O Algarve vive do turismo, mas não vive para o turismo

Dois olhares distintos, mas com muitos pontos em comum sobre a atual – e futura – situação do turismo no Algarve

Os últimos anos do turismo foram «fabulosos», mas já se nota um abrandamento nos números e os próximos tempos «requerem atenção», seja pelos fatores externos que influenciam a procura, seja por aquilo que a região precisa de fazer para se tornar mais resiliente a esses mesmos fatores externos.

Em conversa com o Sul Informação, João Soares, delegado no Algarve da Associação da Hotelaria de Portugal, e Vítor Neto, presidente do NERA – Associação Empresarial do Algarve e antigo secretário de Estado do Turismo, olham com satisfação para os últimos anos e com preocupação para o que aí vem.

Este é mais um artigo da série que o nosso jornal está a publicar antes das eleições e em que falou com especialistas de diferentes áreas para fazer um diagnóstico ao Algarve. O primeiro trabalho publicado foi sobre o ambiente e o segundo sobre os transportes, um temática que, aliás, é tida como essencial também no setor do turismo.

Às visões dos entrevistados junta-se uma infografia com dados da Pordata (ver abaixo) que comprovam os bons resultados dos últimos anos e o abrandamento atual.

Para João Soares, «os últimos anos do turismo foram fabulosos, sobre todos os pontos de vista. O nosso país teve um impacto mediático muito grande e começámos a ser descobertos por mercados que não eram os nossos. O Algarve manteve os mercados tradicionais, mas cresceu nalguns mercados que não eram, de todo, o cliente habitual. O melhor exemplo disso é o mercado francês».

 

João Soares

Nesses anos, entre 2015 e 2018, «houve muitas notas de imprensa, muitas notícias acerca do país, muitas notícias nos Estados Unidos e no Brasil e até as ligações aéreas mudaram substancialmente. Hoje temos ligações, a nível nacional, para Israel, para a China, para o Norte dos Estados Unidos. Enfim, o país tornou-se um destino. Antes, Portugal tinha dois ou três sítios que eram destinos turísticos: Lisboa, Porto e Algarve. Depois, havia um local ou outro como Évora, Óbidos ou Fátima. Mas hoje todo o país é um destino turístico», acrescenta o responsável da AHP.

Vítor Neto concorda com esta visão, mas houve algo que não se alterou assim tanto: a importância do Algarve no setor turístico.

«Nesse período, o turismo transformou-se muito e alargou-se a outras regiões, o que é muito positivo. O turismo interliga-se, interconecta-se e ganha força com a força das outras regiões. No caso do Algarve, em 2002, tínhamos 11,5 milhões de dormidas de estrangeiros mas, em 2010, passou para 9,5 milhões dormidas».

Já em 2013, «tivemos 11,5 milhões e, em 2018, foram 14,5 milhões de dormidas de estrangeiros no alojamento classificado. Este é um dado relevante porque são mais três milhões em cima de 11 milhões. Se é verdade que o Algarve já representou 50% das dormidas de estrangeiros e hoje representa 35% a 40%, também é verdade que o Algarve teve mais três milhões de dormidas do que Lisboa, mais nove milhões do que a Madeira e o triplo das dormidas de estrangeiros do Porto e do Norte. Esta é uma realidade que não pode ser escamoteada», considera o ex-governante.

Com a concorrência “saudável” que é feita pelas outras regiões, João Soares diz que foi criado um novo desafio para a região. «O Algarve, há dez anos, era o destino turístico de eleição do país, assente numa política de que o melhor que temos para oferecer é o sol e a praia. No entanto, há sete ou oito anos, alterámos essa forma de comunicar, apostando mais no turismo de natureza, no turismo ativo. Tentámos, de alguma forma, acompanhar as novas tendências, o que me parece bem».

No entanto, não foi essa a principal razão para o boom turístico dos últimos anos. «A crise do Médio Oriente fez com que Portugal e Espanha tivessem crescimentos enormes. A Turquia está entre os maiores destinos turísticos do mundo e, havendo uma crise na Turquia, estes países beneficiaram muito», explica o delegado da AHP.

