João de Deus e Vila Nova de Portimão

No dia do 191º aniversário do nascimento de João de Deus, o autor recorda os seus encontros na então Vila Nova de Portimão, com um grupo de amigos, na chamada “Sociedade dos Delírios”

Assinala-se hoje, dia 8 de março, o aniversário de nascimento do Poeta Pedagogo João de Deus. São Bartolomeu de Messines sempre foi estreita para a grandeza real e sonhada do grande vate algarvio, autor da Cartilha Maternal.

Da pequena aldeia do concelho de Silves, partiu em plena adolescência para o Seminário Maior de Coimbra, onde se preparou para um curso de Direito atribulado e longo.

A cidade dos estudantes deixou-lhe marcas indeléveis que ele generosamente retribuiu. A velha Academia do seu tempo nunca o esqueceu e as novas gerações idolatraram-no, como se viu no apoteótico Festival de 8 de março de 1895, em Lisboa.

Outras cidades portuguesas conheceram a sua grandeza literária e humana, mas queremos hoje recordar aqui como o marcou a vida pacata de Vila Nova de Portimão, ensimesmado nos seus pensamentos, ou na boémia fraterna de um conjunto de amigos, designada por “Sociedade dos Delírios”.

É pelo seu aniversário que podemos hoje relembrar o ambiente estroina das vivências portimonenses com vários “vadios de estirpe”, tais como Bulhão Pato, Gomes Leal, Luís Mascarenhas, Domingos Vieira, Joaquim Negrão ou ainda Garcia Blanco e o Pe. Glória, entre outros, despertos pela recente publicação da fundamental e inovadora obra historiográfica João de Deus Imortal e Intemporal.

A autora, Maria João Raminhos Duarte, ao desvendar novos horizontes, deu à História local um novo núcleo temático, com o desassombro que caracteriza a sua profícua e inspiradora investigação do passado contemporâneo e sempre com o objetivo de combater a triste não-inscrição a que os portugueses parecem condenar-se.

Com efeito, não poderíamos deixar cair no esquecimento as longas temporadas de tertúlia, de receção e produção literária e atividade jornalística que João de Deus, nos finais de 60 primeiros anos da década de 70 do século XIX, experienciou em Vila Nova de Portimão.

Com esse grupo de amigos delirantes, o Poeta messinense percorreu montes e barrancos à caça ou em passeios excursionistas e gastronómicos, uma espécie de circuito turístico no triângulo Sagres, Monchique e Portimão, uma espécie de circuito turístico “Costa Vermelha” avant la lettre.

As tertúlias alternavam com animadas paródias na Praia da Rocha e na Quinta de Mata Mouros, na casa de Garcia Blanco, em Silves, ou na de Leonardo Vieira, em Portimão.

Escrevendo e desenhando na velha mesa de carvalho ou tocando viola toeira, vamos encontrar João de Deus deslumbrado ou meditativo, nostálgico do Mondego ou do Penedo da Saudade, mas sempre observador, iluminado e inspirador e venerado pelos que o rodeavam.

Vila Nova era politicamente dominada pelo Partido Regenerador e deve à influente família Bivar e a outros elementos políticos com peso na região, o desenvolvimento naquele período de crescimento acelerado, como comprovam a construção da muralha do cais, o dique regulador das salinas do sapal, a ponte sobre a ribeira de Boina a continuidade da estrada do litoral algarvio e a abertura da via para Monchique, ou a linha telegráfica Faro-Sagres. Em suma, o Barlavento, do ponto vista económico, desenvolvia-se a olhos nunca vistos.

É, porém, nas vicissitudes da construção da ponte rodoviária sobre o Arade, uma das obras mais emblemáticas e desejadas para a região, que gostaríamos de nos focar, já que os atrasos sucessivos do seu arranque se deveram a questões de orçamentação e incapacidade financeira dos potenciais adjudicantes, na medida em que o investimento do Estado era menos de 40% do valor total da obra orçamentada em 200.000 reis e as contrapartidas para o construtor baseadas no imposto de passagem, face aos juros do empréstimo, eram francamente ruinosas.

A imprensa local, cheia de vitalidade ainda numa fase incipiente (O Município e o Correio do Meio Dia), fez eco dos indeferimentos das urgentes pretensões e denuncia o tratamento bastardo a que o Algarve estava habitualmente condenado por todos os governos. As obras terão começado com pequenas dragagens sem continuidade e sem esperança de ver as margens do Arade ligadas.

