde e circular
O Laboratório coordenará os projetos financiados no âmbito do pacto ecológico europeu, onde se incluem os projetos da economia verde e circular.

>>A oferta integrada e complementar intermunicipal de bens e serviços comuns
A CIM coordenará a oferta integrada e complementar de bens e serviços comuns colaborativos.

>>Protocolos de colaboração entre as CCDR/DRA/CIM/GAL e o movimento associativo de base local
Estes protocolos facilitarão o planeamento e gestão dos investimentos previstas na medida 10 do Programa de Desenvolvimento Rural 2020, mas, também, as ações integradas de base local e territorial previstas na política de coesão.

>>A criação da escola regional de artes e tecnologias
O projeto cultural e tecnológico da CIM justifica plenamente a criação da escola de artes e tecnologias que servirá, também, para apoiar a realização do plano de ação da transição digital.

>>A criação da associação regional de jovens empresários e a formação empresarial
No plano do rejuvenescimento socio-empresarial espera-se que as IES (instituições de ensino superior), as AEP (associações empresariais e profissionais e escolas profissionais agrícolas) e as AP (administrações públicas) se entendam sobre a sua própria modernização e o imperativo de renovação e sucessão empresariais.

No final, mais importante do que este elenco de possibilidades é a sua articulação e os serviços de rede que pode proporcionar. Aqui, mais uma vez, o ator-rede pode desempenhar o papel de agente-principal e curador de muitos destes interesses regionais e locais.

Notas Finais

A conexão das redes 4G e 5G impulsionará a convergência entre a transição digital e a transição ecológica que será o grande motor desta nova fase. Se esta convergência for devidamente patrocinada, em especial o apoio ao nomadismo digital, poderemos estar na iminência de uma explosão de start-up em espaço rural, embora nada garanta que elas não apareçam em ordem dispersa e com um impacto reduzido.

Se tudo correr bem, se as comunidades locais criarem os seus atores-rede, poderemos ter uma economia colaborativa que tornará o capitalismo mais popular e genuíno, no sentido próprio dos termos, e onde o capital social será tão ou mais decisivo que o capital financeiro.

O principal estrangulamento ao patrocínio adequado deste universo de start-up é o modelo-silo vertical e clientelar completamente ultrapassado das nossas principais instituições administrativas, totalmente viciadas em candidaturas e ajudas públicas para preencher a sua missão corporativa.

A principal tarefa do próximo futuro não é a defesa da corporação, mas o incentivo à cooperação, ou seja, realizar a quadratura do círculo e pôr de acordo politécnicos, associações de municípios, associações empresariais e serviços regionais e, no interior deste quadrado, criar um centro de racionalidade ou ator-rede que seja capaz de pôr alguma ordem na cacofonia ecológica e digital do mundo das pequenas economias regionais, locais e rurais.

Breve, o futuro próximo será feito de comunidades inteligentes, plataformas digitais colaborativas, serviços de rede, financiamentos mais participativos e atores-rede como incumbentes principais. Não será o melhor dos mundos, mas será seguramente um mundo melhor, muito para lá do velho modelo-silo, vertical e corporativo, próprio da nossa vetusta estrutura política unitária e centralizada.

Há sempre, porém, uma solução mais simples, é ignorar que os problemas estão lá, que não existem geografias desejadas e comunidades de destino denominadas Alto Minho, Trás-os-Montes, Alto Douro ou Alto Alentejo e deixar andar!

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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