Há uma equipa que anda pela serra de Silves “à caça” da diabetes entre os idosos

A equipa do projeto «Diabetes na Serra de Silves» percorre os caminhos de terra da freguesia de São Marcos da Serra para cuidar dos seus doentes

«Tem aí a medicação do Senhor Diamantino?», pergunta a jovem médica, de bata branca, à senhora idosa. «Está aqui tudo dentro deste saquinho, acho que é isto que eles está a tomar», responde a senhora, depois de remexer numa gaveta do móvel da sala, numa casa térrea muito bem cuidada da aldeia de Boião, freguesia de São Marcos da Serra, no interior do concelho de Silves.

«Sente-se aqui, Senhor Diamantino, que é para vermos se está tudo bem», chama o enfermeiro, também de bata branca, com um sorriso aberto para o homem idoso, que lá se senta, com um suspiro de resignação.

«Tem visto a sua tensão?», pergunta a médica. «Nem sempre…às vezes…», responde o idoso. «Mas tínhamos falado nisso, olhe que é muito importante ver isso sempre», insiste a clínica.

Pegando nas análises, que o senhor Diamantino tinha feito na semana passada, a médica explica: «eu queria ver as suas análises e elas confirmam que a sua diabetes não está lá muito controlada. Tem que ter muito cuidado». Pegando em algumas das caixas que estão no tal saquinho de plástico, diz: «olhe, vai parar com estes medicamentos, está bem? Estes deixa de tomar. Mas vai passar a fazer esta medicação». O idoso, de 75 anos, e a sua mulher, de 71, seguem com muita atenção as explicações da médica, que repete mais duas vezes, até ver que tudo parece estar percebido.

«E não se esqueça da picada, continua a fazer uma vez por semana, sempre em jejum», acrescenta.

«Exercício tem feito?», pergunta o enfermeiro. «Tenho sim senhor. Vou para a horta. Ainda ontem fui às 6h00 da manhã e voltei às 9h00. «E aos bailaricos, já não vai senhor Diamantino?», pergunta o enfermeiro, com um piscar de olho. «Isso ele até gostava, mas já não pode, por causa da perna», responde a esposa, a sorrir.

Esta cena passou-se há algumas semanas, em plena serra de Silves, quando a reportagem do Sul Informação acompanhou a equipa do pioneiro projeto «Diabetes na Serra», desenvolvido pela Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) Rio Arade, do Centro de Saúde de Silves.

A jovem médica responsável é Rita Xavier, que faz equipa com o enfermeiro Luís Santos. Acompanhados por Alexandre Carmo, motorista da Câmara Municipal de Silves, que conhece todas as estradas e caminhos de terra batida dos locais mais longínquos do concelho, Rita Xavier e Luís Santos calcorreiam montes e vales da freguesia de São Marcos da Serra, para ir consultar, nas suas casas, cerca de quatro dezenas de doentes de Diabetes tipo 2, todos eles pessoas com 65 anos ou mais, que não têm médico de família.

Este projeto, que é um verdadeiro «encontro dos cuidados de saúde com a comunidade», de modo a «proporcionar a essas pessoas consultas médicas e de enfermagem ao domicílio», como explica a médica Rita Xavier, é pioneiro a nível nacional.

Começou em Junho de 2016. De início, a equipa deslocava-se num jipe da Câmara Municipal de Silves, guiado pelo senhor Alexandre. É que, em certos locais, servidos por caminhos de terra batida, nem a Unidade Móvel de Saúde lá chega.

Foi então que a equipa teve a ideia de se candidatar aos prémios da Missão Sorriso, promovidos pelo Continente/Sonae. E acabaram por ganhar uma viatura todo-o-terreno, que é a que usam agora nas suas deslocações. Antes, ainda foi preciso resolver alguns problemas burocráticos, mas o novo veículo acabou por entrar em funcionamento em meados deste ano. Agora, o motorista Alexandre continua a acompanhar médica e enfermeiro, mas só para evitar que eles se percam nos caminhos da serra. «Bem precisamos deste GPS humano!», diz, a brincar, o enfermeiro Luís.

A enfermeira Paula Silvestre, enfermeira coordenadora da UCC Rio Arade, explicou ao Sul Informação que o concelho de Silves tem «taxas de envelhecimento muito altas, sobretudo na freguesia de São Marcos da Serra». Ali também não tem havido médico de família e as pessoas têm, por isso, ainda mais dificuldade no «acesso aos cuidados de saúde». Além disso, trata-se, em muitos casos de uma população isolada, «uma aldeia aqui, uma casinha ali». «As pessoas que ali vivem não querem sair de lá, estão naturalmente presas às suas memórias e aos sítios que conhecem».

Por isso, se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé. E assim surgiu este projeto ao encontro da comunidade, no âmbito do Programa Nacional para a Diabetes. O objetivo da iniciativa pioneira é, sobretudo, «evitar que os utentes sejam internados, controlar a diabetes, promover a autogestão da doença, a autonomia das pessoas e os hábitos de vida saudável», adianta a médica Rita Xavier.

E os resultados já estão a aparecer: «Agora as pessoas estão habituadas, já são elas que nos contactam».

Voltemos então à equipa que anda em bolandas pela serra. Depois da aldeia de Boião, qual é o rumo? «São Marcos da Serra», responde o motorista Alexandre, que segue no banco de trás, com a jornalista.

