Medronho #2 em Marmelete ou uma bela viagem ao interior do monstro

O espetáculo, que se estreou na passada semana, com quatro sessões completamente esgotadas, volta hoje às destilarias. Mas também já não há bilhetes

«Quase nem conseguia impedir as lágrimas», confessou, com a voz embargada, Marta Martins, a presidente da Junta de Freguesia de Marmelete, depois de assistir a uma das duas partes do espetáculo Medronho #2, que, por estes dias, está a ser apresentado na sua aldeia.

«No tempo dos incêndios, os animais calavam-se (…) no tempo dos incêndios, os velhos morriam mais», dizia a atriz Marta Gorgulho, dando voz às palavras do escritor Afonso Cruz, primeiro no antigo lagar, depois na destilaria do Senhor José Maria.

A jovem autarca dava assim voz ao sentimento da maioria do grupo que, na semana passada, assistiu à antestreia do espetáculo, quase todos pessoas da terra, que já várias vezes viram o fogo a rondar.

Giacomo Scalisi, responsável por mais esta produção do projeto Lavrar o Mar, já tinha explicado sobre o que iriam falar: «o fogo não chegou a Marmelete, que só o avistou de longe no Verão passado. Por aqui, ainda temos medronho e medronheiros, mas o fogo é sempre um potencial habitante e personagem deste território». E lá esteve ele, sempre presente. Um monstro.

O espetáculo, que se estreou na passada semana, com quatro sessões completamente esgotadas, volta hoje às destilarias, ruas e outros espaços pouco habituais da aldeia de Marmelete, para as quatro performances finais, até domingo, igualmente já sem bilhetes.

De cada vez, são cerca de 50 pessoas, divididas em dois grupos, que seguem ora Marta Gorgulho, ora Neusa Dias, pelas destilarias das Marias ou da Quinta Velha, pelo antigo lagar ou Casa do Povo, pelas ruas, num silêncio quase reverencial.

Da boca das duas atrizes, saem as palavras de Afonso Cruz, que contam a história de Carlos, a quem chamavam o Urso, e que um dia «mandou o fogo encosta abaixo». Carlos, «o homem que olhava as chamas de frente». Carlos, «o homem cujas frases terminam sempre numa vírgula».

Os espaços onde é contada a história deste Carlos, do fogo, dos muitos fogos que assombram a serra, são sempre iluminados por candeeiros a petróleo e velas. O pano de fundo em alguns desses lugares é o som líquido do fio de aguardente que escorre sem pressas do alambique. Pelas ruas, ecoa o ladrar dos cães, agitados pela passagem inusitada de tanta gente ou o som do relógio da igreja, não já o bater ritmado das badaladas no sino, mas um som eletrónico e quase metálico.

Pelo meio desta quase peregrinação pelas memórias da terra e pelas suas catedrais do medronho, vai-se comendo (farinheira, javali, pão) e vai-se, sobretudo, provando o medronho, em mosquitinhos que há que beber de um só trago. «Bebemos?» pergunta a atriz Neusa Dias na destilaria Quinta Velha, do Senhor Filipe. «Bebemos!», responde o público, obediente.

«Primeiro sentimos o cheiro da serra e do mato, depois deixamo-la na garganta, depois o incêndio». Sim, porque beber aguardente de medronho de um trago também cria incêndios, interiores.

Enquanto já se está no terreno a preparar o próximo espetáculo do Lavrar o Mar, com a companhia francesa Basinga e a funambulista Tatiana Mosio Bongonga, a partir desta quinta-feira e até domingo, mais 200 pessoas vindas de todo o Algarve, do vizinho Alentejo e até de Lisboa, portuguesas e estrangeiras, vão poder assistir a mais um momento de encantamento, com «Medronho #2. Serra, capítulo segundo», um espetáculo de teatro em lume brando.

Em Maio, os textos quer de Sandro William Junqueira, do espetáculo Medronho #1 (que aconteceu em Novembro), quer de Afonso Cruz, de Medronho #2, vão ser editados em livro. Giacomo Scalisi revelou ao Sul Informação que o processo já está em marcha, com as traduções para inglês a serem feitas. O público que tem assistido maravilhado a estas performances agradece. E quem não assistiu vai agradecer.

A programação cultural Lavrar o Mar, promovida pela cooperativa Cosa Nostra, integra o programa 365 Algarve, contando também com o apoio financeiro da Direção Geral das Artes, do CRESC Algarve 2020 e das Câmaras Municipais de Monchique e Aljezur.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

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