Gonçalo Ribeiro Telles, 98 anos: o plano verde e os jardins do paraíso

Todos nós somos, cada um à sua maneira, cuidadores da paisagem

O arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles cumpriu, no passado dia 25 de maio, 98 anos de vida. Uma vida longa perfumada de poesia e de distinção paisagística. Como ele diria, tudo precisa de bom senso e bom gosto, tudo merece ser feito com conta, peso e medida.

Para comemorar, singelamente, mais um aniversário do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles, deixo aqui aos leitores uma brevíssima reflexão sobre duas referências fundamentais do arquiteto, o plano verde e os jardins, que ele denominava do paraíso.

Agora que se fala tanto em turismo e em turistificação, agora que o ciclo ascendente parece comprometido, nunca é tarde demais para enfatizar dois temas fundamentais intimamente ligados: por um lado, sublinhar a distinção paisagística, os espaços verdes e a visão orgânica de cidade, por outro lado, relevar os recursos imateriais da memória, do imaginário e da cultura no planeamento da cidade.

Em ambos os casos, a referência aos jardins do paraíso de Gonçalo Ribeiro Telles revela-nos uma ilustração absolutamente deslumbrante.

 



 

O plano verde e a visão orgânica de cidade

Eis os pressupostos do plano verde da cidade inteligente de GRT:

– A cidade não é um puzzle de unidades territoriais desenhadas pela forma como a estrutura viária se relaciona com o tipo de edificação,

– As estruturas não-identificáveis e os vazios urbanos não garantem, só por si, a constituição de uma estrutura verde útil e eficaz,

– Os espaços verdes não podem ser espaços residuais, mas espaços substanciais que organizam o espaço,

– A cidade não é um conjunto zonado de áreas independentes, só identificáveis pelo modo como o automóvel se relaciona com os blocos residenciais,

– A cidade deve ultrapassar o convencionalismo inadequado da composição vegetal que hoje envolve, por exemplo, o tratamento ajardinado em rotundas e faixas de separação,

– A imagem da cidade deve ser defendida através de um sistema cartografado de vistas que determine a dimensão dos edifícios, a distribuição e forma da vegetação e o enquadramento das infraestruturas,

– No planeamento da cidade do século XXI é fundamental considerar “unidades operativas” de conteúdo ecológico com autonomia de planeamento, sempre que necessário, sem as quais estará em causa a sustentabilidade biofísica, a qualidade ambiental e o abastecimento alimentar.

– Neste sistema compreensivo e orgânico de vasos comunicantes, o plano verde é um instrumento essencial na conceção dos espaços exteriores da cidade cuja autonomia do desenho é exigida pela retaguarda biofísica e cultural que lhe é própria e pela prática das artes que desde há muito servem a construção da paisagem viva.

 



 

Os jardins do paraíso

Quando se fala de distinção paisagística, amenidades e recursos da memória e do imaginário é quase obrigatória uma referência aos princípios éticos e estéticos enunciados pelo Arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT) a propósito dos seus “jardins do paraíso” que são uma espécie de poesia da natureza, um passeio romântico através de uma paisagem de inspiração estético-literária. Passemos em revista esses princípios e apreciemos a sua elegância.

Em primeiro lugar, aposte na “sublimação do lugar” tornando-o ameno e feliz.

Em segundo lugar, invista na “presença da água”, na sua serenidade estética que confere um movimento ritmado e uma dinâmica musical ao jardim.

Em terceiro lugar, invista em espécies que sublinhem a “pujança da natureza e a sua diversidade biológica” e que enaltecem o ritmo da vida.

Em quarto lugar, tire partido da “luminosidade natural dos espaços”, o esplendor da luz é conseguido através do contraste sombra-claridade e da harmonia das cores.

Em quinto lugar, deixe-se influenciar pela “geometria e a profundidade das perspetivas”, o recorte dos sucessivos planos valoriza distâncias e formas.

Em sexto lugar, promova a “integração do jardim na paisagem envolvente” sempre que esta seja ordenada e bela.

Em sétimo lugar, aceite a “ordem natural como base da conceção do jardim”, ou seja, deixe-se inspirar pela ordem da natureza.
Em oitavo lugar, valorize os “aspetos culturais da paisagem”, pois a ordem cultural é a ordem da humanidade.

Em nono lugar, evite os excessos e exalte a” simplicidade no ordenamento das coisas”, não faça decoração pela decoração, ou seja, decorativismo.

Em decimo lugar, um jardim e uma paisagem são fruto de conceções e projetos e nunca de arranjos ou decorações, pelo que a sua “grandeza e beleza decorre do que lhes é essencial na medida certa”.

A eloquência e a elegância destes princípios falam por si. Percebe-se agora melhor a razão pela qual os conceitos de paisagem global e unidade de paisagem presidem à sua conceção do ordenamento e dos sistemas de produção.

Ou seja, com GRT o fator ecológico, o fator produção e o fator cultura não estão compartimentados em “silos administrativos” e reclamam, por isso, uma outra conceção da política administrativa e da administração da política. Tão simples como isso.

 



 

Nota Final

Os sinais distintivos territoriais são a imagem de marca de um território. Um desses sinais é a distinção paisagística. Num tempo de “turismo total”, não é apenas a gentrificação das vilas e cidades que nos deve preocupar, é, também, a ludificação excessiva e, sobretudo, o critério e o modo como dispomos e usamos recursos escassos como a água, o solo e a vegetação, no fundo a paisagem global que nos acolhe.

Não simplifiquemos, pois. Todos nós somos, cada um à sua maneira, cuidadores da paisagem.

Mas não nos iludamos. Há uma literacia própria da paisagem, que necessita de ser convenientemente abordada, sob pena de a nossa perceção da paisagem ser um crime de lesa-pátria e um mau serviço prestado ao país.

Talvez seja o tempo de voltar ao unitarismo de outros tempos, regressando à política e às causas públicas, reabilitando o discurso ideológico sobre a ocupação do nosso território antes que o tenhamos de recuperar num qualquer leilão de ocasião aqui ou no estrangeiro.

Um abraço e longa vida ao arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles!

 

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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