A nação-internet e o sexto continente

Assistimos à emergência de uma internet de grandes plataformas tecnológicas ao serviço do hipercapitalismo

A internet, pela sua dimensão e projeção, é uma espécie de sexto continente, mas, como sempre, constituído por sub-regiões muito heterogéneas. No início, afirmou-se o mito libertário da internet, uma “internet primordial” ao serviço dos cidadãos e de uma sociedade interpares.

Porém, muito rapidamente, assistimos à emergência de uma internet de grandes plataformas tecnológicas ao serviço do hipercapitalismo e dos grandes predadores dos chamados mercados biface onde o principal produto comercializado “somos nós”.

O problema hoje – que na sua essência é um problema de evasão fiscal e repartição do poder – reside em saber, em primeiro lugar, como regular estes mercados biface emergentes em benefício das sociedades e dos seus cidadãos e, em segundo lugar, como regressar a uma internet primordial, bem distribuída, que nos possa conduzir até à sociedade colaborativa, aos ambientes inteligentes e aos bens comuns da humanidade enquanto instrumentos de realização dos direitos fundamentais, se quisermos, uma espécie de nova fronteira para os direitos humanos fundamentais.

Bifurcação e democratização da nação-internet

À nação-internet falta, digamos, uma “classe média digital” para democratizar o sexto continente. Com efeito, neste momento a nação-internet passa por uma grande bifurcação. De um lado, a multidão, os cidadãos utilizadores, cidadãos anónimos e inocentes que aceitaram uma servidão voluntária e foram capturados por um número crescente de dispositivos tecnológicos, de outro, os gigantes tecnológicos administrando uma imensa economia das multidões e gerando lucros monumentais que canalizam para paraísos fiscais e sociedades offshores. Meio século depois, o mito libertário da internet já se esfumou.

No futuro próximo a evolução mais interessante dirá respeito às variadas formas de bifurcação da era digital, por exemplo, entre redes distribuídas e descentralizadas herdeiras de uma internet primordial, colaborativa e cidadã, por um lado, e redes centralizadas ao serviço de um hipercapitalismo das grandes plataformas tecnológicas e empresariais, por outro.

É aqui, neste limiar, que nos encontramos hoje. A virtualização da sociedade pelas tecnologias digitais, a uberização e a plataformização das atividades, a inteligência artificial e a robotização das operações, a smartificação dos ambientes e dos territórios, a pluriatividade, a precariedade e o plurirrendimento dos mercados de trabalho, a emergência de um imenso quarto setor colaborativo e solidário, todos estes fatores de inovação acrescentam realidade à realidade já existente (realidade aumentada), inteligência à inteligência já existente (inteligência artificial) e homem ao homem já existente (homem aumentado).

A bifurcação da era digital significa, ainda, que temos pela frente uma batalha gigantesca, qual seja, a de estreitar o abismo que se abre entre sociedades e territórios com e sem acesso às tecnologias digitais, mas, também, entre sociedades e territórios com e sem humanidade.

Em pano de fundo, a mesma matéria-prima e os mesmos transformadores. Falo dos dados infra pessoais, a nossa pegada digital, e dos seus processadores universais, os algoritmos. É a sociedade algorítmica que chega.

Um longo caminho espera a nação-internet antes de se tornar “independente e democrática”. Até lá a nação-internet continuará a ser colonizada pelos grandes conglomerados tecnológicos que usarão e abusarão da sua posição dominante para afirmar o princípio da evasão ou da extra-territorialidade.

Nessa trajetória, mais ou menos longa, continuaremos a ser, muito provavelmente, os idiotas úteis dos mercados biface que somos hoje e enquanto os níveis de “adição digital” não baixarem vamos continuar a acreditar que temos acesso direto à realidade e à verdade, sem necessidade de qualquer tipo de intermediação ou representação política, pois tudo o que é necessário já estará nos nossos “menus de aplicações”.

O futuro da nação-internet e do sexto continente

As multas e contraordenações gigantescas aplicadas recentemente pela Comissão Europeia aos grandes conglomerados tecnológicos são um sinal dos tempos. Muito provavelmente, a próxima colisão desta revolução tecnológica será, justamente, a propósito das políticas de regulação para os mercados digitais.

