Crónicas do Sudoeste Peninsular: A equação territorial do próximo futuro

As próximas décadas reservam-nos grandes incógnitas e transformações no que diz respeito à equação do território que será, por isso, […]

As próximas décadas reservam-nos grandes incógnitas e transformações no que diz respeito à equação do território que será, por isso, objeto de profundas alterações.

Abordamos neste pequeno escrito alguns aspetos dessas transformações paradigmáticas. Em primeiro lugar, as tendências pesadas das grandes transições em curso a caminho de uma espécie de realidade tridimensional.

Em segundo lugar, e neste contexto, a conversão gradual do conceito tradicional de fileira económica num conceito mais alargado de cadeia de valor para dar conta, justamente, dessas transições.

Em terceiro lugar, e na “era das multidões”, a emergência da sociedade colaborativa e das inovações territoriais que daí decorrem no plano local.

 

1. As três grandes transições em curso

A transição ecológica e a incógnita das alterações climáticas (o advento de uma nova era geoclimática, o denominado Antropoceno). A transição digital e a incógnita da inteligência artificial (o advento do transumanismo).

A transição produtiva e a incógnita das grandes migrações (de pessoas, bens, serviços e capitais). Estas são as grandes transições em curso. Serão estas transformações convergentes ou divergentes? Poderemos esperar uma Grande Transformação, um novo Momento Polanyi?

Já aí está a polémica acerca de um novo regime climático, designado por Antropoceno. As ciências sociais e humanas colam-se mais às ciências naturais, a variável climatérica deixa de ser uma variável exógena para se converter, cada vez mais, numa variável endógena.

A severidade e a hostilidade do clima afetam a nossa vida quotidiana avisando-nos de que a transição ecológica é um horizonte incontornável de sentido para a vida humana, um sentido de finitude, de limite e responsabilidade.

Eis, pois, a utilidade social do respeito em toda a sua plenitude. Se não respeitarmos a natureza, não haverá coevolução benigna homem-natureza e o nosso quotidiano poderá transformar-se num verdadeiro inferno.

A segunda grande transição diz respeito à revolução digital. A transição digital é a grande força transformadora do nosso tempo, feita de liberdade e transgressão, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, numa viagem que que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade.

A terceira grande transição diz respeito às grandes migrações, de pessoas que buscam trabalho e refúgio, de mercados de bens e serviços que buscam a melhor deslocalização para serem produzidos, de capitais que enlouquecem em busca da melhor rentabilidade, de plantas e animais que buscam novos habitats para poderem sobreviver. É verdadeiramente a luta pela vida.

E perante esta tripla transição, será que os seus principais protagonistas têm consciência, em toda a sua plenitude, da força transformadora da sua convergência e da força destruidora da sua divergência. É certo, há muitos sinais contraditórios e suspeições recíprocas.

A comunidade ecológica suspeita da arrogância tecnológica e digital, enquanto os atores do digital, marcados pela desmaterialização e a eficiência, se consideram ecológicos por natureza. As duas transições desencadeiam círculos virtuosos e círculos viciosos e pegadas ecológicas e digitais mais ou menos pronunciadas.

Por outro lado, e face a estas duas transições, a perceção do risco fica de tal modo vulnerável e instável que as migrações acabam por acelerar o metabolismo global e sistémico das três transições ao mesmo tempo que provocam ondas de choque em todas as direções.

 

2. As três cadeias de valor em operação

Para esta tripla transição ser bem-sucedida precisamos de mudar de valores muito rapidamente, sendo a transição ecológica um objetivo do 1º grau e a transição digital um objetivo do 2º grau ou instrumental.

Só o conhecimento, a aprendizagem permanente e uma forte sociabilidade/inteligência coletiva nos podem salvar. Além disso, não se trata de “branquear o problema”, isto é, de digitalizar a ecologia e de ecologizar o digital, mas de provocar uma alteração profunda na formação e operação das cadeias de valor.

A primeira abordagem da cadeia de valor é aquela que se identifica com o conceito de fileira económica, numa visão reducionista de criação de valor. Trata-se aqui, essencialmente, de custos, preços e margens de lucro, de acordo com o princípio geral de que é necessário privatizar o benefício e socializar o prejuízo.

Neste registo, os problemas são de apropriação de mais-valias, de exportação de externalidades (negativas) para o orçamento e de maior ou menor regulação (pública ou em co-regulação) da fileira.

A segunda abordagem da cadeia de valor é aquela que se identifica com o conceito triangular de sustentabilidade, ao mesmo tempo económica, ambiental e social.

Neste caso, há uma tentativa de encontrar um novo ponto de equilíbrio com menos privatização de benefícios e mais socialização de benefícios, através da introdução das noções de responsabilidade ambiental e social. Digamos que a cadeia de valor se mostra mais distributiva.

Todavia, a sustentabilidade fraca mantém a estrutura da fileira intocada, só a sustentabilidade forte pode promover a alteração estrutural da fileira. E não estamos lá ainda, o combate está completamente em aberto e é de natureza eminentemente política.

A terceira abordagem da cadeia de valor é aquela que se identifica mais com os ecossistemas inteligentes e com a cultura territorialista da paisagem global e do território-identidade. Digamos que a escala do tempo e da distância se torna mais longa e a cadeia de valor adquire mais inteligência, memória, identidade e cultura.