Ora, este ambiente de crispação entre a vila próspera e os ministérios distantes, e de impasse nos avanços da empreitada, foram objeto de sátira pela pena de João de Deus, nas 21 quintilhas do poema intitulado “Caturras”.

Dois amigos, resistentes ao progressso, junto ao cais, onde a barca de passagem tinha ancoradouro, observam uma draga parada no morraçal a apodrecer. Como divertidos “velhos do Restelo”, vão desdenhando do utilidade da grande obra e criticando os públicos gastos sem proveito:

Ah! compadre, a gente foge,
Desabelha com calor;
Aqui faz fresco na loge,
É onde se está melhor;
Mas que calor que fez hoje!

—Pois, olhe, assim eu me désse
De inverno quando faz frio,
Como agora que elle aquece.
Tome dois banhos no rio,
Logo vê como arrefece.

—Compadre, nunca me traga
Taes coisas á collação;
Lembra-me a maldita draga,
Compadre do coração!
Não me falle n’essa praga!

—Tenho-lhe a mesma amizade
Que o meu compadre lhe tem,
Ás vezes dá-me vontade
Até de a tragar tambem…
Digo-lhe isto com verdade.

—Ha-de isto chegar a pontos
Que quem viver ha-de vêr!
Já lá vão setenta contos,
E a draga a apodrecer,
E trabalhos nenhuns promptos.

—Setenta, diz o compadre?
Dão-lhe elles esse verniz…
Lá como a sua comadre…
Mas eu cá o que ella diz
É como o que diz o padre…

—Pois inda isso continúa?
—Eu sei lá, compadre, eu sei!
Ora canta, ora se amua…
Eu é que já me lembrei
De a pôr um dia na rua!

—Compadre, tenha miolo,
Isso não se faz assim;
Eu não me tenho por tolo,
E ponha os olhos em mim…
Sirva-lhe isso de consolo.

—Pois bem sei que é ninharia,
Mas o compadre o que quer?
Estimo a minha Maria,
E isto de homem com mulher…
Mas vamos á vacca fria:

Com que a draga…—É empregada,
Coisa que nunca se viu,
Sendo uma peça aceada,
A tirar lama do rio!
Parece isto caçoada…

—E caçoada indecente
Porque outra coisa não é.
Mais economicamente
Quando vasasse a maré
A tirava mesmo a gente.

—E depois aquillo é lodo
Que nunca póde prestar.
Veja aterrar o caes todo
Quando não ha-de importar…
É gastar dinheiro a rodo.

—Haja decima e derrama;
Por causa do quê? do caes,
Da draga ou como se chama,
E outras coisinhas que taes
Que tudo a final é lama.

Pois sendo tudo bem feito
Como á antiga, vá lá!
Mas olhe, o caes não tem geito;
De tudo quanto alli ha,
A meu gosto, o parapeito.

—Sim, senhor, obra segura,
Obra como deve ser;
Feio e forte; é o que dura:
Foi sempre o que ouvi dizer
A quem está na sepultura…

—Mas era tudo escusado;
N’esta, compadre, é que estou;
E isto dá-me algum cuidado,
Que o que meu pai me deixou
Não foi nada mal ganhado.

—Pois e, se quer que lhe conte,
Já se ahi falla outra vez
Em mandar fazer a ponte:
Cuida esta gente talvez
Que temos alguma fonte…

—E havendo então uma barca…
Como a Arca de Noé!
Lá porque a gente se enxarca
E não póde andar a pé
Quando embarca e desembarca.

—Escarranchem-se ao cachaço
Dos marujos: pois então?
Cá em taes obras nem passo
Que pernas minhas darão;
É gosto que lhes não faço.

—Nada! havemos de ir agora
Vêr ambos o que lá vai;
Que a nós aquillo por ora
Bem sei que nos não distrahe;
Mas temos pouca demora.

—Pois vamos, compadre, vamos.
Sentamo-nos nos poiaes,
Alli mesmo conversamos
Ambos sósinhos no caes,
E depois logo voltamos.

João de Deus

 

Autor: Carlos Osório é professor do ensino secundário e Investigador da História Local

 

 

 

 

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