Por isso, é bom que os conglomerados tecnológicos não abusem da sua vertente extraterritorial nem subestimem os poderes do estado-administração em lidar com a revolução digital. Se do lado das grandes plataformas se pode falar em “colonização digital”, cuidado, pois do lado dos estados nacionais pode haver a tentação de “balcanização da internet”, isto é, de circunscrever uma internet nacional de acordo com a lei, a idiossincrasia e a cultura nacionais.

O sexto continente continuará a crescer e a deslocar-se. Uma imensa “nuvem virtual” cobre o mundo físico dos restantes continentes.

Ninguém pode prever como estes dois universos, físico e virtual, irão coabitar e interagir no próximo futuro. Apenas poderemos dizer que nada ficará como dantes, até mesmo a evolução da nossa própria espécie que, em virtude da crescente hibridação homem-máquina, caminha em direção à imortalidade, seja lá o que isso for.

Aqui chegados, eis alguns tópicos de reflexão que serão fundamentais, agora e no próximo futuro:

– É importante manter a porta aberta da utopia libertadora, pois ela continua a ser necessária ao nosso imaginário coletivo tendo em vista combater a atopia da sociedade dos algoritmos,

– É importante aprofundar as inovações da democracia colaborativa e interativa, em ordem à democratização do estado-plataforma que irá chegar em força, com grande impacto sobre o perímetro político-administrativo e a estratificação da função pública e da sociedade em geral,

– É importante aprofundar os processos de regulação da economia das plataformas, das mais pequenas e localizadas, que devem ser incentivadas, às mais gigantescas e extra-territoriais que devem ser objeto de controlo rigoroso,

– É importante aprofundar e rever a estrutura e organização dos mercados de trabalho e emprego, bem como o denominado “quarto setor” onde se inclui a economia social, solidária, comunitária e colaborativa e, também, a abertura ao rendimento básico universal ou um seu sucedâneo próximo,

– É importante aprofundar a transformação digital e a virtualização da sociedade, no sentido da chamada “smartificação do território” que é, em si mesmo, uma oportunidade única para os territórios mais desfavorecidos,

– É importante aprofundar a economia do Big Data, as métricas e os procedimentos dos calculadores universais, os algoritmos, e os processos de normalização decorrentes da “governação algorítmica”, mas não esquecendo nunca que eles são uma criação
humana de natureza instrumental que pode ser revertida a qualquer momento,

– Finalmente, é fundamental atualizar a prioridade atribuída aos bens comuns da humanidade, alargar a base dos direitos fundamentais da pessoa humana e colocar no local certo a bioética e a biopolítica em ordem a não inverter os termos da
equação entre inteligência humana e inteligência artificial.

Notas Finais

Na nação-internet e no sexto continente estão em marcha alterações culturais e civilizacionais de grande amplitude que apenas aguardam uma oportunidade para explodir à superfície. Eis algumas dessas questões finais que aqui deixo para reflexão:

– Vamos continuar a ser os idiotas úteis ao serviço dos mercados biface e dos grandes conglomerados tecnológicos, colocando a nossa pegada digital à sua inteira disposição?

– Vamos manter os níveis de “adição digital” e continuar a acreditar que temos acesso direto à realidade e à verdade, sem qualquer tipo de intermediação ou representação?

– Vamos inventar ou produzir a nossa identidade digital, convertê-la num ativo pessoal e pô-la a render no nosso universo
real e material?

– Vamos reabrir um novo humanismo para lá dos algoritmos e do Big Data, uma nova variedade de espécie humana para lá do nosso
algoritmo bioquímico?

– Para lá dos modelos matemáticos da sociedade dos algorítmos, quem são os homens sem rosto que nos governam e qual é o grau de responsabilidade pública e democrática que eles nos devem?

– O que fazer com a nossa minúscula ilha de consciência, estaremos nós preparados para o pós-humanismo, para uma transição para outros universos de sentido e de estados mentais?

Em síntese final, depois de tanto acaso e necessidade, de tanto determinismo e aleatoriedade, de tanta arte, política e filosofia, estaremos nós reféns da governação algorítmica, seremos nós os novos crentes do dataísmo, algures entre o Big Brother e o Big Data?

E nesta encruzilhada do tempo, onde fica o nosso livre-arbítrio e a incerteza sobre o futuro, afinal, a nossa pequena margem de liberdade?

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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