Web Summit, Edward Snowden e sociedade algorítmica

Estamos, de novo, no limiar de uma era misteriosa, aquela que relaciona humanidade e tecnologia, esperança e muitos perigos

Edward Snowden: «não são os dados que estão a ser explorados, são as pessoas. O que fazer quando as mais poderosas instituições da sociedade são as menos responsabilizáveis?»

Estamos, de novo, no limiar de uma era misteriosa, aquela que relaciona humanidade e tecnologia, esperança e muitos perigos. De facto, estamos, outra vez, no limiar de um admirável mundo novo, em viagem para o universo do ciberespaço. As grandes tendências deste admirável mundo novo seguem a fórmula dos “três D”: digitalização, desmaterialização e desintermediação, mas a sombra de um quarto D, o desemprego, é cada vez mais iminente.

A revolução digital confunde-se, cada vez mais, com o advento da sociedade automática e a automatização, se quisermos, dos procedimentos de cálculo automático ou sociedade algorítmica.

De que trata, então, a “governação algorítmica”? De plataformas tecnológicas, de redes sociais, de dados brutos extraídos dessas redes sob a forma de sinais infrapessoais, de procedimentos de cálculo e correlações estatísticas sob a forma de padrões de comportamento.

 

A sociedade algorítmica

No plano estrutural a sociedade algorítmica alimenta-se de uma cibercultura, de um vasto ambiente informacional, da hiper inteligência dos dispositivos tecnológicos, da gestão do Big Data e do Cloud Computing e, obviamente, da “adição digital” provocada junto dos utilizadores. Os nossos dados pessoais recolhidos em múltiplos dispositivos fixos e móveis são objeto de uma filtragem e tratamento em grandes centros de dados por intermédio de protocolos e procedimentos matemáticos chamados algoritmos.

O resultado final desse processamento apresenta-se sob a forma de perfis e padrões de comportamento personalizados que são depois vendidos a empresas de marketing e publicidade ou diretamente às grandes empresas de distribuição e retalho. Estes mercados de duas faces, gratuitos a montante e pagos a jusante, são designados de “mercados biface” e são eles que proporcionam as receitas gigantescas às grandes plataformas digitais como a Google e o Facebook.

Esta é a verdade da sociedade algorítmica, produzida em tempo real e sucessivamente reconfigurada por uma massa imensa de dados permanentemente atualizados. O sistema Big Data faz a limpeza, triagem, categorização e cálculo algorítmico dos dados. Não interessa o contexto, a singularidade, a significação desses dados. Os indivíduos são “agregados temporários de dados brutos”, quantificáveis e sucessivamente reconfigurados a uma escala industrial, se quisermos, uma espécie de coisificação dos indivíduos. Tudo fica indexado a um qualquer indicador quantitativo, para os fins da sociedade hipercompetitiva e performativa.

No fundo, estamos perante uma espécie de “modelo extrativista” em que os cidadãos internautas, utilizadores de redes e plataformas, são produtores e fornecedores de uma gigantesca massa de informação pessoal, muita dela subliminar, num ambiente informacional vertiginoso e hipnótico, que tem tanto de benignidade como de toxicidade.

A sociedade algorítmica, na sua exuberância calculatória, transforma os algoritmos em próteses cognitivas, que provocam não apenas a exteriorização do saber, mas, também, a proletarização de algumas /muitas classes profissionais e intelectuais. A sociedade algorítmica é, portanto, uma sociedade altamente paradoxal com inúmeros conflitos políticos e societais no horizonte próximo.

No plano do sujeito individual, os nossos “duplos algorítmicos” podem ser muito úteis se os soubermos manipular em nosso benefício; no resto, o nosso rasto, a nossa traçabilidade, serão explorados exaustivamente em ordem a produzir padrões supra individuais que “antecipam e orientam” o nosso comportamento, tudo garantido pela racionalidade do protocolo algorítmico.

No plano das relações de poder, a sociedade algorítmica é, claramente, uma nova forma de gerir a incerteza e a insegurança políticas, basta atentar no sistema de “crédito social” em vigor na China. Para tal, ela procede por inversão dos termos da equação, isto é, são os meios (o sistema técnico e tecnológico) que tomam conta dos fins e como a inovação política e social corre muito mais lentamente há o risco de ficarmos prisioneiros da elevada toxicidade da sociedade algorítmica. Edward Snowden tem razão.

 

A revolução no mercado de trabalho, em busca de um “novo normal”

No plano da organização social do emprego e do trabalho, a sociedade algorítmica da automatização é uma tecnologia verdadeiramente disruptiva, isto é, criará a breve prazo um forte desemprego estrutural, mas é, também, uma grande oportunidade para a inovação social e política que chegará, estou certo, à boleia da sociedade automática e algorítmica.

Ao contrário das grandes transições civilizacionais anteriores, da oralidade para a escrita e da escrita para a imprensa, feitas sempre no universo dos átomos e moléculas, a transição da imprensa para a computação e as redes, para o mundo dos screenagers, é feita dos átomos para os bits, isto é, estamos a desmaterializar a próxima grande mutação civilizacional e a eliminar em boa medida as referências espácio temporais anteriores. É assim que os novos modelos de negócio da era e da cultura digitais exprimem cada vez mais esta mutação fundamental.

Numa mutação civilizacional onde as plataformas tecnológicas desempenham o papel principal pois são a placa giratória de todos os interesses em presença, estamos a assistir à transição paradigmática da sociedade dos objetos e das mercadorias para a sociedade dos ícones, dos signos, sinais e símbolos, isto é, a uma transição para a (i)conomia.