E dirigem-se então até uma casa numa das pontas da aldeia. Batem à porta, mas ninguém atende. O enfermeiro Luís recorda o que aconteceu, aqui há tempos, noutra casa no meio da serra: «chegámos lá, chamei, bati e nada. Tem havido muitas burlas e assaltos aos velhotes aqui na serra e eles ficam mais desconfiados. Resolvi espreitar pelo buraco da caixa do correio e gritei: Ó Senhor Manel? É o enfermeiro Luís! E vi o velhote ao fundo da casa, encolhido. Lá veio abrir-nos a porta». «Tive sorte de ele não ir buscar a caçadeira…», conclui, com uma gargalhada.

Em São Marcos, é então hora de visitar o Senhor Mário, de 79 anos, que vive sozinho e tem outros problemas de saúde, além da diabetes. «O seu filho tem vindo cá?», pergunta o enfermeiro Luís. «Ele está em Lisboa. É uma senhora que vem cá ajudar-me», explica o senhor Mário. «E a comida?», insiste o enfermeiro. «É ela que trata».

A médica ausculta com cuidado, depois mede a tensão. «Picamos-lhe o dedo?», pergunta o enfermeiro. «Não é preciso, ele tem feito isso, estão aqui os registos», responde a médica. «Então vamos ver o peso. Tem andado cansado?». E o paciente responde: «qualquer coisa, fico logo cansado».

Pedindo ao idoso para se sentar numa cadeira, o enfermeiro Luís descalça-o e retira-lhe as meias, deixando à vista dois pés muito brancos. «Vamos observar os seus pés, está bem senhor Mário? Quem é que lhe corta as unhas? Peça à senhora que o ajuda que lhe trate disso, olhe que tem de ter muito cuidado com os dedos, com o pé. Já sabe que qualquer ferida, com a sua doença, depois custa muito a curar e pode levar a problemas mais graves», explica.

Apalpando as pernas do homem, o enfermeiro pergunta: «Tem tido dores nas pernas? Cãimbras?». E o idoso responde: «Agora graças a Deus que elas não apertam, tenho andado bem».

Da aldeia situada à beira do IC1, a viatura do projeto «Diabetes na Serra» segue para o Vale Grande de Cima, na zona da Sapeira, de novo pela serra adentro.

A D. Leontina e o marido moram num monte com boas vistas para as ondulações suaves da serra, ao fim de um longo caminho de terra. Não é fácil lá chegar, porque a estrada tem buracos cavados pela água. Mas o veículo todo-o-terreno mostra a sua utilidade.

Na sala de entrada da casa, que também serve de cozinha, a médica cumpre o ritual de sempre: pede para ver os medicamentos que a senhora toma. «Sabe como os deve tomar?», pergunta. «Sei sim! Até à data tenho a ideia boa!», responde a senhora, meio ofendida. A médica insiste, tirando duas caixas de dentro da gaveta: «estes são para parar». «Eu sei, já parei!», responde a idosa, um bocado agastada.

Olhando para a D. Leontina, bastante magra e pálida, o enfermeiro Luís interroga: «Hoje já comeu alguma coisa?». «Uma fatiínha de pão com margarina e uma caneca de café», responde a senhora. «Mas olhe que tem de comer mais», insiste o enfermeiro. O marido, encolhido a um canto da sala, responde: «eu bem lhe digo isso, mas ela não me liga…».

No âmbito do projeto «Diabetes na Serra de Silves», a equipa também faz formações junto da população, como as que já aconteceram no Café da Azilheira ou na Junta de Freguesia de São Marcos da Serra. O objetivo é garantir que o máximo de pessoas ficam a saber mais sobre os sintomas e os cuidados a ter com a Diabetes Tipo 2, sobretudo os idosos mais isolados, que a equipa irá depois acompanhar.

A equipa do projeto Diabetes na Serra: o motorista Alexandre Carmo, o enfermeiro Luís Santos e a médica Rita Xavier (e a viatura tt)

Rita Xavier recorda o caso de um outro utente, obeso, que estava «renitente» a deixar-se tratar e acompanhar, de início. Tanto insistiu com ele, que acabou por aderir e até perdeu peso. «Agora é ele que nos telefona, a saber quando lá vamos. Isso acontece cada vez mais. As pessoas vão sabendo do nosso trabalho e são elas que nos telefonam».

A médica fala do primeiro doente visitado nessa manhã: «não sabíamos da existência do senhor Diamantino, que ele tinha diabetes. Ele nunca tinha ido ao Centro de Saúde, por isso não estava referenciado. Foi identificado por um vizinho e foi assim que lá chegámos».

Depois de alguma conversa, sobre assuntos que não têm a ver com a diabetes, a equipa volta a sair da casa da D. Leontina e do seu marido, um monte branco perdido no meio da serra de Silves.

«Nós visitamos as pessoas mais ou menos de quinze em quinze dias. Vamos vendo a degradação física das pessoas, à vezes é bem rápido», lamenta o enfermeiro Luís. «Mas estão aqui na casa deles até poderem, é assim que eles gostam!»

E, desde que começou o projeto «Diabetes na Serra», bem melhor acompanhados sob o ponto de vista da sua saúde. Mas não só. É que as visitas regulares da equipa do projeto promovido pela UCC Rio Arade, de Silves, também ajudam a cuidar da saúde mental e a quebrar o isolamento destes idosos.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

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