Neste registo, a fileira económica e a sustentabilidade tornam-se variáveis instrumentais da inteligência coletiva, da distinção paisagística e dos signos distintivos territoriais. Não basta um território ser competitivo ele tem de ser, sobretudo, um território distintivo.

A noção de terroir acolhe no seu seio algumas destas valorações ou signos distintivos. É sobre eles que o território deve trabalhar para criar uma genuína cadeia de valor.

 

3. A inovação territorial da sociedade colaborativa

Já referi anteriormente que nos encontramos na “era das multidões”. Esta tendência pesada significa que nos deslocamos para jusante na geografia da cadeia de valor, cada vez mais próximo do utente e do consumidor finais. À medida que se digitalizam as cadeias de valor são formadas por “informação bruta” a montante e plataformas digitais e respetivas aplicações a jusante.

Se este movimento de uberização for benigno, isto é, conduzido no plano local por coligações/plataformas/parcerias de interesses comuns e colaborativos, poderemos ambicionar o lançamento de um movimento criativo de starting-up que vise não propriamente enriquecer em pouco tempo, mas, antes, proporcionar aos cidadãos bens comuns de elevado valor social.

Refiro-me, a título de exemplo, aos projetos empresariais que a economia digital e as plataformas colaborativas poderão alavancar:
– As agriculturas de precisão, os modos intensivos de produção.
– As agriculturas de nicho, denominações de origem e indicações geográficas.
– As agriculturas sociocomunitárias, os circuitos curtos e os mercados locais.
– A economia circular e a bioeconomia, a política dos 4R e os serviços ambientais.
– As energias renováveis e as bioenergias, as redes e os serviços energéticos.
– Os serviços ambulatórios ao domicílio, os programas de envelhecimento ativo.
– Os serviços de reabilitação e restauro do património natural e construído.
– Os serviços de produção de conteúdos para eventos criativos e culturais.
– Os ambientes digitais inteligentes e a gestão de sistemas de informação.

Se nas comunidades territoriais existir um ator-rede que seja capaz de coordenar a prestação/interação destes serviços poderemos estar próximos de uma nova economia de aglomeração no plano local.

Se tudo correr bem, poderemos ter uma economia colaborativa que tornará o capitalismo mais popular e genuíno, no sentido próprio dos termos, onde o capital social será tão ou mais decisivo que o capital financeiro.

Entretanto, as principais áreas do negócio digital serão as seguintes:
– O crescimento exponencial das empresas de serviços em matéria de inovação tecnológica e software de gestão para operar a modernização digital,
– A economia crowd das grandes plataformas e aplicações em todas as áreas a operar nos chamados mercados biface (do tipo Airbnb e Uber),
– A economia sharing, da partilha colaborativa operada nas “redes distribuídas” e em mercados de proximidade, reciclagem e de ocasião (a internet popular),
– A economia smart, no que diz respeito a uma nova geração de utilities e serviços territoriais (smart village, smart city, smart region),
– A economia deep learning, da inteligência artificial, da robótica, da realidade virtual e da realidade aumentada e que convergem para o chamado ponto de singularidade (NBIC: nanotecnologias, biotecnologias, informática, computação cognitiva),
– A economia IOT e ICC, da internet dos objetos e dos interfaces cérebro-computacionais com a nossa vida quotidiana.

Como se observa, a revolução digital introduzirá uma profunda transformação das cadeias de valor, os efeitos externos do novo ecossistema digital serão inimagináveis e os fatores imateriais passarão a determinar o perfil da “cadeia de valor METI” (matéria, energia, trabalho, informação). Esperemos, também, que, no futuro próximo, o conhecimento seja um recurso abundante e barato e, logo, uma enorme oportunidade para pessoas e territórios esquecidos e abandonados.

 

Notas Finais
Em primeiro lugar, uma nota acerca da perceção e gestão do risco sistémico. O risco sistémico e aleatório será a maior ameaça a pesar e a pairar sobre as nossas cabeças no futuro próximo, sob a forma de uma perceção difusa que se fará acompanhar pelo receio digital associado ao cibercrime.

Em segundo lugar, a economia das grandes plataformas irá obrigar-nos a fazer “alianças com as multidões”, isto é, seremos cada vez mais prosumidores e participaremos cada vez mais nos custos de operação das plataformas a troco de uma série de “sedutoras promoções”.

Em terceiro lugar, alimentaremos a esperança de uma economia da partilha colaborativa (uma uberização benigna) a funcionar em pleno e a proporcionar-nos alguns rendimentos suplementares em mercados de aluguer e de ocasião.

Em quarto lugar, alimentaremos a esperança de uma efetiva renovação do capital natural, uma vez que existe um grande potencial para regenerar o ambiente natural através do uso de tecnologias e sistemas inteligentes aplicados à economia circular.

Em quinto lugar, esperemos que a revolução digital não desencadeie uma nova “rebelião ludita” e que surjam novos pretextos para os movimentos nacionalistas e populistas.

Em sexto lugar, fazemos votos para que a revolução digital em curso seja uma oportunidade para o Estado-administração rever em profundidade toda a sua política de regulação pública em matéria de inovação tecnológica e que aproveite a oportunidade para operar algumas “reformas de estado”.

A convergência entre a transição digital e transição ecológica será o grande motor desta nova fase. Se esta convergência for devidamente patrocinada poderemos incubar uma nova geração de start-up em espaço rural, embora nada garanta que elas não apareçam em ordem dispersa. Entre a aglomeração e a dispersão, eis a questão.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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