Na nova sociedade da informação, da inteligência, da internet, da imaginação, da inovação, dos bens intangíveis e imateriais, assistiremos a um trade off permanente entre a velha economia dos produtos industriais e materiais e a “nova iconomia dos serviços imateriais”, numa troca constante entre produto e serviço e entre propriedade e acesso.

Aqui chegados, com algoritmos e perfis de comportamento, a sensorização dos objetos, os assistentes digitais inteligentes, as máquinas automáticas e inteligentes, a realidade aumentada e virtual e a bandeira do transumanismo, estamos, finalmente, num “novo normal”. A vida ao quotidiano neste “novo normal” pode ser extraordinariamente enfadonha e fatigante. Senão vejamos. Em casa é a “internet das coisas” que está ao comando.

As compras on-demand serão uma prática corrente. Os espaços de co-working passarão a fazer parte da nossa atividade profissional. Os serviços de aluguer nas start up de renting serão, igualmente, uma prática corrente. A economia crowd, do crowd funding de pequenos negócios, de crowd sourcing e crowd learning para as áreas de formação e ensino, será um instrumento fundamental de uso corrente em muitos formatos de economia colaborativa. Os serviços freelancer em open source via Skype entrarão pela noite adentro por causa dos fusos horários.

Esta evolução do universo socio-laboral não tem, infelizmente, um guião ou argumento conhecido e, sobretudo, não se conhecem bem as circunstâncias em que irá decorrer. Suspeitamos, porém, que os percursos profissionais passarão por um período de forte turbulência socio-laboral e sociofamiliar. Aqui chegados, abre-se um campo imenso de possibilidades que cruza várias aceções de pluriatividade e plurirrendimento. Doravante, em matéria socio-laboral e no espaço público, os termos da discussão serão, entre outros, os seguintes:
– Polarização e bipolarização do mundo do trabalho,
– Fracionamento dos horários e do tempo de trabalho,
– Intermitência e descontinuidade das relações laborais,
– Empregabilidade e formação ao longo da vida,
– Polivalência e multifuncionalidade das competências pessoais,
– Um direito universal de proteção social em vez de um simples direito socio-laboral,
– Um direito de pluriatividade horizontal em vez de um simples direito laboral,
– Um direito fiscal que tenha em devida conta o plurirrendimento e a pluriatividade,
– Um direito comercial que tenha em conta a intermitência e o trabalho independente.

Finalmente, emergirá no espaço público a discussão em redor do conceito de rendimento básico universal (RBU) e/ou incondicional (RBI), um rendimento mínimo garantido desligado da atividade económica convencional associada a uma relação laboral.

Mas, também aqui, assistiremos a uma história muito atribulada em matéria de RBU, com inúmeros afloramentos no debate público e versões muito variadas que se confundirão com rendimentos mínimos garantidos e rendimentos sociais de inserção, até versões mais elaboradas e completas, inclusive no espaço da zona euro como medida complementar de estabilização financeira.

Lembro que a nossa comissária Elisa Ferreira tem este pelouro na nova comissão europeia. Seja como for, a revolução digital alimentará, doravante, esta utopia do RBU que permanecerá no espaço público e servirá para renovar e reformar o Estado-Providência do século XXI.

 

Notas Finais

Apesar das dificuldades, estou certo de que por detrás da exuberância tecnológica, da economia das aplicações e dos empreendedores startupers há uma revolução silenciosa em curso, uma revolução do bom senso, da inteligência coletiva e da convivialidade.

Quer dizer, está em curso, também, o lado mais utópico, benigno e solidário da cibercultura, em versões muito variadas: a sociedade dos bens comuns e colaborativos, a economia do 4º setor (o dom, o voluntariado, a comunhão, a contribuição), as moedas sociais e complementares, a inteligência coletiva territorial e a formação de atores-rede, a plena aplicação dos princípios da economia circular e uma nova organização do trabalho mais criativa e inovadora e, finalmente, o rendimento básico universal ou de existência, a grande utopia do século XXI.

No novo normal do século XXI, à “internet dos humanos” junta-se a “internet das coisas”. Teremos todos, em princípio, a vida mais facilitada. Todos os objetos poderão, doravante, por meio de sensores, estar ligados a um dispositivo móvel e debitar continuamente toda a informação pré-cozinhada, por exemplo, através de um assistente digital inteligente.

As máquinas inteligentes e a robotização libertam-nos de uma parte importante das nossas tarefas e aliviam o nosso “disco rígido” para outras aplicações. Seremos, cada vez mais, um “homem aumentado” por via de inúmeros dispositivos que nos permitem o acesso à realidade aumentada e virtual. Este “acréscimo de humanidade” é tornado possível por via de novos interfaces e implantes entre o cérebro e os dispositivos que tanto podem ser o relógio e os óculos como os nano-dispositivos implantados no nosso cérebro.

Neste “novo normal” do século XXI, o nosso mix de rendimentos contemplará, muito provavelmente, um rendimento salarial a tempo parcial por conta de outrem, um rendimento variável de trabalho independente on-demand, um rendimento em espécie (voucher) pelo trabalho colaborativo e voluntário na comunidade local, um rendimento igualmente variável pelo aluguer e/ou venda de bens de ocasião e, quem sabe, um “rendimento básico universal” no próximo futuro.

Voltaremos ao assunto.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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