O Algarve beneficiou, mas aproveitou a oportunidade? João Soares acha que… mais ou menos.

«A região não aproveitou totalmente os bons anos para se preparar para o futuro. Não foi uma oportunidade usada em pleno, apenas uma parte, porque o Algarve teve uma grande notoriedade, ficou mais conhecido, mas continua a ter problemas a nível de produto e de infraestruturas públicas e privadas».

Entre esses problemas apontados por João Soares, Vítor Neto especifica alguns, nomeadamente na «mobilidade, que é um problema estratégico».

«O Algarve recebe milhões de turistas, gera milhões de receitas, mas as pessoas perdem horas entre o hotel e o aeroporto. Fazer uma distância de 30 quilómetros pode demorar muito tempo. O problema não é só dos turistas: é dos residentes do Algarve, dos jovens, dos trabalhadores que têm de ir de carro para o trabalho, dos estudantes que precisam de ir para a Universidade e que têm de alugar um quarto porque fazer todos os dias o percurso em Faro e Portimão, por exemplo, torna-se uma tarefa difícil», considera.

 

Vítor Neto

Vítor Neto aponta «os dramas da EN125 e da Via do Infante. Temos a eletrificação da ferrovia anunciada dezenas de vezes para a semana, por vários ministros, e é fundamental a ligação ferroviária ao Aeroporto. Se “despejássemos”, por ferrovia, os milhares que chegam ao aeroporto, aliviávamos a A22 e a EN125 de forma brutal».

Por outro lado, «as portagens são uma barreira aos espanhóis», acrescenta.

Para o presidente do NERA, estas são questões que «não estão resolvidas por falta de poder político da região. A responsabilidade é do Algarve. Se os cidadãos, os empresários e as autarquias se unissem, já tinha sido resolvida a situação e os ministros não vinham outra vez prometer o que não cumprem».

Para resolver de vez o problema, Vítor Neto diz que o «Algarve tem que afirmar o seu peso político no setor do turismo a nível nacional».

«É inadmissível que seja subestimado, como se o turismo fosse uma coisa que “vai por si”. O Algarve tem responsabilidades que exigem decisões, instrumentos e meios que que não podem ser adiados. O Turismo do Algarve tem que ser valorizado a nível nacional e por vezes não é. Somos a região mais importante do país e, para seguir em frente, temos de ter apoio político», atira, sem rodeios.

Por seu lado, João Soares aponta a questão da articulação como prioridade para desenvolver a região em termos turísticos.

«A Região de Turismo do Algarve congrega todos os órgãos e todas a entidades, mas depois falha numa questão que não é compreensível por quem nos visita. Quem gere a EN125 é a Infraestruturas de Portugal, quem gere as praias é a Agência Portuguesa do Ambiente, quem gere os transportes terrestres são os privados, quem gere a ferrovia é a CP, o Aeroporto é a ANA… Falta algo que já foi referido por vários hoteleiros que é um “Destination Manager”, um gestor do destino, para que seja tudo articulado e para que se fale a uma só voz», defende.

O hoteleiro acredita que, «quem nos visita, não compreende porque é que num município o arranjo paisagístico é ótimo e no outro é mau, porque é que num município a sinalética é ótima e noutro é má, ou porque é que num município há atividades permitidas e noutro município já não».

Para João Soares, «cria-se concorrência em diferentes áreas do Algarve. Devo dizer que, sendo membro do conselho geral da Associação de Hotelaria de Portugal, tentámos fazer vários contactos com a AMAL (Comunidade Intermunicipal do Algarve) e nem sequer obtivemos resposta aquando da discussão sobre as taxas turísticas», exemplifica.

No caso específico da AHP, «sabemos que todos esses organismos se reúnem na Região de Turismo, mas não nos chega a nós, hoteleiros, qualquer informação sobre os motivos da reunião, do que é que trataram e como é que trataram».

Além disso, prossegue João Soares, «o tempo que se demora hoje para resolver algumas situações que são apontadas como graves para o Algarve não pode continuar. Por exemplo, nos transportes terrestres. Hoje, quem sai de Portimão, para chegar a Quarteira, tem de fazer o transbordo em Albufeira, em Vale de Paraíso. À noite, não há transportes públicos…».

 

João Soares diz que as automotoras da Linha do Algarve estão «podres»

Depois, a tão falada ferrovia «podia ser um produto e um bom meio de visita do Algarve, uma vez que uma boa parte é na frente marítima. No entanto, o que há são automotoras com três carruagens, todas grafitadas e podres. Há todas estas questões e a estratégia feita tem de ser acompanhada pelas entidades».

João Soares diz que «tudo se resume a articulação».

«Devemos conversar todos uns com os outros, estarmos mais em sintonia. Um bom exemplo disso é a sobreposição a nível regional de eventos. Temos bons eventos a acontecer ao mesmo tempo em concelhos diferentes. Parece que há uma competição entre municípios, para ver quem tem o melhor evento. É por isso que faz falta um Destination Manager para o Algarve», defende.

Para João Soares, há a ideia de que o turismo são só as companhias aéreas, os hotéis, as praias e as atividades que acontecem no Algarve. Mas não é assim.

«O turismo é um conjunto de coisas: cuidar das estradas é turismo, a apresentação dos transportes onde as pessoas se deslocam é turismo, a qualidade das atividades é turismo, a informação no aeroporto é turismo. Tudo faz parte do turismo», considera.

Vítor Neto tem uma visão semelhante, uma vez que considera que «o Algarve precisa de uma estratégia, instrumentos políticos, empresários a trabalhar uns com outros e que os diversos setores se sintam complementares».

«Não podemos ter um hotel bom, com um deserto à volta», exemplifica.

O presidente do NERA refere que «cada um dos municípios trabalha de forma fechada, tendo em conta objetivos políticos que garantam o sucesso do seu município. As autarquias não olham com atenção suficiente para o que está ao lado, para aquilo que falta e, no Algarve, faltam muitas coisas».

A importância do turismo para a região é destacada tanto por Vítor Neto, como por João Soares.

O ex-secretário de Estado argumenta que «a valorização da importância do turismo na economia é fundamental». Mas o Algarve só deve ter turismo?

«Não. O problema não é haver turismo a mais, é ter os outros setores a menos. O facto de a agricultura, a indústria, o mar, a agroindústria e outros serviços não estarem suficientemente desenvolvidos enfraquece o turismo. Se os estrangeiros vêm consumir aquilo que importamos, é uma desvantagem», defende Vítor Neto.

João Soares, por seu lado, considera que «temos uma região que vive do turismo e, muitas vezes, não vive para o turismo».

E exemplifica: «é inaceitável que um cliente chegue a um restaurante às 22h00 e lhe digam que a cozinha está fechada, ou às 15h00 e lhe digam que só abrem aos jantares. Se, realmente, queremos ser proativos, temos de cuidar do turista».

Essa proatividade é particularmente necessária no contexto do Brexit, tendo em conta que «o Reino Unido é o nosso principal mercado emissor, principalmente na chamada época baixa».

Também Vítor Neto teme os efeitos da saída do Reino Unido da União Europeia, tendo em conta a atual conjuntura que até é de crescimento deste mercado. «Este ano, estamos a perder alemães, holandeses e franceses, mas os ingleses ainda estão a manter a posição e até a reforçar. Daí a surpresa que pode trazer o Brexit, que pode ser dramática».

Além disso, «estamos a assistir a uma mudança de ciclo no turismo mundial. Há alteração de comportamentos dos clientes, atitudes e há novos mecanismos para a decisão da viagem para contratação, através das tecnologias online».

Atualmente, «o cliente compara preços, ouve opiniões e decide. Nós ficamos entusiasmados com prémios que ganhamos, mas isso não chega. O grande operador que é a Internet condiciona as opiniões e valoriza aquilo que lhe interessa vender».

Outra mudança está a acontecer no mercado do tráfego aéreo.

 

Sinais de «cansaço da Ryanair» são preocupantes

«A Ryanair, por exemplo, está a dar sinais de cansaço, recuo, a eliminar bases e isso deve preocupar-nos. As revoluções provocam transformações, mas essas têm uma dinâmica e limites e é preciso que nós, como construtores da oferta, tenhamos isso em conta. Não podemos embarcar em fantasias e ilusões e deixarmos de caminhar com os pés na terra», diz Vítor Neto.

A definição de uma estratégia correta é essencial para o antigo governante que lembra que, «entre 2002 e 2010, houve um desvio estratégico no Algarve. Apostou-se num turismo muito direcionado para a imobiliária e para a captação de compradores de habitação».

Vítor Neto fala daquilo que considera ter sido «uma experiência anedótica»: «o Allgarve, os PINs (Projetos de Interesse Nacional)… Não houve uma atividade de promoção para consolidar os mercados que tínhamos conquistado no período da Expo 98. Houve esquecimento e uma aposta em objetivos que não foram consistentes. É evidente que a imobiliária é imprescindível no turismo mas, às vezes, tem uma dinâmica própria e pode ter consequências. A banca ficou proprietária dos investimentos e houve dificuldades nas empresas do setor. Neste momento, a situação está ultrapassada e até se fala de falta de oferta na imobiliária. Mas nesse período não crescemos, porque houve um enfoque errado», acusa.

Nos últimos anos, nasceu o 365Algarve, um programa cultural que quer ajudar a combater um dos problemas do turismo algarvio: a sazonalidade.

 

365 Algarve «foi bem pensado, mas mal executado», considera João Soares

No entanto, segundo João Soares, do ponto de vista dos hoteleiros, este foi um produto «bem pensado, mas mal executado».

«O programa foi desenhado para atrair as pessoas na época baixa, mas o produto, numa fase inicial, não teve articulação com a hotelaria. Acabaram por ser criados eventos de animação sem se ter pensado como se levaria os clientes aos espetáculos. Por exemplo, um cliente alojado em Vilamoura, como chega a um evento na serra algarvia, por exemplo, à noite?», questiona.

Apesar de «nos últimos anos anos ter havido uma tentativa de melhorar o programa, não me parece que tenha sido uma mais-valia. Achamos que seria mais importante usar as verbas em três ou quatro eventos âncora, que dessem um bom posicionamento ao Algarve, do que fazer coisas com pouco impacto, para 30 ou 40 pessoas», acrescenta.

Questionado sobre os problemas do turismo da região que precisam de ser resolvidos com urgência, João Soares destaca o caravanismo selvagem.

«É uma situação péssima que dá uma sensação de anarquia da região. Nós já fizemos propostas concretas e objetivas. O que defendemos é o encaminhamento de tudo o que é caravanismo para parques licenciados e criar regras com sinalética. É também necessário fazer publicações no site do Turismo do Algarve a destacar que é completamente proibido e que as multas custam entre X e X. O caravanismo traz uma série de problemas quando não é praticado no seu devido espaço».

Já em termos de desafios, o responsável da AHP destaca o «o paisagismo, os transportes terrestres e os recursos humanos».

Neste último ponto, que tem sido muito debatido nos últimos anos, o hoteleiro diz que «esse é o grande desafio: a retenção de bons recursos humanos. Acreditamos que as empresas hoje já têm boas políticas de retenção de recursos humanos. Para isso é preciso remunerar bem as pessoas boas, mas não apenas em termos de capital, também do ponto de vista social».

Perspetivar o futuro «é sempre difícil e o Algarve é tão diferente e tem zonas tão distintas… Mas temos de comunicar com um público melhor, mais evoluído. E, a nível cultural, o Algarve ainda tem trabalho a fazer. Quando eu digo cultural, falo de lugares para visitar. É um bocado apostar no regresso às origens, não é fazer eventos, nem teatros. É contar-lhes a nossa história, falar das nossas igrejas, dos nossos castelos. O que é que as pessoas procuram nos destinos? Cultura, gastronomia, atividades, clima e segurança. E nós temos tudo», conclui João Soares.

 

 

Este conteúdo integra o projeto “Eleições em Rede 2019”, do qual o Sul Informação faz parte.

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